A CAMINHANTE DA NOITE

Quando uma nesga de sol venceu a brecha na persiana incidindo diretamente sobre meus olhos, sobressaltei, quase caindo da poltrona na qual passara as últimas horas da madrugada. Um gosto amargo, resquício da mescla de uísque e café, inundava a minha boca me lembrando dos motivos que me fizeram embarcar naquela viagem.

Sobre minhas costas já pesavam mais de três décadas de bons serviços prestados à polícia metropolitana, e já era possível sentir o toque do justo descanso, a aposentadoria distava apenas alguns meses. Mas os últimos acontecimentos fizeram com que as caminhadas na beira da praia e os programas esportivos fossem deixados de lado, pelo menos até que eu pudesse por as mãos no responsável por aquelas atrocidades.

Vejam, não que a violência urbana fosse alguma novidade no nosso cotidiano, longe disso, mas o que me deixava intrigado e incapaz de descansar correspondia à maneira, digamos, incomum relacionada ao que estava diante de nós.

A garota encontrada na noite passada já era a quarta vítima só no mês corrente. Ela ainda não havia sido identificada, mas não aparentava ter mais de vinte anos de idade. Seu corpo apresentava exatamente as mesmas características dos demais: ressequido, com os membros retorcidos, como se tivesse experimentado uma dor lancinante, exangue e com uma expressão de total e absoluto pavor.

Não havia nela ou em qualquer um dos outros nenhuma marca de incisão por arma branca ou de fogo, tampouco sinais de lacerações ou violência perceptível de qualquer modo. A única coisa que compartilhavam de modo comprovado era a dilatação nos poros em sua pele, algo identificado pelo exame de autópsia, e pouco perceptível a um simples bater de olhos.

Apesar de eu ser um oficial da lei e trabalhar com fatos, evidência e com a ciência, sempre carreguei comigo muito do misticismo de minha mãe e flertar com o sobrenatural não era algo que me fugisse. E, por mais que meus colegas e comandados tentassem obter alguma explicação no plano da normalidade, aos meus olhos era cada vez mais evidente que estávamos diante de algo que flertava com as características próprias dos eventos, coisas e situações que fogem aos domínios desse plano. O que era exatamente eu ainda não sabia, mas não desistiria até descobrir.

Já havia se passado quase uma semana desde que encontramos o corpo de Ariane, esse era o nome da garota, jogado naquele beco. Ela tinha vinte e dois anos e saíra da faculdade, curso de administração, sozinha naquela noite, pelo que apuramos. Nada que pudéssemos vincular com os outros crimes. Não havia um padrão comportamental ou de ambiente, por assim dizer. Eu estava em casa, diante da tela vazia do computador, tentando encontrar alguma luz em meio ao turbilhão de trevas insolúveis que nublavam meus pensamentos, quando uma mensagem no celular quebrou o transe hipnótico na qual estava mergulhado.

As linhas no display do aparelho diziam que mais uma vítima havia sido encontrada nas ruas isoladas do bairro industrial, mas, para minha surpresa, esta ainda estava viva! Firmei as pernas no chão e os rodízios da cadeira me lançaram para trás, quase fui ao chão, o copo de café espatifou-se atirando cacos de vidro e líquido já frio em todas as direções.

Com a urgência a comandar minhas ações, agarrei o sobretudo e a pistola carregada e corri na direção da garagem. Torci o punho da motocicleta com ímpeto, na ânsia de que as rodas pudessem vencer a distância de modo mais acelerado do que as batidas ferozes do meu coração. A borracha lutava em busca de aderência junto ao asfalto úmido. Por mais de uma vez quase perdi o controle do veículo, mas consegui chagar aos prédios abandonados que um dia configuraram o imponente bairro industrial, antes mesmo da ambulância.

A vítima era uma mulher. Aparentava uns trinta, trinta e cinco anos no máximo. Estava desacordada, porém seu tórax subia e descia de modo vertiginoso. E agora eu conseguia entender o porquê de não haver uma só gota de sangue nas vítimas anteriores. Por toda a pele da mulher o líquido vital escorria farto. Por toda a extensão da epiderme havia inúmeros buracos coincidindo com os poros, como se estes tivessem aumentado de diâmetro, servindo de vertedouro da vida. Era uma cena dantesca, algo que desafiava o estômago dos homens ali presentes.

Os paramédicos tratavam de levar a jovem para o interior do veículo de socorro, ao passo que um dos meus rapazes me dizia que um morador de rua fora o responsável por pedir ajuda. Ele disse que viu uma outra mulher atacar a vítima, mas que a agressora surgira do nada em meios às sombras, como se nunca tivesse estado lá num segundo e no outro se agarrava à jovem que lutava pela vida. As duas rolaram pelo chão em combate, mas que a estranha fugiu assim que as pessoas que acompanhavam a testemunha se aproximaram com paus e pedras em defesa da mulher atacada.

Pedi para que o policial me levasse até o morador de rua para que eu pudesse ter com ele. A testemunha estava enrolada num cobertor velho sob as marquises de um dos prédios tentando se proteger da chuva fina que insistia em cair. Ao ser arguido, ele me disse que seus amigos e ele faziam das ruínas moradia, mas que todos fugiram tão logo a polícia chegou, pois tinham medo de sofrerem algum tipo de represália, só ele havia ficado para vigiar a moça e explicar o ocorrido.

Perguntei se ele havia visto a agressora. Ele me pediu um cigarro. Juro que tentava parar com o vício, mas sempre carregava um maço comigo. Joguei o pacote para o velho e lhe ofereci o isqueiro. O sujeito tragou e soltou uma baforada densa antes de seguir com o relato. Seus olhos arregalaram-se enquanto tentava buscar as palavras mais apropriadas para descrever o que vira.

“Chefia, eu a vi muito bem. Muito bem mesmo. E posso lhe garantir que não consegui um só gole de aguardente para me aquecer nessa noite fria. Logo, sei que não estou alucinando. Aquela mulher, a que agarrou a pobre moça, era um demônio, chefia, era isso o que ela era. Eu olhei diretamente nos seus olhos e o que vi foi a morte envolta num brilho rubro. Tao logo ela abraçou a mulher, esta começou a sangrar como se mil lâminas a estivessem esfaqueando”.

Suspirei e agradeci. Sabia que ninguém daria ouvidos àquele bêbado, mas, no fundo do meu coração, tinha certeza de que o que ele dizia fazia sentido. Eu já estava me preparando para deixá-lo, quando ele me chamou:

“Chefia, tem mais. Eu já tinha visto a moça atacada por aqui algumas vezes. Não sei se isso ajuda, mas, apesar de não aparentar, penso que ela não tinha um teto sobre a cabeça, assim como a gente. Ninguém que tem um lar vem parar nesse fim de mundo abandonado aqui. Não sei se ajuda”.

Ajuda. Ajuda sim. Pensei comigo mesmo, mas não disse a ele. Apenas virei e segui meu caminho. A informação era importante e poderia dar uma guinada na minha linha de investigação. Afinal, era possível que houvesse sim uma escolha prévia das vítimas e que não fosse algo aleatório ou ao acaso. Talvez a mulher no hospital estivesse se escondendo da agressora nessas ruínas por já saber que era caçada, mas isso só descobriria se fosse falar com ela.

Meus homens já tinham deixado o local, apenas pedi que um deles montasse guarda na porta da UTI. Não era comum nesse tipo de caso, mas algo me dizia que era o mais prudente a fazer. Subi na motocicleta e segui na direção do Hospital Geral. Quando cheguei ao local, fui informado que a mulher já tinha recebido transfusão de sangue, além dos cuidados básicos e que estava em um quarto, já havia deixado a unidade de tratamento intensivo.

Cumprimentei o policial que vigiava a entrada do recinto e entrei. A jovem parecia bem melhor. Os poros dilatados já haviam regredido a uma aparência quase normal, mas ela ainda dormia, de certo por ação de algum sedativo. Decidi que ficaria ali até que despertasse e pudesse trazer alguma luz a tudo aquilo que acontecia na cidade nas últimas semanas.

Recostei numa cadeira e me deixei levar pelos pensamentos. Só percebi que havia adormecido quando despertei de súbito com o som de algo se chocando contra a porta do quarto. A vítima ainda dormia. As pancadas intercalavam-se na folha de madeira, era uma agitação do lado de fora muito além da normalidade. Mas, antes que eu pudesse abrir a porta para averiguar, esta veio abaixo com o policial sobre ela e, para a minha surpresa e, confesso, desespero, uma estranha que deduzi no mesmo instante ser a pessoa que eu caçava.

A mulher era alta, muito alta, com longos e espessos cabelos negros. Quando olhei para seu rosto me lembrei das palavras do sem-teto, era possível ver a morte rubra em seus olhos.

Num ato reflexo, meu comandado sacou sua arma, mas não teve tempo para colocá-la em uso. A estranha saltou sobre ele proferindo um urro bestial. Ela o agarrou e então pude ver, e só acredito porque, de fato, estava presenciando, inúmeros, incontáveis, filamentos se desprendendo de seu corpo e se conectando à pele do policial, infiltrando-se em seus poros. Aquela mulher-demônio drenava a vida do rapaz, que se retorcia, enquanto tentava se desvencilhar inutilmente do abraço da morte.

De certo, ela havia invadido o hospital para terminar o que havia começado com a moça. Mas suas noites de matança teriam um fim naquele instante. Saquei a pistola e disparei com convicção contra sua cabeça. O impacto fez com que fosse projetada para trás, mas penso que não a tempo de salvar a vida do policial.

Aproximei-me, ao passo que ela se levantou. Disparei novamente, dessa vez contra seu tórax. Os projéteis a atingiam e seu corpo balançava como numa dança desajeitada. Coloquei outro pente e efetuei novos disparos. Ela foi ao chão. Eu me lembro muito bem de como acabar com essa raça de demônio.

Desconectei o suporte de soro do pedestal e improvisei uma lança. Coloquei o pé direito sobre seu pescoço. A mulher cuspia sangue e esboçava falar algo.

“Seu...seu tolo. Não é a mim que deves temer. Eu...eu...só tiro da natureza o suficiente para viver. Só...só queria acabar com os...os excessos...com as…”.

Não teve tempo de terminar a sentença. Cravei com toda a força a lança improvisada em seu coração, pondo um fim nas suas andanças pela noite. No entanto, antes de suspirar aliviado. Senti os pelos da nuca eriçarem-se por conta de uma lufada de ar gelado.

“Ela tem razão, policial”.

Virei e me deparei com a mulher vítima do demônio de pé sobre o leito. Estava melhor do que jamais poderia ter estado na vida.

“Minha tola irmã de caça quis me privar do meu sagrado direito. Não irei mais me contentar com migalhas e abaterei quantos eu quiser. Ela tentou me deter e quase conseguiu, mas não teve o pulso firme necessário para por um fim naqueles que a interromperam. E vocês me alimentaram muito bem enquanto estava necessitada, obrigado”.

Tentei alvejá-la como fiz com a outra, mas não tive tempo. Essa fora mais rápida e brutal. Fui jogado no chão e imobilizado com um firme abraço. Senti meu corpo ser invadido e minha vida se esvair. Minha visão ficou turva e pesada. A dor, lancinante no início, aos poucos foi me deixando...assim como a vida.

“Eu sou a caminhante da noite. E estou livre novamente”.

A mulher saltou a janela e ganhou a noite.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 12/09/2021
Reeditado em 12/09/2021
Código do texto: T7340708
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