O FANTASMA DO SENADOR I – CLTS 17

O FANTASMA DO SENADOR I – CLTS 17

Valeria Guerra Reiter

Fim de tarde na Ilha de Paquetá, verão, um espetáculo à parte. Crianças, cães, senhoras, homens, mulheres, quase todos levando em suas mãos uma casquinha de sorvete, ou sorvendo um gostoso e nutritivo assai.

O bairro-ilha ainda mantém características peculiares. Tombada pelo IPHAN. Entre rugosidades do passado centenário e colonial, o ontem e o hoje se encontram neste recanto. A Pedra da Moreninha, que se localiza no fim da praia com nome homônimo é uma das atrações culturais e românticas da Pérola da Guanabara, alcunha que nos remete a um tempo inesquecível: os anos Dourados.

Não foi à toa que Orlando Silva nos versos abaixo homenageia lindamente a terra dos tamoios: “Nestas noites olorosas

Quando o mar, desfeito em rosas,

Se desfolha à lua cheia

Lembra a ilha um ninho oculto

Onde o amor celebra em culto

Todo encanto que o rodeia

Nos canteiros ondulantes

As nereidas incessantes”

Dizem que toda noite, uma noiva apaixonada, cujo o noivo fugiu do altar, aparece vestida de branco na Pedra da Moreninha. Ela se suicidou, se atirando às águas, nos idos dos anos Cinquenta.

E no ano de 1950, na pequena e histórica Ilha de Paquetá nasceu um menino bem robusto, ele trazia em sua bagagem hereditária o olhar de seu avô, a inteligência de sua mãe, e o colonialismo de seus antepassados latifundiários, ele atravessou a Baía de Guanabara, nos idos de 1980, para ocupar um cargo eletivo, em Brasília. Sua vida agora se resumia a jantares, sessões plenárias, e projetos-de-lei. Seus progenitores, mantinham a casa de veraneio na paradisíaca ilha, porém o povo ilhéu, principalmente os que residem na famosa Colônia de pescadores, nunca via a vida mudar...

As Escolas públicas locais, Municipal e Estadual por vezes não tinham verba para colocar nem merenda na mesa de seus alunos. E um filho da terra, ou melhor dizendo, da ilha: desfrutava do bom e do melhor no Parlamento público federal, sem pensar muito em boas políticas de alteridade social. O impacto que a desigualdade causa na vida do brasileiro é algo que beira à insanidade, no que o termo possa ter de assaz irresponsável.

Paquetá é um relicário, que guarda histórias e estórias, personagens como Dom João VI, Carlos Gomes, Pedro Bruno, Orestes Barbosa, Meia-Sete, Valéria Guerra Reiter, Ricardo Lomba, campeão internacional de tênis-de-mesa, lá residiram, e podem constatar que o local é um portal do presente, do passado e do futuro... para outras dimensões. Basta dizer, que a árvore Maria Gorda, um baobá centenário, mui visitado pelos turistas, caminha a noite pela Ilha. O baobá fora plantado na Praia dos Tamoios, em 1627, e costuma dar sorte.

Leandro, um pescador da ilha, que era trineto do escravo João Saudade, trazia no seu coração e mente, a verdade histórica, a que muitos chamavam de lenda, mas que segundo ele, era a verdade mais cristalina. Seu trisavô morria de saudade de sua trisavó, Januária, pois dela fora separado: após passarem por quarentena na Ilha de Brocoió, que se localiza em frente à Ilha de Paquetá. Lá naquelas décadas de escravidão no Brasil, muitas vezes, os casais eram separados, ao serem comprados por seus donos. E Laureano, o filho do casal, foi alijado do convívio de seu pai, quando o último permaneceu na Ilha nacional, e a escrava Januária foi levada à outras paragens, com seu filho.

Dizem, que o senador Rodrigo quando era pequeno viu o espectro do último cacique Guaixará (rei dos demônios) tomando banho de mar, na Praia do Parque Darke de Mattos, ele saiu correndo chorando, pois, o índio era muito alto e forte. Aliás, existe um busto em homenagem a este último índio tamoio, que morreu lutando bravamente contra os lusitanos imperialistas e dominadores. Parecia até que o infante burguês, já sabia o lado que ocuparia na História.

Dois dias consecutivos de muito sol na ilha, no ano de 2020, e o pescador exaurido volta a casa em um dia de janeiro, debaixo de chuva intensa e torrencial, muitos raios impactam sobre matacões, e ele sem medo, corre ao encontro de Maria, sua esposa e confidente. Ela, espera por ele, com bela moqueca. Muito católica, a Maria sempre ora às 18 h, e roga à Nossa Senhora, que nem ela, e nem seu esposo vejam o fantasma da praia. Ele sempre ressurge em época de raio (ela relembra) ao fazer o sinal da cruz.

A senhora de tez clara, olhos miúdos e azuis, escutou um longo assovio, quando se ajoelhou em frente a santinha mãe de Deus, que mantinha numa espécie de altar, onde era o quarto dos dois meninos seus: levados pela mão visceral da Dona morte. Vez em quando isto ocorria, porém Januária mantinha a prática diária, e nunca deixava que o medo a admoestasse. Naquela tarde, ela sentiu que algo muito estranho parecia lhe invadir o ser, e então redobrou suas rezas de 100 para 200 Pai-nossos, e de 150 para 300 ave-marias.

Maria tinha perdido seus dois filhos para os raios, eles também seguiram a tradição familiar: ser pescador. Leonel morreu em 2010, vitimado pelo raio perto da praia dos Frades. Já Amarildo, já havia chegado à porta de casa, trazendo uma corvina rosa de mais de um metro; quando levou uma facada certeira no coração, e teve seu peixe roubado;em 2013. Naquele dia ele poderia alimentar toda a sua família. Até hoje, ninguém sabe quem matou Amarildo. Só se sabe que o peixe foi roubado, por que Maria escutou o grito do filho, e acorreu ao portão, ouvindo seu último balbuciar, que dizia: ele pegou minha corvina mãe....

Tempos pandêmicos, e de pandemônio, mas Leandro continuava sua luta com o mar para trazer o sustento aos seus. Um dia de manhã bem cedinho, lá vai Leandro levando o samburá e o caniço, e sua rede preferida, para peixes grandes...ah como ele queria saber quem matou seu filho. E claro, que de quebra queria pescar uma corvina igual ou maior àquela afanada de Amarildo.

O pescador experiente se localizou na Ponte da Saudade, principalmente para lembrar do trisavô, que de lá gritava para a lua o levar para perto de sua amada esposa Januária e de seu filho Laureano. E realmente, em uma noite de lua cheia dos anos de 1800, ele fora levado. Bem, esta é a história lendária. Mas o pescador Leandro afirma ser realidade de fato. Antes de jogar a rede, ele pede ao “escravo” que o guarde. O homem não aparenta 79 anos, ele parece um touro. As horas passam e Leandro nem vê...

Meia-noite, e o homem sente fome, “não houve uma boa pesca”, mas o que fisgou daria um almoço e um jantar. E agora, o que direi a boa Maria? Ele caminhava solene, levando seus apetrechos de pescaria. As ruas da bela ilha estavam silenciosas, só se ouvia as onomatopeias costumeiras: grilos, sapos, o marulho. Passou pelo Cemitério o nosso herói pescador, fez o sinal da cruz, e parou um pouco para rezar pelos mortos. Continuava seu caminho... quando viu um vulto ao longe perto da praia da Guarda, que parecia de mulher, ele se aproximou vagarosamente; e o vulto adentrou o mar...

Acelerou o passo, e chegou perto da praia, o trineto de João Saudade, e vislumbrou uma senhora de cabelos longos, com vestido molhado e azul acenou para ele dizendo: - Meu trineto caro! Eu voltei. Seus pelos arrepiaram nos braços, e nas pernas: - Só voltei para lhe avisar, que Amarildo, Laureano e João, já estão de alforria, mas Leonel virou fantasma "marvado" e trabalha para o fantasma do senador, “Precisamos de reza fio”, para que ele se solte, e venha para o nosso lado. O tal de capitalismo é o câncer social. Muito cuidado quando andar por aí, pois a luxúria mata. E o fantasma do senador tem cobiça por tua próxima pesca farta. Ele transcende maldade fio, ele continua sendo a mola mestra do egoísmo do outro lado da vida. O senador Rodrigo na outra vida foi o fazendeiro da Fazendinha do Campo, que separou eu do teu trisavô, depois voltou como parlamentar para fazer o bem, e não cumpriu o prometido. Viveu no luxo, na mordomia, e nada fez pelo povo. Lembra quando na tua infância, teve aquela pescaria, e você fisgou duas corvinas rosas gigantes, com dez anos, naquele projeto de pesca do governo; pois é meu fio, ele não se conformou, e agora aterroriza todo pescador “dos bom”. Já pequeno ele era invejoso...nasceu rico, mas sem o talento. Não sabia dançar, nem nadar, nem andar de bicicleta, era um menino de ouro e vidro, nunca entrou nas praias da região, eu via tudo, eu sempre visitei você, e seus descendentes...sou tua guardiã, meu querido Leandro.

Quando a mulher terminou de falar a palavra “invejoso”, e virou a cabeça para olhar seu trineto, já não viu mais ele, viu apenas um fantasma levitando com uma faca na mão...que pingava sangue: e ao longe, uns 50 m a frente sorrindo e vestido de seda estava Leonel: fisionomia impávida e um chicote na mão. O que será agora de Dona Maria (a viúva)?

Só saberemos na parte II.

TEMA - FANTASMAS

Valéria Guerra
Enviado por Valéria Guerra em 04/11/2021
Reeditado em 06/02/2022
Código do texto: T7378637
Classificação de conteúdo: seguro
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