A Sina do Execrável - CLTS 17
A Sina do Execrável
- Eai Samantha, beijou ou não beijou ? - Vitor disse brincando
- Cala boca. - Samantha respondeu esbarrando em seu ombro.
Estavam sentados no chão lado a lado, no alto da escadaria da prefeitura, com mais três amigos formando um semicírculo.
- Beijou que eu vi! - Barbara disse levantando um coro.
Eram todos jovens, amigos desde sempre. Estudavam juntos. Moradores dos arredores da praça que fazia frente à prefeitura. Samantha, Barbara, Victor, Marcos e Thomas, o encontro noturno fazia parte da rotina dos adolescentes.
- Não foi um beijo … - Samantha interrompeu a agitação. - Foi tipo um selinho.
Novamente o coro de vozes se levantou animado e transformou-se numa conversa fiada. Enquanto falavam, uma garrafa de bebida alcoólica passava de mão em mão. Vez ou outra, aparecia um cigarro entre eles, mas este não era apreciado por todos, como o álcool.
Do outro lado da rua, na área central da praça bem iluminada, Igu ajustava-se ao seu banco de cimento. Puxava um saco enorme, com todos os seus pertences dentro, para perto de si e começou a montar sua cama ali mesmo. Do ponto que estava tinha uma visão privilegiada do grupo de jovens. Meteu a mão debaixo do assento e desgrudou um chiclete que havia guardado outro dia e voltou a mastigá-lo. Riu vendo os jovens bebendo, principalmente as garotas. O mendigo se encolheu completamente sob um cobertor espesso e ficou como parte do banco de concreto. As ruas da cidade minúscula eram um deserto, além deles.
A noite escura seguiu seu curso. Em alguns momentos a lua cheia saia de trás do manto de nuvens para espiar o grupo de amigos que se animavam na mesma proporção em que a bebida acabava. De repente um som forte de motor, vindo de longe chamou a atenção do grupo. Segundos depois um carro esportivo apareceu diante deles e estacionou na calçada da prefeitura.
- Quem é ? Barbara perguntou assustada.
Era um carro importado, incomum até mesmo para os grandes centros. Alguns dias atrás a simples passagem do veículo pela cidade, foi assunto em toda parte.
A porta se abriu e um rapaz encabulado saiu, acenando meio que sem jeito para o grupo que o encarava sem reconhecê-lo. Estava muito bem vestido comparado aos demais, usava roupa social, anéis, correntes e relógio de pulso. Era magro e alto, apesar de ter a mesma idade que os demais, estava nitidamente mais velho.
- Então vocês ainda se encontram aqui ? - Disse com uma voz adulta, subindo os degraus.
- Fred!? - Marcos disse, quando reconheceu o rosto que um dia foi seu grande amigo. Todos se lembraram dele.
Era Frederico Barbacena, jovem de família rica que foi mandado embora da cidade pequena pelos seus pais, em busca de um futuro digno do nome de sua família.
- E ai pessoal.
Thomas fechou a cara. Em dois minutos os rostos foram atualizados para os nomes já conhecidos. Marcos foi o único que se levantou para cumprimentá-lo.
- O que você tá fazendo aqui? - Perguntou enquanto balançava sua mão entusiasmado.
- Vim para o enterro do meu tio, o Tião. - Fez uma pausa esperando os cumprimentos que não vieram. Não por falta de educação, mas sim por cada um ali saber de quem se tratava. - Enfim, minha avó insistiu para que todos nós viéssemos.
Fez-se um silêncio constrangedor. Todos, exceto Thomas e Frederico, se entreolharam e logo começaram os risos típicos da pouca idade.
- E como tá Dona Conceição? - Samantha perguntou constrangida, tentando parecer madura.
- Minha avó está bem. Algumas dores mas…
- Alguém chorou, no enterro? - Barbara o interrompeu secamente.
- Barbara !? - Samantha se mostrou indignada, ao mesmo tempo encarou Frederico esperando uma resposta.
- Tudo bem! - Ele respondeu sorrindo. - Pode acreditar, você não foi a primeira a me perguntar isso. - Fez uma pausa controlando a timidez. - Ninguém chorou!
Todos respiraram aliviados, inclusive Thomas. Para eles era impossível imaginar alguém que sentisse falta do finado.
- Nem a mãe dele? - Vitor perguntou.
- Nem minha avó! Na verdade, no dia do enterro ela nem estava triste, parecia mais... preocupada. - Disse depois de uma breve reflexão - Tião foi enterrado no cemitério lá no terreno. Todos os dias, antes do almoço ela foi visitar a sepultura...
- Foi rezar pelo Traste? - Barbara perguntou indignada.
- Não faço ideia. Mas, hoje ela estava melhor, ficou na cozinha o dia todo. Até fez o almoço.
- Deve ser coisa de mãe, né gente!? Samantha comentou.
- Você falou que ela estava preocupada? Será medo de alguém tentar vingança contra sua família, já que não dá pra fazer mais nada contra o desgraçado do seu tio? - Thomas falou sério. Na sua infância, sua família foi prejudicada por ações do falecido.
- Nada a ver Thomas! - Samantha falou antes de qualquer resposta. - Todo mundo sabe que quem mais sofreu na mão dele foi a Dona Conceição…
- É verdade! O seu outro tio, Bernardo!? Não tentou matar ele uma vez, por causa disso? Não foi por isso que ele foi embora da cidade? - Marcos perguntou.
Frederico passou meio minuto refletindo de cabeça baixa.
- Vocês não fazem ideia de como era em casa com aquele cara…- Passou os olhos por todos eles. - Minha avó é uma santa!
Frederico juntou-se à roda. Passaram quase uma hora ouvindo histórias das malfeitorias de Tião. Algumas inimagináveis, a maioria já conhecidas. Quando Frederico terminou de contar sua pouca e traumática vivência com tio, ouviu um pouco de cada um dos presentes sobre Tião.Thomas relaxou depois que viu a revolta nos olhos de Frederico quando ouviu sua história. Todos tinham na família alguém que passou maus bocados na mão do homem. Tião usava da sua importância como um Barbacena e da condição de milionário para fazer o que bem queria na cidade, com qualquer pessoa que fosse. Manipulador, interesseiro, falso, traidor, egoísta, repulsivo e detestável, era a melhor forma de descrevê-lo.
- Como diz minha avó. Era um xexelento miserável! - Fred disse, causando risos. Seu celular tocou e ele atendeu. Depois de dois 'sims' desligou. - Eu tenho que ir ! - Disse checando o relógio que marcava 22:50
- Mas, já? - Barbara perguntou frustrada. - Conta mais sobre a podridão da Elite de Santa Maria, por favor.
Todos riram. As vozes se uniram tentando segurar o rapaz um pouco mais. Porém ele foi descendo as escadas se desculpando e prometendo voltar mais cedo na noite seguinte. Alcançou o carro quando a voz de seu antigo amigo se sobressaiu das demais:
- Mas, você não disse porque Dona Conceição estava preocupada Fred!?
Um coro em concordância o fez parar.
- Ah gente, é coisa de velho né! Ela ficou falando umas histórias dela lá. Coisa de gente antiga. - Se virou para encará-los, estava com vergonha.
- Que história? - Samantha perguntou com meiguice.
- Esses negócios de lenda aí. Corpo Seco, ou sei lá como é o nome.
- Seco ele já era, né? - Barbara satirizou. - Parecia um zumbi passando fome!
Novamente uma onda de risos se fez e se repetiu a cada comentário que surgiu sobre a condição física degradante do finado. Frederico manteve um riso simpático, e voltou a se despedir.
- Espera Fred! - Samantha usava seu charme para fazê-lo ficar um pouco mais.
- Eu tenho que mijar! - Marcos disse se levantando e indo em direção a praça.
- Não acredito que o mictório ainda é na praça! - Frederico disse sorrindo.
- Onde mais seria!? - O outro respondeu passando por ele e atravessando a rua.
Neste momento, Igu, o mendigo que até então não passava de um objeto inanimado, descobriu a cabeça cuidadosamente e observou o movimento do jovem entrando na praça, subindo num canteiro e urinando de costas para ele, sobre um arbusto.
- Espera! - Samantha disse quando Fred pôs a mão na maçaneta do carro. - Fala o que é essa história da sua avó.
- Aproveita e deixa seu numero com ela! - Barbara causou outro tumulto.
Depois do alvoroço, Frederico estava vermelho enquanto Samantha sorria e insistia sobre a lenda. Marcos surgiu por entre as árvores correndo assustado.
- Que foi!? - Frederico também se assustou.
- Sei lá. Ouvi um barulho e sai correndo.
Olharam para a praça no instante em que Igu voltava a desaparecer debaixo de seu cobertor
- Acho que ele não gostou do que viu. - Thomas disse rindo.
- Filha da puta, quase me matou do coração.- Marcos disse subindo as escadas rindo também.
- Se fosse uma menininha ele ficava quietinho. NÉ, SEU TARAD O? - Vitor gritou a última parte.
- Não entendi! - Disse Fred em meio aos comentários dos meninos e os pedidos de silêncio das meninas para Vitor.
- Fica aqui um pouco mais e você vai ver do que estou falando!
- Bem que eu queria mas, é sério, tenho que ir embora.
- Mas e a lenda ? - Samantha fingiu uma birra.
- É … minha avó disse que quando uma pessoa é muito ruim, nem o céu, nem o inferno aceita… Aí ... a terra devolve!
- A terra devolve? - Thomas fez uma careta. - Tipo carteiro quando não acha o endereço ?
Novamente se formou uma euforia a cada comentário. Frederico se despediu o mais alto que pode e entrou no carro apressado, com vergonha. Quando ligou o motor as vozes subiram em protesto mas, desta vez, ele baixou o vidro e arrancou acenando, se desculpando.
- Vocês espantaram o Barbacena milionário que ia tirar a Samantha dessa miséria. - Vitor disse debochado, arrancando risos.
- Cala a boca! - Ela disse o cutucando.
- Você se joga demais Samantha. - Marcos disse balançando a cabeça.
- Ta com ciúmes, bebê? - Vitor perguntou e o círculo entrou numa série de deboches.
Passaram vários minutos falando sobre o Frederico Barbacena, suas roupas, seus modos, sua beleza, sua família.
- Lindo é uma palavra muito forte. - Barbara foi franca.
- É gosto né gente!? - Samantha defendeu sua opinião.
- Barbara, acho que você não viu a beleza dele porque ela estava estacionada ali na calçada.- Marcos disse com ironia, olhando para Samantha. Fazendo todos rirem.
- Você é tão besta Marcos. - Samantha disse se levantando, séria.
- Onde você vai amiga?
- Não precisa ir embora! - Bárbara e Vitor disse ao mesmo tempo
- Só vou no toalete.
- Que susto. - Marcos disse arrependido.
- Não estou falando com você Marcos.- Samantha falou descendo as escadas com o nariz empinado.
Os amigos zoavam Marcos enquanto Samantha atravessava a rua.
Igu, o mendigo, percebeu o movimento dos jovens. Mexeu-se vagarosamente para não chamar atenção. Despiu sua cabeça com cuidado e não pode conter um sorriso desdentado quando percebeu quem estava atravessando a rua. Uma moça linda, sorridente, vestindo uma camisa de alça e uma calça justa, que marcava seu corpo atraente. Para o seu maior contentamento, a menina escolheu um canteiro diferente do rapaz, um de frente para ele.
Samantha subiu no canteiro e sentiu o mundo mexer, a bebida fazia seu efeito. Pensou em pular um arbusto e ir até a árvore, mas ficou com medo. Então percebeu que estava de frente para o mendigo. Ficou alguns segundos o observando. Igu mantinha a respiração regular e babava pelo canto da boca. Ela estava prestes a se abaixar ali mesmo quando percebeu que ele fingia, resolveu se esconder, passou pelo arbusto e baixou a calça. Ouvia as vozes de seus amigos ao fundo e algum inseto cantarolando em algum galho próximo. Se abaixou preocupada se estava sendo vista. Olhava por entre a vegetação e achou graça quando Igu nitidamente abriu um olho tentando vê-la. Teve certeza que não era vista. Samantha ia relaxar quando percebeu que os galhos do arbusto se moveram como se uma corrente de ar tivesse passado por eles e toda vegetação a sua frente imitou o movimento em sequência mas, não havia vento. Ao invés disso, o chão sob seus pés mexeu novamente, como na vez que ela pisou no canteiro. Não era a bebida. Seu coração disparou, desistiu de urinar na mesma hora, tentou se levantar de uma vez e se atrapalhou com a calça. No meio do movimento, o tronco da árvore atrás dela sofreu uma ondulação tocando suas costas, Samantha se arrepiou e se desequilibrou.
- Ai meu Deus! - Disse caída no chão achando que havia um bicho em suas costas.
Se pôs de pé o mais rápido que pode, tateando suas costas e se encolhendo preocupada de estar sendo vista e de fazer barulho e passar vergonha diante dos seus amigos. Por um momento ficou aliviada ao ouvir as vozes ignorando-a, debatiam fervorosamente.
- Se controla sua doida! - Disse para si. Seu coração ainda estava disparado.
Quando foi esticar as pernas para levantar as calças de vez, o chão voltou a desequilibrar-la “Um terremoto?” pensou assustada. Atrás dela, o caule que antes ondulava sem que ela percebesse, se moldava no formato de um homem magricelo. Na verdade, um homem saia de dentro da árvore, como se a vestisse. Um resto de homem. Seu rosto era desfigurado por vermes, envolto num véu fino de pele roxa, os olhos revirados de morte. Esticou suas mãos em direção a moça, quando ela finalmente o percebeu. Samantha encheu os pulmões e tentou gritar mas, neste instante, uma mão deteriorada, com a carne podre e imunda de terra cobriu sua boca. Ela sentiu um nojo extremo e a mão segurava além do seu ar, tudo que havia em seu estômago. Ela se debatia com violência tentando se livrar. O toque daquele braço sem vida lhe causava uma angústia indescritível. Lutou até que sentiu a outra mão atingindo suas costas. No começo com impacto e depois era como se estivesse invadindo seu corpo. Sentiu o ar abandonado-a, seus pés não respondiam mais. Seus braços caíram colados no corpo, pesados demais. Samantha achou que estava em algum pesadelo, que logo iria despertar. Porque não sentia dor alguma onde fora atingida, ao contrário, era como se toda sua energia vital se deslocasse para aquele ponto nas suas costas. Até que a mão que segurava sua boca afrouxou o suficiente para o vômito sair e ela sentiu o líquido quente descer pelo seu corpo. Não era sonho. Tentou gritar, correr, falar, mas nada acontecia. Perdeu todas as suas forças. Estava suspensa no ar, Tentou se virar pelo menos para encarar seu algoz porém, mal conseguia sustentar a própria cabeça. Percebeu o chão se aproximando rápido e não pôde acreditar no que viu quando caiu encarando suas pernas débeis. Seu corpo perdera toda vitalidade e saúde, não passava de um monte de ossos envolto em pele flácida. Ainda não conseguia se mexer, sequer falar e desta vez sentiu uma dor aguda onde a mão do resto de homem a invadiu. Seus olhos captaram de relance a criatura pendurada como um galho, se regenerando um pouco. Foi a última coisa que viu antes de morrer.
Tudo aconteceu rápido demais. Igu estava sentado de olhos arregalados abraçado, grudado ao seu cobertor. Estava observando a menina baixar a roupa quando percebeu algo de errado. E quando ela caiu no chão, ele pôde ver claramente o resto de homem. Um amontoado de cabelo loiro, um rosto de fuinha e os dentes de ouro numa boca sem lábios. Era o homem que atazanava sua vida, que sempre o perseguia quando cruzava com ele pelas ruas, que não perdia a chance de xinga-lo e ameaça-lo. Era o homem que ele mais odiava no mundo. Era um homem morto.
- Não...não...não.... - Disse completamente desolado, reconhecendo o Tião.
Igu deu um berro estridente e saiu correndo o mais rápido que suas pernas permitiam, espalhando suas coisas pelo chão.