O salto mortal de Lolota
O salto mortal de Lolota (publicado originalmente na Usina de Letras)
A cadelinha Lolota não teria entrado para a crônica, e quiçá, para o paraíso, não fosse sua entrada atribulada e fogosa na Casa de Deus, e a improverbial bicuda que Padre Marciano lhe aplicou na barriga, de sorte a fazê-la voar pelos ares para esborrachar-se na quina de um banco da matriz de Nossa Senhora da Abadia.
Lolota viera da casa de um outro Padre, cujo sacristão, tio Alfie a recebera como herança, em meio a outros petrechos de feição mais eclesiástica. E tio Alfie, já rapazinho, tendo que deixar a povoação da Abadia à busca de oportunidade de trabalho, deixara todos seus teréns para trás, confiados à irmã mais velha Maria. E a já viúva, Maria, para alegrar sua filhinha Zezé, acolheu de bom gosto as doações do mano Alfie.
E uma história de afeição desenvolveu-se entre a menina e a cachorrinha. Mais que conto da carochinha, era o conto da cachorrinha. Uma de suas proezas foi uma latição infindável de quem ninguém sabia a causa, até que um padeiro, passando pelo local, espiou pela janela da sala e divisou, sobre a mesa de jantar uma cobrona de assustar. A eliminação da invasora serpente foi iminente, impenitente, excludente.
Peludinha, branquinha, Lolota passou a ser depositária de confiança crescente da gente com quem passara e viver, e foi se sentindo mais segura na companhia da coleguinha de folguedos, sempre sob a supervisão de Dona Maria.
E foi de compungida que Dona Maria transmutou-se em petrificada ao ver a cadelinha para os ares ser projetada, justamente depois de ter produzido sua primeira - e derradeira - ninhada.
O imperturbável perpetrador da crueldade continuou oficiando sua comunhão conforme lhe ditava a liturgia. Era reconhecido e temido pela severidade e intolerância com que coibia o que lhe parecesse traje impróprio às sacras oficiações.
Pouco mais de três décadas do acontecido vim a conhecer o Padre Marciano numa reunião diocesana do clero, em Divinópolis. Encanecido, ele contudo não dava sinais de decrepitude, porém pouco se manifestou no almoço com seus pares. Tenho a impressão até que me reconheceu como filho de Zezé...
Lolota não teve horizonte assim tão extenso, foi-se jovem cheia de vida, contorcendo-se em dores cerca de uma semana depois do golpe fatalizante.
Relatos posteriores dão conta que Marciano não era deste mundo da mansidão pregado por Cristo. Uma de suas diversões favoritas era espantar cavalos vadios que transitassem nas cercanias de sua igreja por meio de jatos de ácido, e de cujos pulos em desabalada carreira se comprazia, rindo, rindo a despregada bandeira.
Terá hoje na eternidade Lolota por companheira?