O Destino dos Viajantes

Luiz Eduardo ainda estava bem. Seu único inconveniente era o aparelho para surdez. Dizia que a sensação era que milhares de cigarras copulavam dentro de sua cabeça. Tirando a orgia dos insetos, a felicidade só não era plena porque à medida em que a vida passava seus parentes e amigos iam ficando pelo meio do caminho. Desalentado, até tentou acreditar em fantasmas. Entretanto, depois de quase enlouquecer estudando o tema, chegou à conclusão de que os espíritos eram só uma invenção para criar histórias que, feias ou bonitas, serviam apenas para amenizar a cruel realidade.

Foi a neta Maria Eduarda quem percebeu a tristeza do avô, quando este tomava conhecimento da perda de um ente querido. O velhinho ficava semanas mergulhado em uma profunda depressão. Sendo assim, a família decidiu que toda vez que ele perguntasse por alguém, cuja vida já havia findado, diriam que o falecido estava viajando. O pobre homem custou a perceber que algo poderia estar errado. A dúvida veio quando perguntou por um antigo conhecido.

Foi com a cara mais limpa do mundo que a filha Anastácia respondeu com voz firme:

_ Pai, o Seu Simplício está viajando.

_ Tem certeza?

_ Claro que tenho!

Luiz Eduardo fez as contas e chegou à conclusão de que caso o Simplício estivesse vivo, estaria com mais de cento e dez anos. Desconfiado, passou a perguntar por outros ainda mais idosos. A resposta era sempre a mesma: "Está viajando".

O ancião passou a atravessar as noites pensando no destino dos viajantes, porém, o que mais lhe tirava o sono era se lembrar do neto Daniel, que com apenas nove anos também seguiu viagem. Aquela história que a filha e o genro concordaram em mandar o menino estudar na Europa era mesmo muito estranha, pensou.

Na ocasião Luiz Eduardo estava hospitalizado por conta de uma complicada cirurgia. Puxando pela memória se lembrou que aquela choradeira em meio a todo aquele desespero, não podia ser mesmo só porque um velhote teve alta do hospital. Bem, foi o que disseram quando perguntou pelo Daniel.

Quase vinte anos se passaram e quando reclamava da saudade, Soraia, a mãe do garoto, dizia que o Daniel estava bem, e com olhar vago, desconversava.

Depois de analisar as evidências, o patriarca da família, mesmo acreditando que a intenção era boa, se sentiu traído. Foi então, que para acabar com aquela farsa, logo ele, que nunca havia comemorado um aniversário sequer, teve a ideia de fazer uma festa no dia em que completasse cem anos. Mas ninguém podia imaginar que ele viveria tanto e faltando alguns meses para o evento, o ancião reuniu a família e disse:

_ Meus amados, como sabem, meu centenário está próximo, e, como disse há alguns anos, quero uma festa. Imagino um grande bolo com uma centena de velinhas atoladas no glacê. Mais uma coisa, quero todos os meus parentes e amigos nesse dia tão especial, inclusive aqueles que foram viajar. Depois olhou para a foto que retirou do bolso, deu um breve sorriso e continuou. Meu neto Daniel deve estar um homem feito... Não é mesmo? Também não vou abrir mão de sua presença...

Houve um momento torturante de silêncio, e após todos se entreolharem, o bisneto Gabriel falou com um largo sorriso no rosto:

_ Vô, deixe que eu me encarrego de tudo. O senhor terá um dia inesquecível.

_ Gabriel, você me promete que o "Dani" vai voltar de viagem?

Outra vez o momento foi tenso e todos atentos pela resposta olharam para o rapaz:

_ Prometo! O primo Daniel será o nosso convidado de honra.

***

Daniel estava morto, escalou uma árvore no jardim, escorregou e caiu. A queda não foi do alto, mas havia uma branca de neve e sete horrorosos anões ao seu redor. O menino bateu com a cabeça em uma daquelas figuras demoníacas, e nada pôde ser feito.

***

Mas foi só no fim da tarde que Gabriel explicou o que tinha em mente: contrataria atores para mais uma vez enganar o bisavô.

Nos dias que antecederam a festa, Luiz Eduardo fez questão de assinar os convites, e quando a noite chegava, sonhava com a presença de todos.

Gabriel contratou uma agência de atores, exibiu várias fotografias e disse que a maioria dos personagens deveriam ter entre noventa e cento e vinte anos.

A atendente sorriu, levou o dedo indicador a boca e falou em tom de cumplicidade:

_Nada que uma boa maquiagem não possa resolver.

O jovem escolhido para interpretar Daniel era uma versão do avô aos trinta anos: Um metro e oitenta, atlético, pele clara, e cabelos e olhos negros.

O suntuoso jardim, quando os convidados chegaram, exalava um cheiro bom de grama recém cortada. A grande maioria usava óculos e aparelhos para surdez. Alguns tremelicavam agarrados a andadores, outros de bengalas tinham as costas curvadas e uma meia dúzia pilotavam cadeiras de rodas.

Como planejado, o aniversariante aguardaria no quarto. A grande surpresa seria o jovem Daniel entrar e dizer o quanto sentiu em ir estudar na Europa. Depois o abraçaria, diria que o amava e de braços dados o levaria ao jardim para se juntar aquela legião de mortos interpretados pelos vivos.

Luiz Eduardo já havia passado por uma avaliação médica, mesmo assim, a família estava preocupada com a grande carga emocional que poderia lhe invadir a alma.

Estava recostado na cabeceira da cama quando Daniel entrou. Apesar do tempo, para ele o menino ainda era o mesmo. O sorriso, o cabelo que de tão negro tinha tons de azul, não havia mudado em nada. Não se conteve ao pular da cama e abraçar o neto querido.

Os dois passaram por um corredor cheio de flores coloridas, e, quando chegaram a um jardim de beleza inimaginável, apenas os viajantes estavam lá. Porém, não havia andadores, bengalas e cadeiras de rodas, todos estavam jovens. Luiz Eduardo sorriu ao perceber que não mais precisava usar o aparelho para surdez e que a felicidade, enfim, era plena.

FIM

Luiz Cláudio Santos
Enviado por Luiz Cláudio Santos em 14/11/2021
Código do texto: T7385472
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