O MURO

...

PARTE I - ELES, SEMPRE ELES

As altas muralhas ao redor de Citadina protegiam seus habitantes contra quaisquer ameaças externas. O nível superior destes muros servia de corredor e era ocupado por Vigilantes que se revezavam diuturnamente, permitindo visão ampla por longa distância. Em mais de duzentos anos houve pouca ou nenhuma situação grave de conflito. Todavia, a disciplina era severa por ordem direta do Guardião:

- É dever de cada um em Citadina proteger e defender a muralha com risco de sua vida. Quem não o fizer será punido e banido.

Não havia opção. A cidade era a muralha e a muralha era a cidade. A cidade era o mundo.

Ao redor de uma das muitas Santas Fogueiras de Citadina, os mais antigos repassavam as tradições e história sempre às 20 horas, conforme determinado no Livro de Regras Maior. As sagradas reuniões de aprendizado eram observadas rigorosamente pelos Tutores da Verdade, todos eles portando armas de grave calibre, algumas letais, outras nem tanto. Não vigiavam os ouvintes daquelas lições, sua atenção concentrava-se quase integralmente nos oradores. Um destes era Hamin Al-Bensair.

Nesta noite, o número de participantes do encontro para ouvir AL-Bensair estava nitidamente elevado. Faltavam poucos minutos para as 20 horas e o orador já se posicionara sobre a larga plataforma que lhe servia de destaque. A túnica roxa, marcada à altura do quadril pela faixa verde-escuro, davam à barba branca e longa do homem a aparência de um lenço a lhe tapar a boca. Às suas costas reinava o dístico símbolo de Citadina onde estavam representados a muralha, a morte e sua foice e a face do Guardião Eterno com seus olhos muito negros.

Al Bensair admirava a aglomeração quase a seus pés. Jovens ansiosos, adultos resignados, velhos cansados. Mais ao longe, o orador distinguia perfeitamente os muitos Tutores da Verdade em posição de sentido, ouvindo e aguardando o menor deslize seu para que despertassem como os antigos demônios da Outra Era.

- Tolos - disse ele de si pra si - todos tão tolos. Eu, o mais tolo de todos.

Um sorriso piscou sob os fios espessos de sua barba para afastar esse pensamento e o batido único de palmas indicou que era chegada a hora. Por 60 minutos a voz grave do orador discorreu sobre as dificuldades da Outra Era, a privação, as lutas, o desespero, a fuga, a salvação, a transição, a construção do reino e da muralha, o crescimento de Citadina e, por último, o perigo dos monstros para além do outro lado, famintos pelos corpos de todos. Seguiu integralmente a Cartilha da Libertação. Os Tutores da Verdade pareciam satisfeitos. As pessoas começaram a se dispersar. Entretanto, ele continuou para espanto de todos:

- Esta noite será diferente. Hoje, aquilo que nunca foi dito será. Basta.

A massa, apesar de ter compreendido as implicações da fala congelou-se aguardando o porvir. Os homens vigias da ordem ficaram por uma fração de segundo, pasmos. Nunca ouviram os pais de seus pais, também Tutores da Verdade, mencionarem algo assim, mas o reflexo dos anos de treinamento tomou posse de suas ações e forçou suas mãos às armas e estas aos ombros de pronto encaixadas na mira dos olhos. Os dedos não hesitaram. Não pensaram, reagiram. Não pensaram, atiraram, mas era tarde para impedir a última fala de Hamin Al Bensair:

- Nâo há monstros lá fora, eles estão aqui conosco, agora mesmo estão aqui conosco. A muralha está repleta de falhas. Procurem a luz. FUJAM, FUJAM....

.................................................................................................

Jeradib Muhn ouviu os disparos, concedeu um rápido levantar de olhos, mas retornou ao artefato sobre a mesa imediatamente, continuando o trabalho. No interior de sua residência uma pessoa no amplo sofá marrom, completamente imobilizada por cordas muito bem apertadas, observava as costas de Jeradib com ódio profundo. A mordaça a impedia de usar as palavras que tanto desejava, embora os olhos dissessem muita coisa. Apenas grunhidos e resmungos se ouviam no ambiente.

- Calma, meu amigo - falou Jeradib ainda de costas para o outro - estou terminando e logo saberemos a verdade. As mãos cortavam e uniam fios de diversas cores, luzes acendiam e desligavam no aparelho.

Lá fora, não havia confusão. Bensair fora discretamente removido do palco e todos os demais orientados quanto aos protocolos rotineiros. Não houve atropelo ou correria, gritos e choro. Foi como se o orador sequer tivesse existido um dia. Foi como se as últimas palavras ditas não tivessem sido ditas. Pelo menos, é o que se aparentava na superfície daquelas águas.

................................................................................................

OBS do autor:

O texto trará em si elementos de suspense, ficção científica e terror.

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 10/10/2021
Reeditado em 13/10/2021
Código do texto: T7360597
Classificação de conteúdo: seguro