OS FANTASMAS DA FAZENDA FARROUPILHA.
O imponente casarão branco e de janelas azuis domina a bela paisagem. Aos pés da serra, ladeado de ipês amarelos e roxos, é uma fotografia de um passado que não volta mais. As sete casas da colônia, o pátio de café e o monjolo de água completam o belo cenário. O riacho corre ao lado, mansamente. O velho carro de boi, a sombra da figueira, tem as pesadas rodas fincadas na terra. Só quem se aproxima percebe a existência de uma senzala, nos fundos da fazenda. O tronco dos castigos de antigos escravos ainda está alí, lembrando os tempos da escravidão. Um carro passou pela porteira da fazenda Farroupilha e levantou poeira. -"Eu nasci num recanto feliz, bem distante da povoação." O rapaz cantava junto com a música no som do carro. Ele desceu e jogou o boné para o alto. Deu a volta no veículo e puxou a moça pra fora. -"É nossa, Maristela. Nossa." A moça pulou nos braços dele. Marcelo rodopiou. Eles caíram no gramado. -"Isso é o paraíso, Marcelo. Você conseguiu!" O rapaz abriu um cooler, na traseira do carro. -"Vamos brindar com cerveja, querida. Isso tudo é nosso." A moça estava muito feliz. -"Muito melhor que as fotos no site. As casas da colônia, posso transformar em chalés. O pátio vai dar uma pista de dança maneira. O casarão será o restaurante. Amei tudo isso." Arquiteta de formação, Maristela estava entusiasmada. Marcelo abriu o casarão. -"Anota aí, amor. Temos que trocar essa fechadura antiga." A porta grande de madeira rangeu. O piso barulhento de madeira antiga. O vento entrou furioso ao abrirem.as janelas. Os lençóis brancos sobre os móveis coloniais. Maristela espirrou e sentiu um arrepio. -"Estou com medo, Marcelo." O rapaz a abraçou. -"Arrepiada, com esse calor de Cuiabá? Vamos até o primeiro andar." O rapaz correu e subiu as escadas. O pé afundou numa tábua podre. Marcelo caiu mas conseguiu segurar no corrimão. A moça o socorreu. -"Idiota. Esse lugar está caindo aos pedaços. Machucou?" O rapaz mostrou a perna ralada. -"Não. Estou bem." Mancando, o rapaz abriu a porta do quarto. -"Uau. Parece cenário de novela das seis. Essa cama vale uma fortuna." A cabeceira da cama era toda em mogno, entalhada e envernizada. Marcelo quis pular na cama mas a namorada o deteve. -"Não faça isso, amor. Está empoeirada." O rapaz foi até a janela. A vista era linda. -"Vamos ter que dormir aqui. Há outros quartos mas esse é o principal. Dizem que dom Pedro segundo passou uma noite aqui, a caminho de Santos." A moça ficou decepcionada na cozinha. -"Não há microondas. Um fogão a lenha é o que temos." Marcelo sorriu. -"Temos lanches no carro. O pessoal chegará amanhã e nossa casa vai ganhar novos ares." Eles andaram pelo lugar, sempre fazendo planos. A porta da senzala estava semiaberta. Marcelo abriu a porta e assustou quando alguns morcegos saíram. As janelas abertas deixaram a luz do sol entrar, revelando a triste atmosfera dali. Maristela tapou a boca. Marcelo acendeu a lanterna. Os ferros de torturas dos negros, tudo alí. As correntes penduradas nas paredes. O chão de terra batida. -"Impossível fazer um restaurante aqui, Marcelo. É muito triste e sombrio." O rapaz concordou, enxugando uma lágrima. O casal foi até a frente do casarão. -" Vou pegar água e passar um pano úmido no quarto. Vai cair a noite, pegue as velas no carro." Marcelo obedeceu, afinal a namorada tinha sido escoteira na adolescência. Maristela optou em usar sacos pra dormir. Não confiava naquela cama antiga e suntuosa mas com colchão de palhas de milho. A noite caiu. O casarão ficou iluminado pelas velas. O casal comeu um lanche frio, na grande mesa da sala de estar. -"Não há fotos da família Alvarenga. Estranho." Disse a moça, atenta a cada detalhe. Marcelo bocejou. Maristela trancou a porta principal. O casal subiu até o quarto. -"Dormir sem banho não dá. Não temos chuveiro nem água encanada." A moça abriu os sacos de dormir. -"Deixe uma janela aberta, amor. Está abafado aqui em cima." Marcelo obedeceu. O casal se deitou. O barulho de sapos e grilos. Um silêncio tumular. -"Marcelo, podemos fazer um museu na senzala. Vou fazer outro projeto pra escada, em caracol talvez." A moça parou de falar ao perceber que o rapaz roncava. Maristela desligou a lanterna e se aninhou perto dele. Maristela se levantou e foi até a cama. Um belo rapaz negro a chamava. -"Não tenha medo, Luciana. Estou aqui." Maristela queria responder que não era Luciana mas a voz não saiu. Ela subiu na cama e beijou o rapaz. O vento entrou pela janela e levantou os lençóis. O casal sou meio aos lençóis e Maristela se viu envolvida pelo amor. O rapaz a tomou nos braços e desceu as escadas. A porta se abriu sozinha. O rapaz foi até o riacho. Ele era sorridente e muito forte. O casal entrou na água. -"Eu precisava de um banho, Roque." Ela tapou a boca. Como sabia o nome daquele rapaz?! O rapaz a beijou. -"Vamos fugir, Luciana. Há um quilombo a seis dias daqui." Os tiros. A senzala sendo devorada pelas chamas. Os cavalos. O capitã do mato gritando palavrões. O coronel Alvarenga com o bacamarte nas mãos. -"Luciana. Onde está você?" Os negros fugindo da fazenda. Um tiro. Roque caiu na água. Maristela se desesperou. -"Papai. Assassino." O sangue do escravo coloriu as águas. O coronel fez um sinal ao capitão do mato. Marcelino era apaixonado pela filha do patrão, barão do café. A moça estava prometida ao médico Raul Pompéia mas se apaixonou por Roque, um escravo gentil e bom. -"Ela é sua, Marcelino. Faça o que quiser, não é mais minha filha." O capitão sorriu, maquiavélico. O chicote cortou o ar. A corda enrolou no pescoço da moça. O fino vestido rendado sujou na beira malacenta do riacho. Maristela colocou as mãos no pescoço. O homem mau puxou a corda e a moça foi arrastada por alguns metros. A esposa do barão estava em prantos. Dulcinéia sentiu uma dor no peito. -"Ela está grávida, meu marido. Grávida de Roque." O homem ficou imóvel. -"Esse negro é meu filho. Meu filho com a mucama Filomena." Dulcinéia caiu morta. O capitão do mato abusou de Maristela. Os capangas do capitão do mato riam da cena animalesca. O capitão do mato sentiu o cano de um revólver na sua cabeça. Um tiro certeiro. -"Já teve, já basta." Disse o barão Alvarenga. A arma apontada pra filha. Um tiro apenas. Maristela sentiu a vida escapando. O ar faltando. O beijo gelado da morte. Ela gritou. -"Nãooo...." Marcelo deu um salto. Agarrou a lanterna. -"Jesus. Quer matar do coração, é?!" A namorada sentada. O pijama molhado de suor. Olhos arregalados. -"Ele me matou. Meu pai me matou." Marcelo pegou uma garrafinha de água. A moça tomou, entre soluços. Marcelo a abraçou e a acalmou. Maristela dormiu nos braços do namorado. Marcelo recordou a primeira ida a imobiliária, há quatro meses. Uma investida, após semanas de pesquisa na internet. A oferta da fazenda Farroupilha não saía de sua cabeça, virando fixação. Era um lugar afastado dos centros urbanos. Uma guinada na sua vida. Conseguiu convencer a namorada a aderir ao projeto. O casal adiou o casamento e vendeu o apartamento. Marcelo desfez do carro zero. Algumas economias e a entrada da fazenda. Ficariam algumas prestações mas ele esperava ganhar o dinheiro com o aluguel da fazenda para eventos. -"Parabéns. O senhor Estevão Alvarenga, único herdeiro da Farroupilha, vai passar os documentos por email. A fazenda é toda sua, senhor Marcelo." O corretor espalhou documentos sobre a mesa, desligando o celular. -"O senhor Estevão mora na Holanda, está feliz em saber que a fazenda vai ser novamente habitada e cuidada." Disse o advogado. Marcelo saiu do prédio de escritórios pisando nuvens. Era dono de uma fazenda linda
Dera um golpe de sorte. O advogado sorria, olhando a cidade da janela do escritório. -"Finalmente vendemos aquela fazenda mau assombrada. Vou ganhar uma polpuda comissão." Alguns amigos apoiaram a causa. Eles chegaram assim que amanheceu. O casal foi acordado com o buzinaço dos carros. -"Eles chegaram." Disse Marcelo a namorada sonolenta. A turma de dez amigos chegou fazendo festa. Após um dia com febre e dores no corpo, Maristela estava milagrosamente bem. O caminhão com geradores de energia chegou mais a tardezinha. A fazenda virou um canteiro de obras, durante três semanas. Henrique, mestre de obras e primo de Marcelo, cuidava de tudo. Pedreiros, pintores, jardineiros, decoradores, eletricistas e encanadores chegaram a fazenda. O lugar estava lindo e bem cuidado. Marcelo e Maristela estavam esgotados mas felizes. Os anúncios na internet. O primeiro contrato fechado para uma festa rave. Os caminhões com caixas de som e telões começaram a chegar a fazenda. Os ônibus trazendo jovens da cidade, ansiosos por diversão. Longe de tudo, o som poderia ser altíssimo, sem incomodar ninguém. Era um local perfeito. -"É só o começo, Maristela. Vamos faturar muito." Disse Marcelo a namorada. A festa rave entrou madrugada adentro. -"Eita, barulheira do inferno, Filó." Disse o fantasma do escravo, observando os jovens dançando no antigo terreiro de café. -"Voismecê se acalma, Roque. Nada de espantar a sinhazinha Maristela ou os espríto do barão e do capitão do mato vêm atrás de nós." FIM