OCULOS (ESPECIAL HALLOWEEN 2) - HISTÓRIA 28
Eu ganhei o espelho da minha avó. Na verdade foi uma herança, a única coisa que a megera me deixou.
Quando recebi a notícia da morte dela eu estava em uma zona perto de São Bento do Sapucaí, tomando uma breja e comendo uma puta. De vez em quando, quando a solidão apertava, eu fazia isso, afinal eu era a ovelha negra da família. Meus primos eram doutores, médicos, advogados, arquitetos e eu não passava do escritor de merda, o bosta que jogara fora todas as oportunidades que a vida me deu, o cara que não quis aceitar ser capacho da vovó rica e por isso deserdado.
Receber o telefonema dizendo que a velha batera as botas foi uma coisa inusitada, mas o que mais me surpreendeu foi saber que a velha tinha me deixado alguma coisa.
Eu cheguei quando o enterro já estava acabando e fui notado graças ao cano de descarga do Maverick 8 cilindros que dirigia.
Meus primos dirigiam carros importados caríssimos, Mercedes, BMW, esse tipo de coisa, mas o Felipe, a ovelha negra da família dirigia a merda de um Maverick 8 cilindros que fazia paredes estremecer ao ser ligado.
Desci do carro e acompanhei o enterro meio ao longe, quando acabou Jorge foi o único a vir falar comigo. Jorge era o menos cusão dos meus primos. Era empresário do ramo de transportes.
— Olá Felipe.
— Jorge… cheguei meio atrasado…
— Nada a ver. Pelo menos veio. Tudo certo?
— Sim.
— Vamos nos encontrar amanhã na mansão. Vai ser a leitura do testamento.
— Eu pensei que ela tinha me deixado de fora.
Jorge riu e disse:
— Ela não era tão má assim.
Mas ela era, porque a herança que ela me deixou foi um espelho.
Não era qualquer espelho, mas ainda assim era um espelho.
Era um espelho grande, de corpo inteiro, o formato era oval, sustentado por uma base de prata com quase dois metros de altura.
Era horrível, mas eu achei que ficou muito bem como parte da decoração vintage da minha casa. Sempre gostei de coisas antigas.
Mas eu não queria aquele espelho.
Quando o advogado da velha disse que eu precisava assinar os papéis para tomar posse da herança eu disse:
— Está de brincadeira meu chapa? Que merda é essa?! Me fizeram sair da minha casa para essa palhaçada?! Enfie o espelho na buceta daquela cadela velha! - Vi todos os olhos presentes se arregalaram como se eu tivesse acabado de blasfemar contra o Espírito Santo. E eu ainda completei: — Vão todos vocês tomar no cu.
Entendam… eu não tomei posse da herança, mas mesmo assim, dois dias depois, um pequeno caminhão de entregas bateu na minha porta e o espelho estava lá.
Pedi para os entregadores o colocarem para dentro e depois que ele foi embora fiquei algum tempo olhando para ele. Depois o arrastei para perto da janela da sala onde achei que ficaria legal deixá-lo. Gato apareceu miando e eu o peguei no colo. Ele era um gato bombaim que achei na rua e por algum motivo nunca consegui dar um nome a ele. Acabamos nos acostumando com Gato. Ele não reclamava.
— Isso mesmo Gato, meu chapa. Aquela cadela me deixou isso de herança. Espero que ela apodreça no inferno.
†
As coisas estranhas que aconteciam eram quase imperceptíveis. Na verdade Gato percebia mais do que eu. O instinto dos gatos é mais aguçado do que o dos seres humanos.
Eu encontrava Gato sentado diante do espelho, olhando para ele. Às vezes ele ficava horas ali, as orelhas em pé. Queria dizer que os pelos eriçados também, mas não tenho certeza.
O espelho, de repente parecia ter virado uma obsessão para gato. Ele sempre ficava pulando na frente dele, tentando pegar alguma coisa que não estava lá.
Eu estava no sofá, jogando videogame e tomando uma cerveja quando ele começou a agir daquela forma.
— Ei cara. Pare com isso. - Pausei o jogo e peguei Gato, que miou no meu colo. — Que negócio é esse cara? Você fica tentando pegar o próprio reflexo no espelho.
Eu dei um riso, Gato soltou mais um miado e então olhei para o espelho.
Vi o reflexo de uma sombra atrás de mim. Parecia uma mulher vestida de preto.
Senti-me gelado de alto a baixo e soltei um grito. Acho que Gato sentiu a coisa porque meu deu uma mordida e saiu em disparada.
Eu caí sentado no tapete e olhei para trás. E não havia ninguém lá.
Me levantei rapidamente e olhei para o espelho, vendo meu repleto aturdido. Fiquei olhando para ele por alguns instantes sentindo meu coração palpitar.
Me aproximei do espelho e o toquei. Não sei porque mas comecei a examinar a peça e um pensamento surgiu na minha mente: talvez eu devesse vender aquela merda. Ao menos ele parecia valer um bom dinheiro, mas eu me contentaria com uns cem reais no meu bolso só para tirar aquela porcaria da minha casa.
Olhei na parte de tirar do espelho. Havia um fundo de madeira que parecia ter sido comido por caruncho.
Havia uma mancha azul, perto do que parecia ser um ofício.
Olhei mais detidamente e percebi que a mancha era uma palavra que estava quase desbotada: Oculos.
Franzi o cenho e olhei para o orifício.
Enfiei o dedo e percebi que havia alguma coisa lá dentro.
Caminhei até a cozinha e voltei com uma faca, que utilizei para remover o fundo de madeira. Uma folha de papel caiu no chão.
Eu a peguei examinando-a e vi um mapa antigo. Um mapa que mostrava um lugar que aparentemente não estava em lugar nenhum do mundo.
O título do mapa era Grimhilde.
Franzi o cenho tentando puxar pela memória onde existia um lugar chamado Grimhilde, mas nada me veio à mente.
Talvez fosse um lugar inventado, algum desenho que alguma criança fez. A coisa parecia ser de fato o mapa de algum reino de contos de fadas.
Eu só não conseguia entender porque aquilo estava escondido atrás do fundo de um espelho.
Eu não sabia, e naquele momento não queria saber. larguei a folha sobre a mesa de centro da sala e voltei ao meu jogo que estava pausado.
††
Era como se eu não tivesse paz.
Desde que o espelho chegara eu me sentia observado dentro de casa.
Me lembro que era uma noite quente de outubro. Eu estava comendo com o ventilador ligado. Acordei de repente, sentindo a garganta seca, havia aquela sensação horrível de estar sendo observado, eu quase podia sentir olhos fitos em mim.
Me levantei e caminhei até o banheiro que ficava no corredor.
A luz do banheiro estava acesa. Sempre deixava a luz do banheiro acesa.
A casa estava mergulhada no mais absoluto silêncio.
Dei uma mijada no banheiro e depois fui até a cozinha, beber água. Passei pela sala e vi o espelho. Podia jurar ter visto o reflexo de uma mulher nele, mas forcei minha mente a acreditar que eu estava sonhando.
Abri a geladeira e estava tomando água quando o barulho da tv me fez derrubar o copo e soltar um grito.
Fui até a sala e a TV estava ligada.
Fiquei olhando para ela por alguns instantes. Acendeu a luz e viu Gato atacando o espelho, tentando pegar alguma coisa.
Revirei os olhos. Peguei o controle remoto e desliguei a TV.
— Gato. Pare com isso merda!
Peguei o gato e olhei para o espelho.
Meus olhos saltaram da órbita e eu soltei um grito.
Havia um olho refletido no espelho. Um único olho aberto olhando para mim.
Uma onda intensa de medo me invadiu e de repente a lâmpada da sala começou a piscar.
Olhei para o corredor na direção do meu quarto e vi uma sombra parada lá me olhando.
Então a coisa começou a correr na minha direção.
Eu soltei um grito, Gato também, e bateu em retirada.
Agarrei o ativador de brasas da lareira e golpeei o espelho que se espatifou em centenas de pedaços. Sei que dizem que quebrar espelhos dá sete anos de azar, mas eu nem liguei, espatifei o espelho e a coisa desapareceu. Não havia sombra alguma e a lâmpada voltou ao normal.
†††
Quando eu acordei, por volta das dez da manhã do dia seguinte, o espelho estava intacto. Eu o atingira com um pedaço de ferro, tinha certeza que ele havia se esmiuçado em centenas de caquinhos, mas o espelho estava intacto.
Peguei as chaves do carro e fui saindo, voltei e peguei o desenho que havia achado atrás do espelho.
Entrei na Maverick e saí.
Meu destino foi Pindamonhangaba, meu primo Jorge, que tinha 50 anos, 20 a mais do que eu me recebeu em seu escritório.
Ele examinou o mapa do estranho país chamado Grimhilde, depois olhou para mim e suspirou.
— Ela dizia que tinha vindo desse lugar.
— Mas que porra é essa? Onde fica esse lugar?
Jorge ficou inquieto.
— Você acredita que a vó era
louca, né?
— Bem… foi por isso que tivemos que interná-la. Nos últimos dias essa coisa tinha virado uma obsessão. Ela vivia falando de Grimhilde. Grimhilde era… era um Reino encantado.
Fiquei olhando para ele, tentando perceber se ele estava tirando onda da minha cara. Mas não havia qualquer traço disso em suas feições.
— Reino… você disse encantado?
— Sim… ela dizia. - Ele soltou um riso nervoso. — Ela dizia que era a rainha má da história de Branca de Neve e quentinha vindo de um lugar chamado Grimhilde, e que ela era a dona do espelho, espelho meu.
Eu abri a boca para dizer alguma coisa mas minha voz não saiu.
Jorge continuou:
— Aquele espelho que ela deixou pra você, ficava no quarto dela. Um dia a Rosana - Rosana era a mulher dele - subiu lá e ouviu ela falando. Ela dizia… falava… igual… igual na história: espelho, espelho meu… e… sei lá… minha mulher não é louca. Eu acredito nela. A Rosana disse que ouviu uma voz. Uma voz de homem. A voz respondeu alguma coisa. A Rosana disse que abriu a porta e encontrou só a vó. Não tinha homem algum.
Ficamos em silêncio. Eu estava tremendo. Uma onda de medo me invadia. Eu acho que estava branco naquele momento, como se tivesse visto um fantasma.
— Ela era louca Felipe. - Continuou Jorge. — Aquela maldita velha era louca.
††††
Eu me livrei do espelho naquela mesma semana. Tentei queimá-lo mas ele não pegou fogo, a solução foi jogá-lo no Rio Paraíba.
Mas naquele dia, quando voltei para casa depois da conversa que tive com Jorge, eu fiz uma coisa.
Cheguei em casa e Gato estava lá, sentado olhando para o espelho. O espelho que eu havia quebrado mas que estava intacto.
Me aproximei do gato e fiz carinho na cabeça dele.
Olhei para o espelho, suspirei e disse:
— Espelho, espelho meu.
Um rosto apareceu no espelho.
História baseada em uma ideia da autora Debora Queda.