Intacta! - CLTS 16
Esta é minha história!!!
Desde a lembrança mais tenra, tenho marcada na memória a alegria de viver.
O leite quentinho ordenhado pelo papai, o cafuné da mamãe depois da oração e da cantiga de ninar, as prosas com a vovó, as tradições do vovô, meus irmãos e nossas traquinagens pelo Monte Pilar e dos arrepios repentinos durante as tardes no Castelo de Lanhoso.
Doces lembranças de quem amou e foi amada.
─ Vamos Dinha, tá com você. Conte até dez!
─ ...8, 9, 10. Lá vou eu!
Quando me virei, lá estava ele, ─ foi nosso primeiro encontro ─ com seus olhos piedosos e seu semblante sereno. Estávamos eu, meus irmãos e outras crianças ali no pátio do Castelo de Lanhoso enquanto aquele menino permanecia lá no alto da muralha. O céu azul e límpido daquela tarde de primavera refletia a mesma calma e beleza daquela imagem. Sorri para ele e corri para encontrar as crianças escondidas pelo pátio e corredores daquela velha fortaleza. Vislumbrei sua imagem algumas vezes mais, porém sempre à distância, sempre em silêncio.
Certa tarde, quando brincávamos no pátio como de costume, notei meu pequeno observador preocupado vigiando da muralha. Não dei muita atenção para aquele comportamento nada rotineiro, mas logo entendi o motivo de tanta apreensão.
Foi quando começamos a ouvir gritos histéricos que subiam pela colina até ecoar pelos corredores e pelo pátio do antigo Castelo de Lanhoso. As crianças ficaram aterrorizadas com o pavor carregado por aqueles gritos histéricos de dor e desespero.
─ Dinha, estou com me...me... medo! Disse o caçula.
─ Calma! Vamos fazer silêncio e nos esconder ─ respondeu Dinha.
─ Podemos nos esconder juntos? Perguntou um dos meninos, e outro respondeu:
─ Boa ideia, vamos ficar todos juntos.
No vilarejo ao pé do Monte Pilar o clima estava diferente e estranho. Uma névoa havia avançado do mar cobrindo tudo e escondeu aquele céu azul e límpido que se via do alto do monte.
Quem estava lá embaixo afirmou que não dava para ver o castelo. Nós, lá de cima, não enxergávamos nem a muralha, não dava para ver o menino.
Seguros no esconderijo, eu rezava para que aquele terror passasse logo.
Passada aquela angústia os gritos se calaram e saímos do esconderijo só depois de ouvir a voz familiar de um parente adulto. Beirava o fim da tarde quando eu e meus irmãos ouvimos o papai nos chamar.
─ Estamos aqui papai! Alertei.
─ Graças a Deus estão bem! Venham, vamos para casa.
Ao cruzar o pátio, percebi que não havia mais nenhum vestígio da névoa. Ergui os olhos para a muralha e lá não havia ninguém.
Chegando em casa, todos atônitos pelo ocorrido, sem saber o que de fato havia acontecido e os motivos daqueles gritos horrendos. Papai disse:
─ Dinha, ponha seus irmãos pra dormir e vá descansar.
Obedeci, mas não conseguia dormir, estava preocupada com o menino da muralha. Então, mais tarde, ouvi a conversa dos adultos à mesa.
─ Morreu?
─ Sim, ninguém sabe como.
─ Disseram que foi a sombra na névoa.
─ Não pode ser, isso é conversa fiada, sombras não matam. Deve ter alguém por traz disso!
─ Não, não tem... antes dos gritos algumas pessoas garantiram que viram e ouviram uma sombra sussurrando algo estranho...
─ O maldito deve pagar por isso. Só me pergunto quem do vilarejo o faria. Bernadete era um anjo. Quem lhe desejaria a morte?
Deixei escapar o choro e corri para os braços de mamãe, ─ cortando a conversa ─ eu não queria acreditar. Bernadete era minha amiga, íamos à escola juntas, brincávamos juntas. Em meio às lágrimas eu dizia:
─ Onde ela estava? Por que Bernadete não subiu ao castelo conosco? Desculpe mamãe, eu poderia tê-la escondido da morte...
Na manhã seguinte a tristeza mostrava sua natureza e Bernadete foi velada na capela de São Lázaro dentro do castelo no alto do Monte Pilar. Uma estranheza surgiu em meio ao povo ali presente e os cochichos se espalharam.
─ Tem algo errado aqui... ela está intacta?!
─ Como assim?! Pelos gritos pensei que lhe houvessem arrancado o coração ou lhe houvessem separado as partes...
─ Ouvi dizer que o padre jurava tê-la visto hoje pela manhã subindo o monte com alguém.
O burburinho se estendeu por alguns dias do velório e a vida ensaiou voltar ao normal. O céu estava azul e límpido de novo. Tornamos a brincar de Esconde-Esconde, como de costume, e fiquei aliviada ao rever meu distante amigo da muralha novamente.
Mas, assim como o mistério adormece sem nada a revelar, num instante seguinte ele se levanta sem prévio aviso e surpreende a todos com seu propósito insólito e sobrenatural. Novamente a névoa e a sombra vieram naquela primavera e levou outra criança que naquela tarde não estava brincando no castelo.
─ Não, ahhh!!!!! Foi o grito estridente que ouvimos e dessa vez a desventura foi de Ritinha.
Novenas, vigílias, orações... nada impediu o retorno inesperado daquele tormento que tomou a vida de... sete, oito, nove... crianças naquela estação. E nos perguntávamos de onde vinha a névoa, pois isso só tínhamos no inverno... dúvidas... medo...
O vilarejo se tornou perigoso para as meninas. Várias teorias foram levantadas sobre aquele fenômeno inexplicável. Religiosos e professores de lugares distantes foram atraídos por aquele terror inesperado que não afetava ninguém além daqueles pequenos botões de rosas que sequer ameaçaram desabrochar. Eles e os adultos ao pé do Monte Pilar eram só preocupação enquanto as crianças tentavam esquecer o medo brincando lá em cima, protegidas no castelo sem trono, sem as riquezas que tivera no passado... éramos nós e o menino da muralha que nunca descia de lá pra ficar com a gente.
─ Dinha, é sua vez de “bater cara”!
─ Tá bom! ... 8, 9, 10, lá vou eu!
Quando abri os olhos e me virei tomei um susto tão grande que ao ver aquele cenário bati as costas e a cabeça dolorosamente contra a parede...
A névoa tinha invadido todo o pátio onde brincávamos, meu corpo tremia e estava tão tenso que além da dor da batida contra a parede senti cãibras contraindo cada músculo do meu corpo e não pude conter o primeiro grito... logo percebi que ela se aproximava.
─ Cadê você? Cadê todos? Precisamos nos esconder juntos! Falei baixinho me encolhendo em meio a névoa para que a sombra não me encontrasse.
Quando o perigo se aproxima e os ossos gelam, não importa a idade, o mais prudente é afastar-se, espiar de longe aquilo que te espreita e em silêncio observá-lo para saber o momento certo de fugir.
─ Não terás medo do terror de noite! Ela passou sussurrando bem próximo de mim.
Meu corpo ia se enrijecendo de tanta tensão e medo, eu sabia que gritar de dor seria um erro.
─ Preciso me esconder.
Fui engatinhando pela névoa, mas aquela dor... e ouvi ela novamente sussurrando próximo de mim:
─ ... nem da peste que anda na escuridão! Passou mais perto, mas ainda não tinha me visto.
Eu já não engatinhava mais, estava deitada sem forças tentando me arrastar pelo chão chorando e consciente de que gritar de dor era um erro fatal.
O pesadelo da dor é a única prova de que se está viva. Quando não aguentava mais, já me preparando para denunciar minha vital presença neste mundo e enfim encontrá-la, ele apareceu subitamente ao meu lado e disse:
─ Estou aqui! Segurou a minha mão e uma paz tomou conta de mim naquele instante.
O menino da muralha... meu guardião não me abandonou, me senti protegida.
Outra vez percebi a presença da sombra ao redor, em meio a névoa sussurrava:
─ ... nem da mortandade que assola ao meio-dia...
Com a ajuda dele consegui me esconder na capela de São Lázaro. Ele fechava a porta, mas num relance pude ver a figura da sombra vestida de cetim preto, o rosto pálido e sem expressões com as mãos tateando no vazio flutuando na névoa e os segundos pareceram se estender em lentidão. Ali, respirei aliviada quando ele disse antes que eu caísse no sono:
─ Dinha Livre!
Demorei para acordar... e só levantei quando ouvi a voz do menino que me chamava para fora da capela de São Lázaro.
─ Venha Izildinha, levante-se!
Atordoada abri a porta e o sol ofuscava minhas vistas, o menino subia para o alto da muralha e parou por um instante estendendo-me a mão. Eu queria segui-lo, mas temia por meus irmãos e fui procurá-los no castelo e não os encontrei. Fiquei desesperada... o sol estava escondendo-se e eu me perguntava:
─ Onde eles estão? Será que a sombra encontrou alguma criança? E papai... será que me esqueceu?
─ Não se preocupe com eles, Izildinha! Disse o menino me tomando pela mão.
Subimos para a muralha e então tudo se revelou, aquele castelo de outrora ficou para trás.
Tempos mais tarde pude ver da muralha um homem com afeições que eram familiares para mim, mas demorei a reconhecê-lo... era o caçula.
Ele havia deixado o vilarejo aos pés do Monte Pilar para viver numa terra além do mar chamada Brasil. Se tornou um homem de bem, fortalecido na fé e retornou para me buscar. Ele havia passado pelo vilarejo, reuniu o velho padre, os amigos de infância e seus pais ─ aqueles que resistiram ao tempo ─ e subiram a colina até a capela de São Lázaro. Realizaram uma bela celebração em minha homenagem, ali estava meu corpo... enterrado de frente para o altar no mesmo lugar onde eu havia falecido.
Naquela época fizeram no meu velório os mesmos comentários que haviam feito na despedida das outras meninas... embora não me recordasse de haver gritado diziam ser impossível estarmos intactas depois da névoa se dissipar.
Agora sei que foi ele... o menino da muralha... sei por que se agitava quando a névoa chegava e por que sumia depois que ela passava... ele aliviava a dor... me acordou e me trouxe para cá, para o alto.
O padre deu a benção final e todos disseram amém. Abriram a cova, estranhamente se exalava perfume, exumaram meu corpo e mais uma vez surpresos, repetiram admirados aquela palavra:
─ Intacta!
Sim...
Não há explicação para tal fenômeno, disseram. Mas eu sei!
O caçula levou meu corpo, com ele seguiu-se uma enorme procissão e até hoje visitam meu jazido, mas eu não habito ali...
Vivo no alto, estou na muralha com Ele e tantos outros que o menino livrou da sombra da morte. Meu corpo incorruptível permanece lá... está em Monte Alto, Brasil.
Suspense - Tema: Crianças Paranormais.