Bobo Popova, a criatura
No quarto corriqueiro de uma casa comum, um homem luta para manter-se acordado. Chacoalha a cabeça continuamente esperando dissipar o sono, e de quando em vez desfere tapas estalados em seu rosto abatido. Está determinado, mas a cada minuto que passa sua resistência diminui. Sobre o seu corpo o cansaço pesa como uma rocha densa. Sua aparência é feia, o semblante deteriorado. Na sua mente existe apenas uma frase: não quero dormir.
Sentado na extremidade da cama, os pés do homem tocam o chão gelado. Está nu. Os ombros caídos e os braços relaxados, sobre o seu colo, uma mão acolhe a outra e ambas se esfregam com angústia. Desacomodando-as, aperta um botão do relógio em seu pulso e uma luz esverdeada gritante revive a tela do aparelho. São duas e quarenta e quatro da manhã.
O quarto está escuro e silencioso. A claridade da lua, fraca nessa noite, é ainda mais enfraquecida pela cortina da janela. Adentra o quarto inutilmente e projeta na parede em frente uma sombra opaca e disforme do homem ali solitário. No clima notívago também se percebe o marasmo sonoro. Os ruídos da cidade, que antes se ouvia na noite, agora estão abreviados em intermitências. Talvez, toda a gente ao redor esteja absorvida em sonhos bons e suaves. E talvez não seja pecado o homem sentir inveja do privilégio alheio.
Apesar de sua fisiologia não ter aceitado a batalha, a verdade é que nesse dia o homem decidiu não dormir. Muitas noites tem sofrido o incompreensível, o inexplicável, e nessa, por desespero, resolveu meter-se contra a natureza. Sabe se tratar de um intento de fracasso certo. Sabe que em algum momento, inevitavelmente, cairá exausto. Mas em sua cabeça parece melhor fracassar em sua luta do que simplesmente ceder-se a uma loucura.
O homem já está acordado a quase quarenta e oito horas. Seu corpo demonstra estar nas últimas, resistindo por pura inércia; e sua consciência, atordoada, pisca como um letreiro com mau contato. Está aflito, muito mais que nas outras noites.
O silêncio do quarto, então, é invadido pela voz, que repete por vezes uma mesma frase. Já conhecida pelo homem nesse quarto, a voz é aguda e suas palavras são mal pronunciadas, abafadas porque vêm de debaixo da cama.
— Por qué você num-num dorme?...
O homem esmorece no instante em que a ouve. Pensa em levantar as pernas mas sabe não ser necessário. Teimosamente, olha para o chão próximo a seus pés e não vê nada.
Como já esperava, de repente sente os incômodos. A voz que ecoa pelo quarto não se manifesta como simples ondas vibrando no ar. Para além disso, os sons se tornam imagens abstratas na mente do homem, distorções que lembram rostos desfigurados, impossíveis de não serem vistos. Cada um desses rostos carrega em si um sentimento distinto, e na alma do homem se embaraçam como gemidos de torturados. Externamente, as palavras da voz chocam-se contra o corpo do infeliz e causam ardência de intensidades diferentes. A voz interfere e afeta corpo e alma, o físico e o imaterial. Mas no quarto não se vê absolutamente nada.
— Me deixe em paz, por favor! Só essa noite. Eu imploro!
A voz gargalha com escárnio hediondo, e a prolonga por puro prazer. Impotente, mais uma vez o homem é atingido por dores e perturbações. Seus dentes rangem e suas mãos tremem.
— Se não tem efeito meu rogo, peço ao menos um tempo...Por favor, apenas um tempo para descansar.
— Sueu negociandor? Você deitu na camas. Deixa o baraço pendurado fora. É símplice — diz a voz com dificuldade.
Nesse momento o homem está mais infeliz do que com pavor. A criatura perturbada está debaixo da sua cama, mas já há um tempo vive ali. Ele nunca a viu, mas já a sentiu; ao menos uma parte do seu corpo. E nessa noite está resistindo ao sono para justamente não ter que senti-la outra vez. Apenas a lembrança da sensação faz seu corpo estremecer.
A experiência maligna com a criatura iniciou-se há três semanas. Foi em uma noite que encontrava-se com a madrugada, e a data não é importante. O cenário era o mesmo no qual o homem se encontra agora, seu quarto envolto pela penumbra da noite.
No escuro, o homem estava jogado na cama, inerte em pensamento algum. Não estava triste ou alegre. Não estava diferente ou normal. Estava apenas ali, deitado em sua cama, observando um simples furo na laje. Do furo descia um solitário cabo branco e era ele a antena da televisão. O aparelho estava desligado porque não havia qualquer intenção de assistir fosse o que fosse.
Então, de repente, um ruído sutil, mas muito próximo, emergiu do silêncio do quarto e chamou a atenção do homem. Soou como o roçar de uma mão molhada em uma sacola de plástico. Rangiu ou estalou como um som aflitivo. O homem ergueu a cabeça e, então, ouviu uma voz:
— Seu sono-no pefeito virá com uma condição: deixar o baraço pendurado na lateral da camas. Num-num pode tocar o chão. É pereciso ficar pendurado.
O homem saltou da cama com o coração a mil e ofegante. Sua mente foi inundada com imagens terríveis e sua alma, de repente, já não sabia distinguir os sentimentos. Desesperado, acendeu a luz do quarto e procurou o que ardia em sua pele. Ficou nú como um louco e começou a gritar.
Quando os efeitos se tornaram mais brandos, a lucidez do homem recuperou-se em parte e ele se acalmou. A experiência que viveu, acreditou ele, ter sido apenas um sonho. Um sonho incrivelmente lúcido e medonho.
Depois de um banho, um copo d’água e roupas novas, o homem voltou para a cama. Sentia um alívio confuso, como se soubesse não ter sido real aquilo que experimentou mas, ao mesmo tempo, estivesse com medo de acontecer novamente. Nessa incerteza inquietante, uma hora depois o homem dormiu.
E então os pesadelos vieram. E não foram simplesmente momentos artificiais em uma mente conturbada. Iniciaram-se como meras visões, mas culminaram em uma cena realmente opressiva. O homem estava adormecido, mas seu corpo mexia-se agitadamente. Suas mãos tentavam a todo custo rasgar suas roupas e os gritos eram para tirar aquilo do seu corpo. Ofegante, lutou com sua tortura por uma hora e quarenta.
Quando, de repente, o homem despertou, arregalou os olhos e tirou a camisa. Apalpou o seu peito e chiou de dor. Não havia nenhuma marca em sua pele, mas a dor era real. Apertou a parte interna das coxas, a área do fígado, a barriga. Seu corpo estava superficialmente normal, mas doía e não sabia explicar como.
Nessa noite o homem não conseguiu dormir outra vez. E, na verdade, muito pouco dormiu nas seguintes. Quando anoitecia e o homem retirava-se para dormir, a voz retornava ao quarto trazendo sensações horríveis e dolorosas. Dentre suas palavras, sempre dizia para que o homem deixasse o braço pendurado fora da cama ao se deitar; só assim teria o sono perfeito. O homem compreendia a voz, mesmo atrapalhada, mas era inconcebível obedecê-la. Então, quando ela se calava e os efeitos torturantes que causava diminuíam, o homem dormia. E bastava desacordar para os pesadelos de nova tortura voltarem e o manter aprisionado até conseguir se desvencilhar. De repente, virou um ciclo. Noite após noite.
Três semanas depois e a vida do homem está desordenada. Raramente cumpre com suas obrigações e suas rotinas diárias se tornaram irregulares. A falta do devido descanso confe a seu corpo aparência enfermiça. Pálido como um cadáver, olhos profundos, enterrados em suas cavidades, falta de higiene, poucas palavras, raciocínio abreviado.
Antes da desgraça, o homem, de fato, não era ativo, extrovertido, sociável. Vivia em sua casa como um indivíduo resolvido consigo mesmo e sem qualquer problema. Mas agora estava deprimente. A criatura o torturou até as agressões, de dores e agonia latentes, corromperem sua imagem externa. Tornou-o feio e decrépito.
Sentado na extremidade da cama, o homem já não aguenta mais. Está suando de dor, fedido, grudento. Então se entrega. Deita-se com a cara afundada no travesseiro e deixa o braço esquerdo pendurado na lateral da cama. Antes de poder sentir qualquer coisa, um calafrio intenso percorre todo seu corpo. Fecha os olhos com força e cerra com ainda mais força os dentes. Nada de bom passa por sua cabeça. A espera é angustiante.
— O sono-no pefeito virá… — diz a criatura.
A mão do homem treme quando, de repente, sente algo pegajoso e gelado envolvendo seu polegar. Assustado, pensa em puxar a mão, mas neste momento a criatura o fisga. A embocadura se contrai lentamente e suga o dedo centímetro a centímetro. O homem sente gengivas desdentadas e circulares, em várias camadas concêntricas e decrescentes. Os círculos se contraem até à espessura do dedo, firmando-o sem muita força. Então a boca da criatura começa a pulsar.
Antes de adormecer, sem dor e perturbações, uma frase percorre lentamente a consciência enfraquecida do homem: “Bobo Popova, filho de Solone Vavel”.
Nessa noite o homem conseguiu descansar. Foi amaldiçoado com tamanha desgraça, mas, ao final, consumido por todos os males, cedeu à indizível criatura. O homem tem nojo e pavor, mas, sem nada poder fazer, para conseguir dormir, tem que oferecer seu polegar para o Bobo Popova.