Susto saindo pela culatra

Susto saindo pela culatra (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)

O mês de janeiro é dedicado às férias escolares, ao descanso do final do ano passado e também às férias de muitos trabalhadores. Muitos deles se deslocam para as praias, fazendas, cidades turísticas e até cidades natais.

Marli está no grupo das pessoas privilegiadas com as férias do mês de janeiro. Durante todo o ano, trabalhou muito, estudou na faculdade, cansou muito com o trânsito da capital mineira. Foi às festas da escola e também às do trabalho. Assim, como toda cidadã de bem, ela está prestes a embarcar para a cidade natal, onde passará todo o mês de janeiro descansando em paz, às sombras das grandes árvores, comendo refeições caseiras, sorvendo o mais puro e delicioso ar matinal, ouvindo o cântico dos pássaros e o berrado do gado no curral. Ficará feliz, pois estará logo no sítio da família. Ligou várias vezes para o pai e ele a buscará na rodoviária.

Júlia também é irmã de Marli. Mora no exterior e aproveitou o final do ano para descansar ao lado da família, pois faz muito tempo que não vem ao Brasil. Ela, porém, chegou no mês de novembro e ficará até o mês de março. Muito feliz por estar perto da irmã e colocarem as fofocas ao pé da língua.

Transcorreram quatro dias e as duas irmãs estavam juntas. Felizes, como sempre, conversavam muito, contavam os causos, brincavam semelhante ao tempo de crianças, corriam estrada afora, pescavam, nadavam no riacho ao fundo do pasto, tratavam dos porcos e das galinhas, faziam visitas aos vizinhos, enfim, estavam bem animadas, porque o tempo ainda era curto e por um bom período as duas não se viam.

No decorrer da vida, Marli tinha um sério problema. Tinha muito medo. Na Capital Mineira, ela não ficava sozinha. Morava no apartamento dividido com outra amiga do interior. Elas se davam muito bem, mas tinham algo em comum: O medo. As duas sentiam medo até mesmo das sombras. Dormiam com as luzes acesas e sempre alguma gritava durante a madrugada, caso o sono fosse embora.

Ao contrário, Júlia era mais esperta do que a irmã. Sempre feliz e possuindo muita curiosidade, ela desbravava o campo, montava no cavalo de nome Amarelinho e curtia muito a noite e as madrugadas. Acostumada com as madrugadas, ela era pesquisadora de universidade muito famosa na Alemanha. Formada em Astronomia, era a responsável por grandes projetos e diversos estudos astronômicos mundiais. Na escola, sempre foi estudiosa e muito inteligente.

Ficaram sabendo que o vizinho, morador de uma propriedade bem perto do sítio dos pais, havia falecido há um ano. O João Gomes disse que nas noites de lua cheia, principalmente às sextas-feiras, ele era visto nas proximidades do riacho, onde tinha o pequeno remanso destinado à natação e também à pescaria. O nome do falecido era Manoel, vulgarmente conhecido por “Mané”. Marli ficou atônica quando soube da notícia. Os dois eram muito amigos. Quando a garota chegava ao sítio, trazia ela alguns presentes para o amigo.

“Mane” era muito querido na comunidade. Sempre estava à frente das festividades. Bastante culto, gostava de ler muito e grande conhecedor da Bíblia. Discursava muito bem e sempre questionava a menina Júlia, a astrônoma. Os dois eram questionados entre si. Quando tudo terminava, saiam os dois abraçados e “Mané” ia à residência e voltava com algum presentinho para a garota. Ora eram bananas, ora eram biscoitos... Enfim, era o cotidiano dos dois. Continuando assim quando a Júlia vinha ao Brasil, na atualidade.

Quando a mãe das jovens contou que “Mané” havia falecido e que outras pessoas afirmavam que ele estava aparecendo na prainha do riacho, Marli arregalou os olhos e o coração batia mais forte com medo. Júlia, porém, sempre questionava que era tudo invenção e que o aparecimento do amigo falecido era fruto da mente humana. Ao contrário da irmã, que dizia que estava com muito medo e horror.

Durante dois dias, Marli não saiu para nada. Ficava sempre dentro da casa, sempre ao lado da mãe, do pai e também da irmã.

No domingo, alguns amigos da família chegaram para o almoço. Eram alguns tios, algumas primas e um admirador secreto de Marli. Com muitas conversas e após o almoço, saíram para o passeio no campo. Marli convidou o amigo para irem nadar no riacho, que imediatamente aceitou e algumas primas os acompanharam. Estavam felizes e por algum tempo não mais se falaram sobre a morte e o aparecimento do vizinho morto.

O tempo foi passando e a tarde chegando. Risos, alegrias e tudo mais não faltaram naquele dia.

O “Mané” era um senhor muito alegre. De estatura não muito grande, media entre um metro e sessenta a um metro e oitenta centímetros. Gostava sempre de usar o terno na cor preta. Usava gravata combinando com o terno. Calçando sempre botas de marcas daquela época. Tinha uma boa visão, mas se sentia feliz usando os óculos para descanso das vistas, na cor verde. O chapéu era na cor preta, aqueles chapeis feitos em tecido mais grosso. Como sempre, um lencinho era visto no bolso do paletó e também uma caneta-tinteiro que foi comprada há muito tempo, quando ele iniciou o seminário em São Paulo, mas pouco tempo depois, abandonou por causa do amor entre ele e a esposa. Assim, se vestia aos sábados, aos domingos, dias santos e quando ia à cidade. Também nas festividades civis e religiosas. Durante a semana, estava sempre vestido de botas, camisas de mangas longas, calças sociais e chapéu de palha. Gostava de andar de cavalo e sempre usava as lindas e atraentes perneiras nas cores pretas.

Estavam todos distraídos com as ocupações. Marli nadava com os amigos e Júlia passeava de cavalo pelas imediações. Em um certo momento, Júlia foi para casa. Entrou no quarto do pai e foi ao guarda-roupa. Revirou muitas roupas e encontrou um terno na cor preta e gravata vermelha. Viu o chapéu do pai pendurado no cabide. Arrumou as botas e foi até aos guardados da mãe. Lá, encontrou os óculos que a mãe usava para assistir televisão.

De posse deste material, ela o colocou na sacola, deu um abraço na mãe e montou novamente no cavalo branco. Saindo a galope, ela ainda passou perto dos amigos e avisou para tomarem cuidado, pois o velho “Mané” poderia aparecer a qualquer momento.

Rindo para a irmã, falou mais uma vez que o velho iria fazer-lhe uma visita.

Assustada, mas vergonhosamente não demonstrava, pois estava em companhia dos amigos, a irmã sorriu e disse que não existia nada de volta do velho “Mané” e que tudo era ilusão. Foi aplaudida pelo amigo e também por algumas primas que ali estavam. Ao contrário de outras duas, que preferiram não se manifestar.

Alguns minutos se passaram. O banho no rio estava muito bom. O sol forte, a brisa soprando suavemente. Eles sorriam, gritavam, cantavam e a tarde de domingo ia transcorrendo perfeitamente.

De repente, alguém deu um forte mergulho indo na direção do barranco. Assim que o rosto foi tirado da água e abrindo os olhos em direção do barranco, com olhar meio frustrado, viu a figura de algo bem diferente. De terno, chapéu, botas e de óculos pretos, abrindo os braços em direção deles, ao lado do cavalo branco, falando em voz rouca:

- Eu vim visitar vocês!

- Saí das profundezas do cemitério e queria dar um abraço na Marli. Sou eu, o velho “Mané”!

Marli não se conteve. Deu um forte grito e saiu correndo entre as águas do riacho. Subiu pela grande pedra e lá ficou gritando e chorando ao mesmo tempo. Os que estavam junto dela também fizeram o mesmo. Correram e foram parar no alto da pedra. Algumas primas gritavam, mas duas não fizeram nada. Estavam em estado de choque. Não se viu o amigo, pois este saiu correndo para o outro lado do rio e em pouco tempo estava na casa e foi logo contando que o velho havia aparecido lá no rio. Entrou para dentro do quarto e trancando a porta, deitou na cama e se cobriu o corpo todo, até mesmo tampou a cabeça e por lá ficou tremendo de medo.

O ser gritava que vinha das profundezas do cemitério e queria dar um abraço na amiga. Ela, porém, cada vez mais gritava e ficava apavorada.

Em um dado momento, a figura saiu de perto do cavalo. Abrindo os braços quis se dirigir para a margem do rio e se aproximar da grande pedra onde se encontravam Marli e as primas. Deu quatro passos, mas logo foi surpreendida pelos dois cães do sítio, que estavam perto da margem. Os cães se dirigiram para a figura. Latindo e rosnando, eles preparavam o ataque. Assim a figura começou a correr para perto do cavalo. Este, porém, quando ouviu os latidos dos cães, ergueu a cabeça e saiu a galope, disparado. O velho “Mané” ficou perdido, pois cada vez mais os cães se aproximavam dele e sentiu que as mordidas seriam inevitáveis. Não aguentando mais correr, não se viu outra alternativa. Foi tirando o chapéu, os óculos, o paletó e gritava para os cães que era a Júlia, mas o cão mais novo não obedecia e logo escutou a voz do pai delas dizendo para o cão parar de latir e que a figura ali dentro do terno preto era nada mais do que Júlia.

Quando toda a cena acabou, Marli saiu brava e logo foi em direção da irmã para tirar satisfação. O pai, portanto, não deixou. Todos começaram a rir.

Júlia contou para a mãe o que tinha aprontado. Chegou à porta do quarto, onde o amigo estava deitado, e com as cobertas na cabeça, falou que o velho “Mané” queria dar-lhe um abraço.

Marli e Júlia

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 21/11/2021
Código do texto: T7390616
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