O PACTO SATÂNICO
Capítulo 1
O substrato de pensamento no qual se baseava o comportamento do poderoso empresário do ramo das telecomunicações, Caio de Mendonça Tavares, consubstanciava-se primordialmente no ocultismo. A fabulosa herança herdada de seu pai, Terêncio de Mendonça, a fortuna da família, possuíam as mesmas origens: os poderes das trevas.
Enquanto sorvia seu uísque de seis mil dólares, The Macallan, e tragava seu charuto Stradivarius, Caio fitava a sinistra figura de seu pai pintada num enorme quadro, pendurado na parede a leste do aposento. Sua mente absorta em tenebrosos pensamentos. Não via absolutamente saída para a sua situação.
O aposento no qual se instalara, uma espécie de escritório e biblioteca, cara e classicamente decorado. Era o local aonde sempre vinha para por suas ideias em ordem, planejar e refletir tanto sobre sua vida particular quanto sobre seus negócios.
A chácara Tavares-Mendonça, localizada em uma área nobre de São Paulo, servia também como ponto estratégico para seu traslado e acesso rápido a vários locais de seus interesses, como a sede de sua empresa, restaurantes, teatros e sua residência. A propriedade fora adquirida há mais de cinquenta anos por seu pai, que a reformara e reservara também um dos maiores cômodos para sinistros encontros de uma estranha irmandade. Até que no final da década de 1990, depois de uma daquelas estranhas reuniões. Enquanto bebia sozinho no ambiente, fora vitimado por um misterioso incêndio. Que destruiu a sala e parte da propriedade. Terêncio morrera deixando sua imensa fortuna para seu único herdeiro, seu filho Caio. Curiosamente, a pintura de seu retrato de corpo inteiro, fora encontrada intacta sob os escombros. Nem mesmo a moldura sequer fora chamuscada pelo incêndio.
Em sua escrivaninha farta de livros sobre ocultismo, Caio estudava e tentava encontrar uma forma de anular o pacto que fizera com as sombras. Seus pensamentos turbilhonavam em hipóteses absurdas, enquanto imagens mentais ganhavam formas espectrais horrendas com gargalhadas medonhas, lhe afirmando àquilo que ele já sabia em sua alma: “você está perdido”; “és um condenado”; “não é possível quebrar o pacto”...
Um suspiro de desânimo. Largou o copo com a bebida. Fechou os olhos, baixando a cabeça. Soltou uma baforada, e, num rompante, deu um golpe sobre os objetos em sua escrivaninha, derrubando-os. Caio levantou-se, e saiu da sala, pondo-se a caminhar aturdido pelo jardim ensolarado de sua propriedade.
“Não há saída como as vozes dos demônios me disseram”. “Estou condenado para sempre à arder nas chamas do inferno”; “Sou apenas um mero cadáver ambulante, a errar pelo mundo, enquanto aguarda a lâmina do ceifador, que irá me libertar do sofrimento deste mundo, e me precipitará nas chamas finais da segunda morte!”
Súbito, eis que um ínfimo ponto de luz surgiu à sua frente. Caio esfregou os olhos pensando estar alucinando, mas não... Pelos céus, não! Era uma manifestação visual luminosa e era real! Esse pequeno ponto de luz o guiou de volta a sua biblioteca, e parou defronte para a estante de livros embutida na parede no canto esquerdo da sala.
“O amor é a única força que pode te libertar” percebeu uma voz lhe dizer. Era uma voz feminina. Conhecida. Mas não lhe falava fisicamente, mas em sua cabeça, em sua mente. Era como se fosse telepatia. Seus olhos descreviam semicírculos olhado em volta, tentando encontrar de onde vinha a voz. Até perceber que era interna, vinha de dentro e não de fora.
“Céus! Estou ficando louco”.
De repente seu celular toca tirando-o do transe, era um dos membros da antiga seita de seu falecido pai à qual ele também pertencia. A conversa fora breve, apenas para confirmar os preparativos do Coven desta noite. Ao terminar a ligação, Caio sentiu um aperto em seu peito, e uma espécie de medo ao qual não estava acostumado a experimentar. Desde que tomara a decisão de mudar sua vida e quebrar o pacto que fizera com as trevas por influência de seu pai. Mas como?! Como poderia enfrentar e vencer esses maléficos poderes? O primeiro passo para esta batalha já fora dado. A tormenta se aproximava, porém, tudo o que sabia é que teria de lutar. Por sua vida, e por sua alma. Quanto a isso, sua intuição ainda não era bastante clara. Mas ao divisar o olhar inexpugnável de seu pai que o encarava na pintura, lembrou-se da luz que vira momentos antes, e que falara consigo. E isto lhe deu forças para fazer o que precisasse ser feito, para continuar... Isto lhe deu forças.
Capítulo 2
A Tavares-Telecom, um dos maiores impérios das telecomunicações do país, acabava de fechar um contrato milionário com uma multinacional estrangeira, que deverá aportar tecnologia, instalação de servidores de última geração, e manutenção dos mesmos, tanto na sede quanto nas subsidiárias da empresa. O que levará a gigante nacional a ampliar seus negócios e aumentar de forma monumental sua margem de lucro.
Na sala de reuniões, após a dispersão dos participantes, diretores, assessores, vice-presidente, permaneceram apenas Caio e um dos CEOS que fazia parte do coven satânico, conversando amenidades sobre o sucesso na celebração do contrato milionário com a multi estrangeira.
- E pensar que eles quase declinaram por causa da bagunça tributária desse país. – comentava o CEO Adriano C. Moraes com um sorriso ladino desenhado em seu rosto. – E isto é mais do que motivo para se comemorar – tornou. – Que acha de fazermos uma festinha daquelas hoje à noite, após o nosso cerimonial? Muitas mulheres, bebidas caras, muito sexo...
Caio que mal ouvia o que o outro dizia, parecia estar absorto em seus pensamentos, como hoje de manhã em sua chácara. Participara mecanicamente da reunião de fechamento do negócio, e parecia que outro eu seu era quem atuava de forma automática. Como presidente da companhia, Caio era quem sempre dava a palavra final sobre toda e qualquer decisão corporativa que precisasse ser tomada, além de intervir ativamente em toda parte estratégica e de planejamento. Mas, de umas semanas para cá, sua apatia fê-lo transferir suas responsabilidades e poder de decisão para o vice-presidente, e para o seu amigo de confiança de longa data, com quem conversava nesse momento.
Apesar de, no geral, a tal conversa parecer-se mais um monólogo, de vez em quando Caio soltava uma espécie de grunhido inarticulado, em resposta. Todavia, sobre a proposta de balada sugerida por Adriano, Caio protestara veementemente:
- De jeito nenhum! Sem festinhas! A assinatura desse contrato foi vantajosa para ambas as partes. E, nós bem sabemos que “forças” atuam para que nós sempre sejamos bem-sucedidos, não sabemos?! Não sei se esse “quê” de “vantagem desonesta”, preambula algum motivo para “comemoração”. – e, de súbito, Caio levantou-se num rompante deixando a mesa de reuniões.
Adriano sem entender a atitude do amigo, observou-o boquiaberto, enquanto o outro deteve-se na soleira da porta, lançando um olhar de soslaio para dentro da sala e arrematando:
- Certifique-se de que tudo está certo para a nossa cerimônia de hoje à noite, e que ninguém irá faltar.
Adriano aquiesceu com um aceno de cabeça, e um sorriso morto nos lábios. Caio saiu.
Enquanto dirigia seu Volvo XC40, lembrou-se da época em que foi feliz. Por um curto período de tempo, mas fora feliz. Permitira-se deixar contagiar por algo que jamais poderia. Havia jurado, em seu pacto de sangue. Poderia ter tudo o que quisesse. Tudo o que desejasse fortuna, sucesso, prazeres, mas jamais poderia amar. O amor estava fora dessa variável. Estava fora de questão. Pois quebrava a magia maligna. Não foi o que a voz de sua visão lhe dissera esta manhã?
“O amor é a única força que pode te libertar” – ele recordava. Ao mesmo tempo em que se lembrava de quem era a voz feminina, que lhe falara interiormente. Amanda. Sim, Amanda! Sua amada... Seus valores mudaram desde que a perdera num acidente trágico e fatal. As cenas de seu romance e da tragédia se sucediam num loop atormentador em sua mente. Enquanto o carro seguia em alta velocidade, e sua playlist tocava “Butterfly On A Wheel” da banda ‘The Mission’ em som altíssimo.
Por alguns momentos Caio sentiu uma sensação de liberdade. Poderia morrer agora. Estava tudo bem. Estava tudo bem! Ao baixar o vidro, sentiu o sabor do vento tocando o seu rosto, esvoaçando os seus cabelos.
Ele se recordava da noite de amor que tivera com Amanda quando viajaram de férias para a Austrália. Ahhhh... Sua bela, inteligente e amada Amanda.
“Love breaks the wings of a butterfly on a Wheel”.
“Love breaks the wings of a butterfly on a Wheel” – Caio cantava. Cantava, não. Berrava o refrão da música pela janela, enquanto sacudia feito um louco sua cabeça. A saudade o corroia. A tristeza e a dor o estraçalhavam por dentro. Queria morrer. Até pensou em suicidar-se. Espatifar seu carro contra algum poste ou muro...
Mas não. Não daria esse gostinho aos demônios que já tinham sua Alma como prêmio. Antes, queria burlar seu pacto, e dar o troco aos Espíritos Infernais que por capricho, apenas para a manutenção de uma regra imbecil e insensata: a de que ele jamais poderia amar, tiraram a única coisa que dava sentido a sua vida.
“Love breaks the wings of a butterfly on a Wheel...”
* * *
Adriano contatava os membros da seita, e fazia os últimos ajustes para a celebração ritual de hoje à noite. Falava com um tal de “Fred” pelo celular, uma figura sinistra e temida pelo coven. Comentava sobre o estranho e instável comportamento que Caio andava tendo ultimamente, e que “não podiam mais confiar na liderança do filho de Terêncio”.
Em clima de conspiração, finalizaram a conversa. Fred em sua residência num bairro luxuoso de São Paulo estava trajando um terno negro fino. Tinha um aspecto sereno, malévolo e impassível. Homem de meia idade, cabeça calva e espessos bigodes negros, e de olhos bem penetrantes e resolutos. Estava parado diante de um espelho negro, sem moldura e oval, de uns 90 centímetros, aproximadamente.
Havia uma espécie de névoa fantasmagórica serpenteando na superfície do espelho, etereamente. E Fred meneou afirmativamente a cabeça, como se estivesse se comunicando com a estranha presença.
* * *
Caio chegara a sua chácara, e, antes de abrir uma garrafa de uísque, e tornar sua consciência ébria, afogada em álcool para apaziguar um pouco a sua dor, lembrou-se, entretanto, dos “preparativos” que deveria fazer para o ritual de logo mais, e, pelos diabos! Não havia encontrado a solução para o seu caso bastante peculiar.
Observou, entrementes, um feixe bem fino de luz solar, atravessar por uma brecha da cortina, como laser, e entrar por uma fenda em sua estante de livros embutida na parede. Súbito, lembrou-se da visão que tivera hoje cedo. Da manifestação do ponto de luz em frente a essa mesma estante. De repente, como se houvesse tido um lampejo de percepção. Entendeu tudo.
“Mas pelo diabo!” – Caio começou procurar entre os livros, a remexê-los, puxá-los, tirá-los do lugar. Na altura que tivera a visão do ponto de luz, ao retirar alguns livros, lá estava, a fresta por onde agora passava o filete de luz solar. Ao apalpar essa pequena região da parede, percebeu que era oca. Apanhou uma chave de fenda em sua escrivaninha e cavoucou, golpeou a região, quebrando o acabamento e retirando os rebocos. Logo encontrou uma espécie de dispositivo. Praguejou por seu pai nunca ter-lhe dito nada sobre isto, mas, em seguida, acionou-o. Ouviu um estalo, e, a estante, tal como uma porta, destravou-se, revelando uma passagem secreta.
Capítulo 3
"Love breaks the wings of a butterfly on a wheel"
'Butterfly On A Wheel'
- The Mission
O “Grimório de Honório” livro negro de encantamentos e feitiços, que continha a Conjuração de demônios e do Príncipe das Trevas em pessoa, ricamente ilustrado com os sigilos mágicos dos espíritos e encadernado em couro, repousava sobre o criado mudo, ao lado da cama de Terêncio de Mendonça. Era 1998 – e chegara o grande dia! Seu filho, Caio, estava completando seu 13º aniversário. E, àquela noite, sua alma seria entregue ao demônio. Como era tradição daquela seita satânica, todo primogênito, deveria, ao completar 13 anos de idade, pactuar com Astaroth, um demônio poderoso, grão-duque do Abismo, e tido como o “guardião” daquela Confraria.
A entrega do primogênito consolidava a barganha com os poderes das trevas, e garantia aos membros da seita, ricos industriais, artistas famosos, empresários, políticos e playboys da alta sociedade, a manutenção de seus impérios, poder e influência na sociedade em geral.
A mulher de Terêncio acordara apreensiva esta manhã. Um aperto lhe oprimia o peito, e, ainda deitada sob lençóis de pura e voluptuosa seda, abraçara seu marido, encarando-o com um olhar que dizia mais do que palavras, seus olhos grandes, amendoados e vivazes denotavam medo, tristeza, angústia e reprovação pelo que estava para acontecer com o seu filho. Seu único filho! Já temendo pela reação de Terêncio, Moema não dizia uma palavra sequer, mas os seus gestos, olhares e comportamento demonstravam a sua desaprovação. Embora ela soubesse do envolvimento de seu marido com o Satanismo, Moema jamais o questionara ou o repreendera, sequer procurava tocar no assunto, mantendo sua discrição, tanto em relação aos negócios, quanto aos de orientação religiosa ou espiritual de seu marido. Terêncio possuía uma natureza fria e distante, mas a priori não era maléfico, segundo o juízo que ela fazia. Por sua vez, Moema não era religiosa, mas sabia muito bem de onde vinha a fortuna de sua família. Sempre viveu na abastança, tinha de tudo, do bom e do melhor, e nunca questionou nada. Nem a suposta frieza e “desamor” de Terêncio, que claramente mantinha amantes, com quem ele se encontrava após as suas reuniões de negócios, ou nas longas viagens que empreendia. Até agora permanecera quieta. Enquanto seu esposo vestia a máscara da indiferença, ela vestia a da cegueira dissimulada. Talvez por pura conveniência, ou quem sabe, por um condicionamento engendrado desde a sua infância por seus pais, cujos preceitos morais e éticos remontavam quase à idade média, no tocante ao conceberem a subserviência da mulher ante ao marido.
Mas o fato é que, agora, como uma leoa acuada, ela tentava reagir, não por si própria, mas para proteger a sua “cria”. E, Terêncio percebera isso. Não... Palavras não precisaram ser ditas. Apenas uma significativa troca de olhares na penumbra daquela luxuosa alcova foi suficiente qual telepatia, para tornar a comunicação perfeita: do que ela “não queria” para o seu filho.
Terêncio se levantou com aquele cacoete horrível, como se estivesse mascando uma “goma invisível”. Apanhou o “livro negro” de cima de sua mesinha de cabeceira, e sem dizer palavra, deixou o aposento, e a mulher permaneceu deitada, sorria enigmática.
Após o desjejum, o satanista dirigiu-se a um salão separado do casarão principal da propriedade. Uma espécie de templo. Lá, ele organizou os últimos preparativos para o coven dessa noite. Em seguida, parou defronte para o enorme quadro pendurado na parede, contendo a pintura de seu corpo inteiro. Fitou-a refletindo sobre uma decisão demasiada importante que tomara. Talvez a mais importante que já tomara em sua vida.
* * *
A vida é um estranho palco, onde, às vezes, passado e presente se mesclam criando um futuro incerto. Caio havia encontrado uma passagem secreta em sua biblioteca, à qual dava acesso a uma escadaria, que levava a túneis subterrâneos contíguos sob o casarão, e findava abaixo do grande salão separado, na parte sul da propriedade. Foi ali que encontrou um pequeno aposento empoeirado e escuro, onde seu pai guardara, antes de morrer, dentro de um pequeno baú, seu diário mágico e os pergaminhos contendo os pactos com os poderes das trevas, assinados com sangue. Caio iluminou o achado com a lanterna de seu telefone celular, e, afoitamente, desdobrou os dois pergaminhos contendo a escritura de suas almas ao demônio. Tinha uma vaga lembrança daquela noite fatídica, onde participou pela primeira vez do cerimonial, havia completado os seus treze anos de idade, e, juntara-se, usando um manto negro com capuz, aos irmãos daquela confraria, completando a numeração aziaga da seita, como o 13º participante.
Flashbacks com lembranças de seu passado juntavam-se às memórias registradas no diário mágico de seu pai, ao qual lia com sofreguidão, e que contava tudo o que acontecera naquela quarta-feira, 05 de agosto de 1998.
* * *
Frederico Eduardo Talbot era o evocador mais proficiente e poderoso daquela seita, desde os seus primórdios. Ele conseguia conjurar os demônios em sua forma visível, e colocá-los em contato com os outros irmãos, que não possuíam dotes mediúnicos. Àquela noite, em 1998, quando os preparativos para o contato com a realeza satânica de Astaroth e a consumação do pacto do menino estavam quase concluídos, surgira um entrevero entre o pai do mesmo e o evocador. Algo que Terêncio tentou confabular com “Fred”, e que não teve boa acolhida por este. A discussão seguiu acalorada, com troca de insultos, e por pouco não terminou em agressão física, não fosse a intervenção dos outros irmãos da seita. Ambos foram contidos antes que chegassem às vias de fato, e resolveram conduzir os trabalhos ritualísticos em nome e honra de Satã!
A atmosfera, já densa, e carregada pelo perfume dos incensos e de madeira de aveleira, e a fumaça inebriante que emanava dos turíbulos do altar das abominações, enevoando todo o templo, concorria para uma certa desorientação dos órgãos sensórios dos irmãos, ao mesmo tempo em que lhes excitava a “terceira vista”. Atento ao alinhamento astrológico, Fred ao ver aproximarem-se as horas planetárias de Mercúrio e da Lua, propícias ao início da evocação, subiu os sete degraus que separavam a área do altar a leste, da parte geral do templo. O piso ali dentro, era de mármore branco, e havia um enorme círculo dourado de proteção pintado no chão, contendo no interior ao seu redor, as palavras e sigilos apropriados. No lado sul deste, havia um círculo menor, onde cabiam no máximo duas pessoas, ao passo que no maior cabiam até dez pessoas juntas. Além destes, havia o círculo privado do evocador a sudeste, e bem defronte dele o triângulo de manifestação. E, finalmente, a sudoeste o círculo do demônio Astaroth, o qual seria evocado para a oferta da Alma do menino Caio. Ao redor deste círculo demoníaco estava escrito “Vem, Astaroth” três vezes, e em seu interior figurava o “sigilo” do espírito.
No interior do círculo maior, o evocador fez circumambulações sinestrógiras, entoado nomes bárbaros e divinos. Altamente concentrado, seus olhos ficaram totalmente brancos, parecendo não possuir mais pupilas e nem Iris, exibindo terrificamente suas escleróticas.
- Irmãos! – ele bradou. Sua voz ressoou como um trovão. – é chegada a hora! Entrem no círculo.
Sua ordem imperativa foi imediatamente cumprida, sem o mínimo de hesitação. Os irmãos vestiram seus cordões com um pentagrama invertido, e cobriram suas cabeças com o capuz negro de seus mantos, entrando no círculo maior. Terêncio e seu filho entraram no círculo menor.
O mago negro Fred foi até o altar e sacrificou um bebezinho com poucas semanas de vida, que ele havia sequestrado a essa manhã, para àquela operação macabra. A criança, que até então estava um pouco sedada, deitada sobre o rústico altar, mas acordada e quieta, emitiu um grunhido frágil quando Fred apunhalou-lhe o coração e exalou em seguida. Seu sangue percorreu pequenas trilhas no altar de pedra, e ia preenchendo lacunas onde havia palavras hebraicas e os signos do zodíaco esculpidos em alto relevo
O menino Caio olhou para o seu pai, repugnado com a cena.
- Pai... – ele começou a murmurar amedrontado. Mas Terêncio o interrompeu, e fez sinal de silêncio com o dedo indicador entre os lábios. O menino assentiu, voltando a observar cada detalhe do rito, apavorado.
O ar parecia carregado de eletricidade, após Fred aspergir um pouco do sangue do bebê sobre as brasas de incenso. Ele entrou em seu círculo de evocação, logo a seguir, voltando-se para o suposto local aonde o demônio iria se manifestar. Havia bastante incenso no entorno do círculo demoníaco, e a fumaça se propagava por todo o ambiente, irritando as vistas de alguns dos irmãos, fazendo-os lacrimejar.
Após todos estarem devidamente selados e isolados nos respectivos círculos, Fred deu início à evocação do espírito. Sacou sua espada e a varinha da Arte, e iniciou o encantamento: "Oh, Astaroth, Demônio Maligno, eu te adjuro pelas Palavras e Poder..."
No auge da evocação, o menino Caio tremia de pavor, enquanto seu pai o exortava que tivesse coragem. Logo tudo estaria acabado.
A atmosfera do templo coberta de fumaça parecia eletrificar-se cada vez mais e mais a cada conjuro proferido pelo mago negro. De modo que era possível sentir a energia tornar-se mais densa, chegando a oprimir os sentidos dos presentes. A Cadeia Mágica se fortaleceu, quando os irmãos satânicos começaram a proferir a fórmula de evocação em uníssono, de repente, dentro do círculo de Astaroth em meio a estampidos e manifestações físicas visuais de chispas elétricas, como num pequeno turbilhão, uma forma humana, uma entidade negra começava a ganhar corpo.
- Terêncio, agora! – ordenou Fred ao pai do menino. – entregue o pacto de seu filho! Confirme sua lealdade à nossa Confraria e ao nosso Guardião e Benfeitor, o Senhor Astaroth! Nosso único deus!
Súbito, Terêncio retira um filhote de hamster negro de debaixo do manto, e o solta no templo. Na mão esquerda ele detém o pergaminho contendo o pacto. O velhaco havia batizado o pequeno animalzinho com o nome completo de seu filho, e assinado o pergaminho com o sangue do hamster, e assim enganara a majestade satânica.
O animalzinho correu descoordenado para o vórtex de energia que emanava do círculo satânico de Astaroth, sendo completamente desintegrado. E, com isso, pondo fim à manifestação física e visível do espírito das trevas. O mago negro Fred que ficara estupefato com o ardil utilizado por “irmão Terêncio”, para burlar os poderes da escuridão, gritou ao ver a forma telérgica dissolver-se:
- Nãaaaaaaaaoooooooo!!!! Você não compreende o que fez?! Colocou todos nós em risco! Além do mais, podemos perder todo o poder, fortuna e influência que adquirimos e mantivemos por décadas!
- Acalme-se. – retorquiu Terêncio, seguro de si, deixando o seu círculo, abraçado ao filho. – eu sei muito bem o que fiz. Ninguém aqui está correndo riscos e nem vai perder nada.
- Ora como pode ter certeza?! – Fred quis saber saindo de seu círculo de evocação e aproximando-se de Terêncio.
Nesse momento, Terêncio guardou sob o manto, o pergaminho contendo o “pacto do pequeno hamster”, que “se explodiu” no redemoinho diabólico, e retirou o livro encadernado em couro de sua algibeira. Era o temível “Grimório de Honório”. Agilmente atirou-o nas mãos de Fred, com um sorriso cínico no rosto. “Leia isto”. Arrematou, deixando a sala do templo, acompanhado por seu filho Caio que parecia não entender nada do que se passava.
- Vai se arrepender por isto, Terêncio! – Fred ameaçou. Mas Terêncio não deu bola, dando-lhe as costas por resposta.
* * *
Ao terminar de ler essas últimas anotações no diário de seu pai, Caio soltou uma tremenda gargalhada! Sentiu-se aliviado, respirou profundamente, como há muito tempo não fazia! Estava livre, enfim. Não havia pacto, não havia nada, aliás, nunca houvera. Sua alma era livre! Seu pai o salvou àquela noite, quando ele ainda era apenas um menino, ao entregar o pequeno roedor no seu lugar ao demônio! A seita apenas o iludira todos esses anos, por causa do que o seu pai fizera. Por castigo à sua burla.
Era óbvio, no entanto, que isto dava um enfoque diferente às possíveis causas das mortes de seu pai e de sua namorada, que “pareceram acidentais”, mas que, provavelmente, foram orquestradas pela irmandade, por vingança.
Agora, seria questão de honra para ele investigar e descobrir toda a verdade sobre estes fatos, e punir os verdadeiros culpados.
Caio apanhou o seu celular e discou para o “frater” Adriano, que também era o CEO em sua Empresa de Telecomunicações. Assim que atendeu a ligação, o outro já ia começar com os “salamaleques” de “puxa-sacos” que lhe eram característicos, mas Caio atalhou-o.
- Adriano?!
- Sim, chefe!
- Contate todos os outros “fratres” e "sorores" de nossa irmandade, corrigindo, de minha “ex-irmandade”, e diga que nossa “reuniãozinha” de hoje à noite foi definitivamente cancelada.
Do outro lado da linha, Adriano engolia em seco, sem entender mais essa de seu “desatinado chefe”, no entanto, aquiesceu: “sim, chefe”.
- E, Adriano...
- Pois não?!
- Está demitido!
Caio desligou em seguida, contemplando o fundo do aposento sob o templo, onde ainda se encontrava, e recordou-se das palavras que ouvira do fantasma de sua namorada morta: “só o amor poderá salvá-lo”.
Agora ele compreendia tudo perfeitamente. O amor lhe mostrara a verdade, e esta, o libertara.
Caio sorria observando o ângulo reto da parede no fundo da sala. Agora ele podia ver! Lá estavam radiantes as aparições de seus pais e sua namorada, sorrindo de volta para ele.
Fim