Fragmentos de um trauma
O mundo, o seu, já não era mais o mesmo. Vivia tremendo, tendo crises. As lembranças eram muito recorrentes, chegava a surtar, no mínimo, três vezes por dia. E como se sentir melhor com aqueles olhares? Um misto de pena, medo e asco... Será que era assim que o Universo olhava para ele, também?
Pobre criança...
Os avós o acolheram, mesmo uma equipe de psiquiatras achando melhor que o mantivessem sob cuidados clínicos. Este que conto agora foi um dos surtos que o pobrezinho teve na nova casa. À tarde, quando o vô saíra e a vó conversava na rua, resolveu conhecer um pouco mais a sua morada. Vivia há uns meses nela, mas eram tantas intempéries que desconhecia muitas coisas. Foi andando - desajeitado, coitado - pelo corredor até chegar a uma porta que ao acaso escolheu abrir para explorar... era como um escritório do velho, metido às artes quando novo. Tinha uns varais com uns, em sua maioria, papéis carcomidos, mas com as pinturas bem conservadas. Muitas delas bem coloridas, com coisas felizes; era o primeiro varal. O segundo continha muitas coisas que envolviam o dia a dia dos trabalhadores. A terceira: santidades. A derradeira continha, em especial, uma que arrepiou o menino. Estava desenhado no papel um cirurgião segurando um bisturi que gotejava sangue, enquanto uma mulher, deitada, olhava sem olhar para lugar algum. Fez se lembrando de quando foi ao hospital, certa vez, como palhaço, para alegrar os doentes... passando pelo corredor, virou o rosto justamente na hora que o médico decidiu pela cesariana no parto complicado. Ficou marcada a imagem, eternizou-a ali. O bisturi... Sangue. Foi quando tudo ficou vermelho de novo. Tudo tão violento... O bisturi descendo com brutalidade, cortando a carne, um choro sendo sufocado, sufocos finais. Olhou para as mãos e viu sangue, muito sangue, escorrendo. Tudo se tingia disso. Restava gritar, pedir socorro, piedade. Mergulhava em mais um pesadelo vermelho...