As lágrimas que Heloísa não derramou- CLTS16
"Um dia desses, eu separo um tempinho e ponho em dia todos os choros que não tenho tido tempo de chorar."
Carlos Drummond de Andrade
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A chuva parecia não dar sinal de que iria passar tão cedo. Heloísa andava sem se importar com o fato de está se molhando toda. Ela sempre achou que tinha alguma coisa reconfortante nas gotas de chuva, principalmente naquelas que encharcavam os cabelos e escorriam pelo rosto como lágrimas.
Ainda estava andando quando viu com o canto do olho alguém conhecido se aproximando. Se virou e encarou sem surpresa a figura de um palhaço que estava a apenas alguns passos de distância. Já esperava que ele fosse aparecer. Tinha visto vislumbres dele enquanto trabalhava no hospital.
Heloísa era médica e estava no plantão da noite. Tinha visto o palhaço primeiramente no corredor, um pouco depois de atender o primeiro paciente. Após esse momento ela o viu ao longo de todo plantão, cada vez mais nítido, porém não tão nítido como ele estava no momento presente enquanto a seguia.
A moça continuou andando até que a chuva ficou mais forte. Mesmo que ela gostasse de chuva sabia que era melhor esperar passar. Buscou abrigo embaixo de um toldo junto com outras pessoas que também fugiam da chuva. Do outro lado da rua, em pé, o palhaço que somente ela via, lhe encarava. A água não parecia afetar a maquiagem dele, que permanecia inalterada mesmo que fosse possível notar que gotas de chuva escorriam pelo rosto dele.
Os dois ficaram em silêncio e apenas a chuva fazia a trilha sonora daquele momento. Durante aqueles minutos que pareciam se esticar, Heloísa pensou na noite em que tinha visto pela primeira vez um palhaço misterioso da janela do seu quarto. Na verdade ela começou a pensar em como tudo começou um pouco antes dela ver o palhaço, o início se deu quando ela ainda era criancinha e começou a chorar aparentemente sem motivo algum.
No dia em questão Heloísa estava brincando em meio às bonecas e outros brinquedos quando de repente começou a sentir os olhos se encherem de lágrimas que logo escorreram pela sua bochecha. Não se sentia triste e nem sentia vontade de chorar, porém as lágrimas continuavam se formando sem que ela conseguisse controlar.
A pequena Heloísa ainda estava tentando entender o que estava ocorrendo quando a mãe dela entrou carregando seu irmão caçula. Ele tinha machucado o joelho enquanto brincava e chorava. Os olhares deles se cruzaram por um momento e Heloísa sentiu as lágrimas secarem imediatamente. Era como se de alguma forma ele estivesse chorando as lágrimas dele.
Aquele não foi um incidente isolado. Às vezes quando algum coleguinha se machucava ou seus pais estavam tristes por algum motivo e tentavam esconder, ela sentia novamente as lágrimas escorrerem sem que ela conseguisse controlar. Era mais profundo do que simplesmente chorar com a pessoa, era como se ela tivesse a habilidade de sentir a tristeza dos outros e chorar as lágrimas das pessoas. Aquilo era estranho, mas de alguma forma fazia ela sentir mais próxima das pessoas que amava. E com isso o tempo foi passando.
Quando ela pensou que as coisas não poderiam ficar mais estranhas ela viu o palhaço pela primeira vez. Era uma noite bonita e estrelada. Ela estava perto da janela olhando as estrelas enquanto esperava o sono chegar, foi quando de repente viu ao longe algo se aproximando. A luz fraca dos postes somente lhe possibilitou ver nitidamente quando a pessoa já estava bem perto da sua casa. Qual foi o seu espanto ao notar que se tratava de um palhaço. Junto com o susto inicial sentiu suas lágrimas molharem o seu rosto.
Quando criança ela tinha um certo receio de palhaços. Achava meio assustadora a idéia de uma pessoa esconder a sua verdadeira face com toda aquela maquiagem. E aquele palhaço era ainda mais estranho devido ao horário e ao fato dele correr até o final da rua e voltar várias e várias vezes. Como se estivesse fazendo algum tipo de exercício ou até mesmo fugindo de algo que apenas ele via. Quando olhou bem notou que ele parecia estar usando uma roupa própria para ginástica. Seu sono foi embora de vez.
Tinha que descobrir qual era o objetivo daquela estranha figura. A curiosidade sufocou o seu medo. Desceu as escadas com cuidado para não acordar ninguém e abriu a porta devagar. Para sua surpresa, apenas encontrou a rua vazia e silenciosa como sempre era naquele horário. O tempo que levou para sair foi o suficiente para o palhaço sumir. Ela ainda olhou ao redor, mas não viu nem sinal do palhaço com roupas de ginástica.
Estranhou muito, mas voltou para o quarto ainda pensando naquilo. Adormeceu com a curiosidade martelando em sua cabeça. No dia seguinte acordou atrasada para a escola. Pensou em perguntar para os colegas se algum deles tinha visto o misterioso palhaço na rua deles também , mas no fim desistiu da idéia. Não tinha certeza se aquilo tinha sido real ou não.
Ao invés de perguntar foi pesquisar se tinha algum circo na região, talvez o misterioso palhaço fosse de algum espetáculo que estivesse na cidade. Pesquisou, porém não encontrou nada referente a isso. O mais estranho era que sempre que pensava no assunto sentia como se lágrimas quisessem novamente se formar nos seus olhos.
Aquilo era ainda mais misterioso, pois ela só chorava e sentia a tristeza de pessoas próximas. Nunca tinha acontecido dela chorar por causa de alguém que ela nem conhecia, ou melhor, que ela nem sabia se era real ou não.
Nesse dia, na volta para casa, Heloísa se pegou olhando várias vezes para trás . Para ver se o palhaço não estava por perto. Sentia um certo medo, pois pensava que assim como ele tinha sumido de repente poderia aparecer do mesmo jeito. Recobrou a atenção quando entrou na rua da sua casa, pois tinha sido lá que tinha visto a figura que seguia envolta em mistério. Mas mesmo com seu olhar atento não viu nem sombra do tal palhaço.
A noite logo chegou e ela decidiu que ficaria esperando na janela, pois sabia que talvez a misteriosa figura fosse aparecer. E ela realmente apareceu: o mesmo rosto pintado e roupa de ginástica. Porém dessa vez não estava sozinho.Heloísa viu em um dos lados da rua uma garota quase da sua idade observando o palhaço. Aquilo era ainda mais misterioso.
Tentou descer mais rápido dessa vez, enquanto descia limpava algumas lágrimas que já começavam a cair. Para que não ocorresse o que ocorreu na noite anterior. Abriu a porta com receio das duas figuras terem desaparecido, porém elas continuavam lá. Se aproximou da garota pensando em fazer algumas perguntas para ela.
-Ele é meu irmão. -disse ela antes mesmo de qualquer saudação ou pergunta - Ele age assim desde que nosso pai morreu.
As palavras da garota chegaram junto com o vento gélido da madrugada. Aquilo a deixou sem reação. Várias perguntas se formavam em sua mente e uma acabou saindo em sua boca:
-Porque?
-Cada pessoa lida com a dor de um jeito. -respondeu a garota desviando o olhar, talvez para que ela não notasse a lágrima que escorria - Em algumas noites ele pega sua roupa de caminhada e sai de casa para fazer corridas noturnas como essa, ele nunca fica muito tempo na mesma rua. Antes de sair ele sempre costuma pintar o rosto como nosso pai costumava fazer.Nosso pai foi um dos melhores palhaços que conheci, sabe?
-Sinto muito por tudo isso. - foi apenas o que conseguiu dizer.
A menina agradeceu com um aceno de cabeça. Um silêncio se seguiu. Apenas o vento e os passos do irmão da menina eram ouvidos.
Heloísa olhou na direção do palhaço e foi como se o visse pela primeira vez. Entendeu que por trás de toda aquela maquiagem ele escondia uma tristeza que não queria sentir. A cena dele correndo parecia um retrato exato da tristeza e de lágrimas não derramadas.
Sentiu empatia por eles. Queria poder fazer algo para ajudar, mas não sabia como. Acabou dizendo em uma voz que mais parecia um sussurro:
-Posso ajudar de alguma forma?
-Não. .. Mas agradeço a gentileza.
Depois de um tempo o irmão dela se cansou e eles foram embora. Foi como se eles fossem deixando uma melancolia no ar. Uma nota de tristeza que a fez lagrimar novamente. Heloísa foi dormir pensando neles. Ele ainda os viu algumas noites antes do irmão da garota continuar suas corridas noturnas em outro lugar. A menina torcia para que ele conseguisse encontrar outra forma de encarar a dor. Mas aquela cena sempre ficou com ela e a marcou por muitos anos.
Talvez o fato de não ter podido os ajudar foi o que motivou Heloísa a virar médica, para que pudesse ajudar outras pessoas. Mas para seguir nessa carreira ela teve que descobrir uma outra habilidade que estava enterrada dentro dela, pois ela como médica não poderia ficar chorando na frente dos pacientes.
Heloísa ainda tinha a mesma habilidade de chorar as lágrimas das outras pessoas e aquele dom da empatia, mas com o passar do tempo ela descobriu que tinha uma outra habilidade. Seus sentimentos poderiam se separar dela e assumir formas físicas. As lágrimas que Heloísa não queria derramar pareciam formar aquela figura de palhaço triste que a encarava do outro lado da rua. Se a tristeza tivesse um rosto ela achava que seria aquele escondido por toda aquela maquiagem.
Ainda pensava nisso quando de repente, naquele dia chuvoso, a maquiagem começou a derreter e logo depois o que restou do palhaço foram apenas tintas coloridas que a chuva levava. Foi somente nesse momento que a moça notou que lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto.
O doce da água que caía do céu se misturando com o salgado da água que brotava dos seus olhos.
Secou as lágrimas e notou que a chuva estava um pouco mais fraca. Resolveu que era hora de ir para casa tirar aquela roupa molhada e descansar. Enquanto estivesse de folga não pensaria na figura do palhaço e nem no trabalho. Até porque dependendo dos pacientes que atenderia na outra semana podia ser que o palhaço aparecesse novamente. Mas por hora ela sentia bem melhor. Como falaram naquela madrugada, as pessoas às vezes tinham formas estranhas de encarar a dor.
Tema: Crianças paranormais