O FIM

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Quando meu vizinho de porta foi levado pela unidade de atendimento emergencial hospitalar, muitos de nós nem soubemos no mesmo dia. Isso acontecia em várias partes da cidade por muitos motivos, principalmente na idade dele. A doença é fator onipresente na sociedade. O mesmo aconteceu quando nos avisaram que o vizinho não voltaria jamais. As lástimas de sempre consolando os vivos que, muitas vezes, nem se importavam realmente. Entretanto, quando mais e mais vizinhos, outras pessoas conhecidas de outros lugares, do trabalho, da escola, da infância, foram sendo levadas para não mais retornarem, entendemos que a coisa era séria, mas aí já não dava mais tempo de se fazer algo, aliás, nunca houve tempo ou possibilidade de se fazer alguma coisa mesmo. A solução era sentar e esperar ser contaminado. E morrer.

Todas as medidas governamentais foram infrutíferas. E por que não seriam? Geralmente, o governo é o pior estrategista nesses momentos, principalmente, nessa situação onde um maldito vírus surgiu do nada, veio como se possuísse asas de morcego, dentes de rato e foi muito bem recebido pelos abutres reinantes em todo canto desse mundo terrível. Imprensa, políticos, organizações sociais, igrejas, universidades, laboratórios médicos, cientistas, enfim, a gama toda aplaudiu e abriu caminho para a nova majestade virótica. Obviamente só poderia ter resultado no que resultou: extinção. Aliás, a quase extinção. Não contavam com fator teimosia inerente ao ser humano.

Quando o número de mortos atingiu a casa dos bilhões, a esperança fugiu levando consigo mala e cuia. Deixou apenas seis doses de vacina com reforço de três em três meses, deixou povos inteiros perturbados mentalmente, deixou economias destroçadas e deixou o grupo odioso de revolucionários de sempre, mas estes são inofensivos, classificam-se mais como idiotas que ameaça. Pois é, quando bilhões de lindos seres humanos foram catados pelo vírus, a teimosia do seo José da padaria apareceu, mesmo que da padaria restasse apenas o apelido.

Ele negou-se a morrer, melhor, negou-se a ser assassinado. Não fugiu, não se vacinou, não evitou pessoas, não deu a menor atenção para a praga. E ficou vivo. Pelos menos por mais algum tempo, até ser levado preso sob acusação de genocídio. Possivelmente estaria morto dias depois da captura. Seis bilhões, oitocentos milhões e mais uma vítima, contando com o seo José sem padaria.

Eu continuo aqui no meu quartinho. Faz-me companhia um raio de gato marrom que nunca diz outra coisa além do clássico miado monótono. Não posso me queixar de ausência de comida, pois com a derradeira partida de tantos conterrâneos, foi fácil abastecer um depósito grande com alimentos e gêneros de sobrevivência para, no mínimo, dez anos. Estou tranquilo.

Sim, sinto falta do barulho das ruas, das pessoas que conhecia e do futuro. O futuro foi a primeira vítima desse ataque infernal. Não sei se eles sabiam ou previram esse detalhe, mas não há futuro para a humanidade. Interessante é que com tanto tempo livre para meditar, concluí que o passado nos conduziu justamente para esse momento onde ele se encontraria com o presente e despediria o futuro para outra galáxia.

Suspeito que sou o único vivente nessa que foi um dia a metrópole que nunca pára, mas parou. Faço longas caminhadas todos os dias. Entro em edifícios e casas que nem imaginava existirem. Devo confessar que a experiência é boa, embora já tenha me aborrecido dessa rotina.

Bem, era só isso mesmo, nem sei porque me dei ao trabalho de registrar essas palavras, ninguém lerá. Talvez seja um último apelo à posteridade, visto que meu funeral será o mais vazio da história. Ontem senti um leve desconforto pulmonar. Hoje tive dificuldade para respirar, falta de ar, até pensei em procurar um hospital, conforme orientação do canastrão lá do início da desgraça, mas apenas sorri do infeliz e da minha própria infelicidade. Talvez se tivéssemos eliminado os agentes propagadores do vírus, aqueles que receitaram tantos placebos e comportamentos antissociais, quem sabe teríamos morrido menos, mas o leite derramou. Agora é sentar e esperar.

É noite agora, o silêncio é assustador. Ouço um ronronar e isso me conforta um instante, afinal não morrerei tão sozinho, haverá um bicho me assistindo. Apurei o ouvido para localizar o animal e, quem sabe, dar-lhe um último carinho, então constatei que o chiado vinha do meu próprio peito na ânsia de conseguir mais alguns litros de ar. Fica a lição: não conte nunca com apoio de gatos ou de homens.

Adeus, eu diria, mas soa tão definitivo. Até mais, então.

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 18/09/2021
Reeditado em 18/09/2021
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