APOCALYPSE
O céu tinha uma cor de chumbo que causava uma verdadeira agonia nos que estavam escondidos no galpão. Nenhum deles sabia quando a noite estava para jogar sua coberta estrelada ou quando o grande amigo sol iluminaria, pois não tinham relógio e aquele céu impregnado, coberto de fuligem, não deixava nada passar – fosse a luz solar ou a mais ínfima das estrelas e da lua. O galpão estava fechado completamente, fora algumas janelas sujas e mal montadas. No entanto, a iluminação proveniente das lâmpadas (que de alguma forma funcionavam nessa crise toda) não deixava que eles ficassem à mercê daquela escuridão medonha.
André, o mais sujo de todos, tentava ligar um rádio. Eles haviam fugido de mais uma horda, e na última vez nosso azarado havia tropeçado enquanto corria e caído numa poça de lama pútrida e azeda. Sem poder se limpar, cuidou apenas em se levantar e continuar a correr junto com o grupo. Fora uma má ideia ter aberto aquele dispositivo, mas na hora nenhum deles pensou nas consequências.
Suas mãos apertavam nos botões aparentemente complexos de forma desenfreada, buscando um jeito de ligar o rádio futurista e sintonizar algum canal sombrio. O rádio era estranho por demais – um tanto compacto, banhado a um metal enferrujado e com botões brilhantes – mas André usava sua intuição na busca pelo botão salvador.
Deitada num canto do galpão, em cima de um pedaço de papelão onde havia um desenho azulado de uma vaca e os dizeres O MELHOR LEITE DA REGIÃO, Lisa checava se suas unhas estavam sujas. Por dentro, ela estava desesperada. Tentava buscar em algum movimento a distração para que esquecesse que estava presa em um mundo que não era exatamente o dela – quer dizer, ela tinha certa de que estava na terra, mas, definitivamente, este mundo não era o seu.
João procurava, dentro de uma infinidade de caixas que havia no galpão, algo que servisse para tirá-los dali ou suficiente duro para protegê-los dos robôs. Ah, os robôs! Eles eram fortes, rápidos e insistentes. João quase perdeu a mão direita em um ataque furtivo de um deles. Mas isto fora na rua, e quanto mais rápido esquecesse do que vira naquelas ruas, melhor.
André sintonizou mais uma vez um dos botões, e um chiado estridente invadiu todo o galpão. Extasiado, André colocou o rádio no chão e ergueu os braços.
- Funcionou! – Gritou – Funcionou!
Lisa sentou-se no papelão e mostrou-se interessada. João parou de mexer nas caixas e ficou em pé, apoiado num monte delas.
- Cala a boca, idiota – Disse Lisa – Vamos ouvir o que se toca nessa parte do mundo.
Todos esperaram pacientemente. Os chiados foram se distorcendo e se organizando, até que alguma voz pôde ser ouvida. De fato, uma rádio ainda funcionava nesse apocalipse.
- Então é isso, pessoal – Disse um locutor de voz cansada – O mundo acabou, mas a HP Rádio ainda funciona! Enquanto foge dos monstros que dominaram a cidade toda, vamos ouvir mais uma das cavernosas!
Uma música bastante instrumental e com uma voz delicada passou a tocar. Todos sentaram-se para ouvir. “O mundo está acabando”, pensou André, “Essa confusão toda está acontecendo e estamos presos aqui”. Juntou os joelhos aos poucos e esperou. A música tocou até a metade antes do rádio voltar a um chiado estridente.
- Ah, droga!
João pareceu ter encontrado algo interessante.
- Ei, Pessoal! – Ele segurava um pedaço de papel duro e com uma foto. De certo um calendário. – Estamos em 3015!
Todos riram da própria miséria. Presos a quase mil anos na frente de onde nasceram. Isso é muita falta de sorte. E tudo porquê haviam brincado com o que não sabiam.
Lisa se levantou rapidamente.
- Ei, o que foi gatinha?
- A sua mochila.... – Disse Lisa.
André soltou a mochila no chão. Todos olharam para ela, tentando achar o que Lisa havia achado. Fracamente, uma luz azul saiu do tecido e iluminou o rosto de todos.
- É a máquina do tempo! Está funcionando.
Em choque, André tirou a máquina da mochila. Era um dispositivo circular e com vários segmentos luminosos. A máquina que trouxe eles para esse futuro horrível, onde os robôs haviam decidido matar a humanidade, e depois parou de funcionar completamente, deixando-os presos no tempo.
Todos tratavam a volta da máquina como a vinda de um messias, que os tiraria daquele mundo e os levaria para casa. Esperaram atentos, para ver o que iria acontecer. Lisa não aguentou a ansiedade, se agachou e começou a dar leves tapas na máquina.
- Funciona, seu pedaço de merd...
- Lisa, pare! – Disse André – Vai acabar quebrando e fodendo com tudo.
Foi então que um ruído chamou a atenção de todos. E não era um ruído qualquer, era um som sintético, uma mistura de chiados com uma voz grossa e gravada.
- Droga...
Enquanto a horda de robôs tentava arrombar o galpão, eles se armaram e esperaram que a máquina salvadora voltasse a funcionar.
***
O Cyberia era um Café, mas também servia como antro de experimentos científicos. A ciência já havia avançado em passos largos, principalmente no tocante a computação e física quântica. Estavam todos na Sala de Reuniões, uma sala que se escondia atrás de um fundo falso no corredor mais engordurado e mal iluminado do Café. Dr. Frankestein estava radiante, perto de sua nova invenção. Os jovens e seguidores do mestre pareciam não entender.
- O que é isso, velhote?
Dr. Frankestein andava pela sala, impaciente e ansioso.
- Nada mais, nada menos, do que uma máquina de teletransporte.
Uma súbita exclamação se fez de todos os ouvintes na sala. Pareciam extasiados. Dessa vez, o velho tinha ido longe demais. Conseguiam ouvir a música chata do Cyberia, com o ruído e tilintar de talheres, mas nada disso foi o suficiente para tirar a atenção do que Frankestein estava mostrando.
O dispositivo era circular – parecia um pula-pula, se houvesse uma lona por cima – e tinha muitos circuitos. Havia luz e alguns botões. Estética não era o ponto forte desse cientista. Mas as coisas feitas por ele sempre funcionavam, então os alunos não se atentaram muito para detalhes técnicos.
- E para onde ela leva? – Perguntou João.
- Talvez leve para o motel onde sua mãe transa com o velho Jack.
Jack era um caminhoneiro que passou a visitar a casa de João com frequência. Essas brincadeiras irritantes já faziam parte da personalidade de Lisa, e por isso não houve burburinho.
- Calem-se! – Exclamou Frankestein, enxugando a testa com um lenço engordurado – Essa máquina leva para o futuro! Ou para o passado. Como você desejar.
- Como você conseguiu isso, velhote? Pensei que não parava de punhetar...
- Não mesmo, cara biscate. Tenho feito muito mais do que vocês pensam. E, aliás, esse é um projeto secreto.
- E por que não testamos, então?
O experimento iria ocorrer em pouco tempo, e então a vida deles mudaria para sempre...
***
O Dr. Frankestein havia morrido já na primeira horda, quando eles apareceram em uma viela escura de algum lugar do Condado, só que mil anos no futuro. Não tiveram como processar muita coisa, já que os robôs eram espertos e sanguinários. Nunca passara pela cabeça de nenhum deles de que, no futuro, os humanos perderiam o controle sobre suas máquinas, muito mais inteligentes e ágeis do que o esperado nos anos dois mil.
E, enquanto o portão do galpão se quebrava com a força da horda, eles rezavam para que a droga do dispositivo funcionasse. Um estrondo chamou a atenção, e o portão veio abaixo. João soltou sua barra de ferro e se ajoelhou perto da máquina, dando socos nela.
- Pega, porra! Pega, merda!
- Nós vamos morrer...
Fora uma péssima ideia se esconder ali, mas o cansaço e tudo mais havia danificado suas mentes. Estavam loucos para descansar.
Quando a espada de um dos robôs atravessou João, a máquina funcionou, e Lisa apertou o botão. Foi como mágica, e a luz os levaram para mil anos no passado.
***
Quando Lisa abriu os olhos, demorou para reconhecer o Cyberia. O aroma adocicado de café estava há muito tempo sem adentrar suas narinas, e uma leve satisfação tomou conta de sua mente, mas só por um momento. Pois ela também demorou para reconhecer o braço que estava ao seu lado. O sangue já empapava sua saia, e quando ela percebeu que era a única na Sala de Reuniões, começou a gritar. Talvez Frankestein fosse mesmo só um velho punheteiro...