A coletora de almas

A coletora de alma

João Athayde Paula

De repente sou acometido por uma dor no peito tão intensa que nem tenho forças para gritar; assim que me recupero, salto da cama, troco o pijama pingando suor por peças de roupa secas e saio em busca de não sei bem o quê. Noite de breu. Salvo as luzes de algumas residências e as lâmpadas ambarinas dos postes de iluminação pública, a escuridão engolfa o mundo. Cadê a lua e as estrelas do céu? Uma pergunta com todo o sentido, pois também não se vê nuvens ou mesmo manifestações atmosféricas como vento ou umidade de ar prometendo chuva.

Continuo andando e quando dou por mim, estou no meio de pessoas curtindo a noite em um parque de diversões. Esquadrinho o espaço recreativo como cão farejador da polícia, minhas narinas absorvem uma mistura de medo, angústia, desespero, desalento, desapego – ali, entre a multidão, alguém havia decidido ceifar a própria vida. Sinto uma enorme necessidade de ajudá-lo a não cometer tal desatino.

Caminho em meio ao povo seguindo o cheiro da morte, no estande de tiro ao alvo o fedor se concentra de tal forma que mal consigo acreditar que as pessoas continuem rindo, se abraçando, sem se aperceberem do miasma. Minhas narinas localizam o núcleo da exalação em duas adolescentes que, de espingardas de rolha em punho, tentam derrubar coelhinhos azuis e bonequinhas de pano. Tenho que descobrir qual delas irá se suicidar, para isso preciso iniciar algum tipo de conversação. Peço uma arma para a senhora atendente, ela simplesmente me ignora. Não compreendo, não há outros atiradores no estande, além de mim e das meninas, então por que sou ignorado? Grito com a atendente, esmurro o balcão. A senhora nem se digna a me olhar. O que diabos estaria acontecendo? Olho bem nos olhos da menina à minha esquerda, um clarão se faz em meu cérebro, ela empalidece como se descobrisse que eu havia desvendado a sua intenção de se matar.

– Nossa, que frio – a mocinha diz para si mesma. Volta-se para a senhora atendente. – Sentiu esse ar gelado? Veja, estou toda arrepiada – diz e estende o braço.

– Que gozado – diz a atendente ao segurar o cotovelo da menina. – Você tá que nem gelo. Ei, veja, o meu braço também ficou arrepiado. Deve ser alguma espécie de vento encanado.

– Não é vento, não tem vento nenhum aqui – diz a garota ao meu lado direito. – E eu também estou toda arrepiada. Vamos cair fora daqui, Mila.

As mocinhas pagam, deixam as armas sobre o balcão e tomam o rumo da roda-gigante. Sigo as duas. Em dado momento elas param de frente uma para a outra e se beijam voluptuosamente na boca. Fazem mútuas carícias corporais e choram de faces unidas, consigo captar a angústia de ambas, é de cortar o coração. Em seguida vão ao guichê e compram os bilhetes – em menos de um minuto sentam-se na cadeira do brinquedo panorâmico e ganham altura. Quando estão lá em cima, a tal Mila se lança no espaço.

A queda até o solo dura muito pouco, segundos talvez. Não sei como ela conseguiu destravar a barra de segurança do assento, aliás não faço a menor ideia do mecanismo da geringonça, uma vez que nunca dei passeio em rodas-gigantes, tenho medo de altura. Só sei que à minha volta as pessoas gritam, acorrem ao ponto de colisão, é muita gente se espremendo, muitos gritos, empurrões, comandos para se estabelecer a ordem. Aproximo-me do corpo. Há pouco sangue na boca de Mila, o pescoço havia se quebrado quando atingiu o solo de terra batida e tufos de grama pisoteada.

O que vejo a seguir é coisa de louco: uma mulher de olhos profundos, longas pernas e cabelos louros deita-se sobre o corpo de Mila e por ele é absorvida como que por encanto. Quando as sirenes da polícia e ambulância anunciam que estão se aproximando do parque, do corpo sem vida de Mila sobe uma substância azulada, dispersa, como se fosse uma névoa bem esquisita, ganha contornos humanos e num instante vejo a loura de longas pernas, bem aqui, ao meu lado. Olho apreensivo para as pessoas aglomeradas, ninguém ali parece ter presenciado o fenômeno bizarro. A loura, num gesto incompreensível, passa a mão pelos meus cabelos, sinto o contato cheiroso, olho-a nos olhos e o que vejo é um vazio abissal. Estou com medo, triste e com vontade de beber pelo menos um barril de cachaça.

A moça de olhos abissais então desaparece, assim, de repente. Some e pronto. Acho que fiquei em estado de choque por vários minutos porque, quando dou por mim, estou vagando por um beco calçado de paralelepípedos, a noite é calma, não há vento e a lua é bem esquisita. Caminho desanimado, às vezes tropeçando nas irregularidades dos blocos de pedra. Poderia voar? Depois de tudo que acabei de ver, nada mais poderia ser impossível. Dou dois ou três saltos, é claro que não posso voar, o que tivera há pouco fora um delírio, era isso, o impacto da morte da adolescente mexera com o meu cérebro. Minha mente neste momento está destrambelhada, acho mesmo que nem fui ao parque de diversões.

Caminho pela viela, chego numa pracinha e vejo no chão latas de cerveja amassadas, e a poucos metros quatro jovens sentados no encosto do banco, conversam, riem, passam um litro de pinga de mão em mão – é quando a vontade de beber gane dentro de mim, a vontade é tão grande que seria capaz de matar qualquer um dos carinhas por um trago.

Pedirei um trago ao rapaz que no momento bebe do gargalo, ou primeiro me confraternizo, tento me enturmar assim como quem não quer nada? Ah, não daria certo. Sou um cara tímido, complexado, sem autoestima, sou um bosta total, não consigo fazer amizade nem com animal doméstico, um cão, gato, qualquer bicho – por isso fico rondando os indivíduos, a boca cheia d’água ao ver a garrafa passando de mão em mão.

O cara que no momento está dando seu trago se desequilibra no encosto do banco, cai de costas no assento, o litro rola na grama maltratada, a turma se contorce de tanto rir. Observo o litro no chão. É a minha dica, antes que o sujeito se levante vou roubar a bebida e dar no pé, conta a meu favor o fato de ser magro, leve e ligeiro.

Seguro o litro pelo meio, mas não consigo erguê-lo do solo, é como se se pesasse uma tonelada. Desisto da tentativa com muita vontade de chorar. Um dos rapazes recolhe o casco, enfia o gargalo na boca e constata que não tem mais bebida. Diz um sonoro palavrão e lança o litro em direção ao poste de luz, a lâmpada explode e sob a chuva de estilhaços a turma bate palmas rindo e aplaudindo.

– Quero mais birita – diz um dos rapazes. – Ei Lino, seu pai é bebum, será que ele não tem uma garrafa escondida lá na sua casa?

– Meu pai tem é um engradado de pinga na despensa.

– Vai buscar a cachaça – diz o que parece ser o líder natural. ¬ – Preá, você vai com ele – ordena ao mais novo da turma

– Por quê?

– Você tá mais inteiro, não vai deixar a porra da garrafa cair.

– Eu vou sozinho – diz Lino. – É mais seguro. Vai que meu velho acorda, pensa que somos assaltantes e começa a dar tiros? Ele foi expulso da polícia porque é a porra de um maluco, não se lembram?

– Vai logo, merda – diz o líder.

Lino atravessa a rua meio tropeçando nas próprias pernas, eu vou atrás. No percurso de um quarteirão e meio ele se escora várias vezes nos muros das casas para não se estatelar no chão, ou então refreia os passos para vomitar nas raízes das árvores da calçada. Em dado momento sinto-me envolvido pelo cheiro da morte. Tento conter a caminhada do moleque segurando-o pela cintura, mas não tenho sucesso. Grito para que desista da maldita cachaça, apelo para que volte para juntos de seus amigos, sussurro em seus ouvidos que a morte deve estar logo ali, à espreita, será que não consegue sentir as emanações pútridas? Lino continua andando aos tropeços, indiferente aos meus apelos.

A residência de alvenaria dos pais de Lino é pintada de cinza, a porta da frente e da garagem são escarlates. O rapaz abre o portãozinho, entra, para em frente à escada que dá acesso à varanda. É uma maldita escada de tijolos e argamassa, sem corrimão e, ainda por cima, muito lisa, vê-se que é recoberta com massa fina e polida com cera. Lino estica-se nos degraus e vai se impulsionando para cima como se fosse uma cobra ou coisa que valha – então despenca pelas bordas, esparrama no solo ladrilhado e esfola a face logo abaixo do olho direito, talvez tenha trincado o osso porque o inchaço e quase instantâneo; teimoso, faz nova tentativa de subida, de novo vem ao chão.

Fico na torcida para que Lino tenha quebrado as pernas, que haja fratura exposta, ele tem que dar meia volta e fugir dali, estou quase sufocado com o terrível cheiro da morte escapando das entranhas da casa. Mas bêbado raramente se machuca severamente, sei disso por experiência própria – ele vai insistir.

Na terceira tentativa, Lino consegue vencer os obstáculos e se estirar no terraço, o peito arfando, o suor cobrindo o rosto e pescoço. Descansa dois minutos, levanta-se apoiando no braço duma cadeira de ferro e grossos fios de nylon entrelaçados. Aí entra na casa, usando a própria chave – eu entro junto. Neste exato momento, no quarto dos pais de Lino explode a discussão. O casal troca acusações, ouve-se o som de tapas, mais urros de raiva e o estampido brutal de uma arma de fogo mistura-se ao cheiro pestilento de pólvora. Uma voz esganiçada de mulher rasga o espaço como se fosse uma loba torrando no meio de chamas colossais – mas se cala repentinamente sob o impacto de outro estrondo mortífero. Vemos a porta do quarto se abrir e se enquadrar entre os batentes a figura de um gurizinho de uns oito ou nove anos lambuzado de sangue. Nas mãos, apontando em minha direção, um fumegante revólver Taurus provavelmente bem azeitado e gatilho suave à pressão. Acho quase inacreditável que uma criança saiba manipular de maneira correta semelhante máquina, a não ser que o pai o tenha instruído, essas insensatezes são mais comuns do que se imagina.

– Me dê esse trabuco, menino – eu digo. Ele continua olhando, mas não para diretamente mim, percebo, mas através de meu corpo. E abre fogo. A bala passa rente ao meu pescoço e atinge Lino, posicionado às minhas costas, entre os olhos: ele vai ao chão, de novo, só que desta vez em definitivo.

Então o menino joga o Taurus em cima duma poltrona e ruma para a cozinha, posso captar o súbito som da porta da geladeira rompendo o silêncio nefasto. Movido antes de tudo pela curiosidade, debruço-me sobre o corpo de Lino e verifico se há sinais de vida, não, Lino não tem pulsações. Vou ao quarto, o casal está imóvel – o pai fora atingido no coração, na mãe a bala entrara e saíra pelas laterais do pescoço, destruindo as veias jugulares. O que vejo de mais assustador é o sangue, é muito sangue, muito, muito sangue espalhado pelas paredes, nos móveis, na cama e principalmente no chão, sob os cadáveres, onde uma poça quase circular aumenta gradativamente com o passar dos segundos.

Volto à sala, sento-me no sofá. O gurizinho surge com um grande pote de sorvete, um desses de um quilo, liga o televisor e senta-se ao meu lado. É um filme de sexo explícito na tevê a cabo – uma família sensata deveria impedir acesso das crianças a esses canais através de senha segura, é o que penso. O menino engole colheradas no pote de sorvete, come de olhos pregados na tela, e ri, o gurizinho acha engraçado e às vezes pergunta ao lugar vago à sua direita: “Eu vou ficar com o pinto daquele tamanhão, pai?”

Ouço burburinhos, os tiros foram escutados nas vizinhanças, amigos ou curiosos estão reunidos na varanda e começam a bater na porta com muita força, o menino se põe de pé, o rosto enfezado, os olhos brilhantes de fúria; coloca o pote de sorvete na mesinha de centro e alcança o revólver no assento da poltrona no exato momento em que três pessoas, um homem e duas mulheres, adentram a sala atabalhoadamente – Lino havia deixado a porta destrancada, é lógico, uma vez que furtar a garrafa de pinga demoraria poucos minutos. E o garotinho abre fogo. Acerta os três invasores, o homem no estômago, a parte mais dolorida do corpo, por isso os urros ensurdecedores; uma das mulheres perde a metade da face esquerda e a outra tem o joelho destroçado. A criança continua apertando o gatilho, mesmo que não haja mais projéteis no tambor. Lá fora, escondidos debaixo da varanda, um dos vizinhos liga para a polícia e à emergência médica. E só deixam o esconderijo quando o socorro aparece.

Logo se instala a azáfama dentro de casa, investigadores, legistas, paramédicos, todo mundo andando para lá e para cá. Ninguém me vê ou me escuta. Antes de ser levada para a viatura policial, a criança pede à agente loura e de longas pernas esculturais que lhe passe o pote de sorvete pousado sobre a mesinha de centro – antes de atendê-lo, a mulher me olha com impressionantes olhos de profundidade abissal.

Uma dor profunda me rasga por dentro, minhas pernas estão fracas, o andar falseia, sinto que não tenho tutano nos ossos, meus olhos estão se fechando sem o comando do cérebro, posso cair subitamente e adormecer num estalar de dedos, ali, no meio daquelas pessoas estranhas, eu preciso me distanciar, procurar um refúgio para descansar meu corpo alquebrado.

Vou-me por uma ruazinha tropeçando nos paralelepípedos, amaldiçoando a noite de breu. Então, uma lua encantada lua surge no céu, imensa, clara como um globo de neon, e ilumina meu caminho como se fosse farol marítimo. Avisto uma residência que me parece abandonada e vou direto para o quarto de janelas arrancadas, garrafas vazias espalham-se pelos cantos, algumas quebradas, o cheiro de crack e vômito é quase insuportável – ratos comem sacos vazios e engordurados de batatas fritas, chiando de contentamento, os pernilongos formam nuvens sob a luz do luar, baratas grandes e cascudas rastejam, voejam, impelidas pelo banquete de imundície.

Sem tirar a roupa e os sapatos, me deito num colchão estripado com percevejos gordos e rútilos chafurdando no acúmulo de mofo e fezes humanas. Então a moça de olhos abissais surge ao lado do leito, Calça botinhas carrapetas, usa shortinho de brim e camiseta bege justa no busto sem sutiã. Diz numa voz sensual, mas consternada:

– Desculpe-me pelos transtornos que te causei, mas você não serve para a aprendiz de coletor de almas. Venha, vou te levar para sua casa.

Levanto-me, sem dor no corpo, sem amargura no peito, a alma flanando leve pelas sensações de paz. Ela me dá o braço, vamo-nos pelas ruas como um casal de namorados.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 07/10/2021
Código do texto: T7358366
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