MEUS PÊSAMES - CLTS 16
Existem grandes diferenças entre matar e morrer. Sim! Parece besteira falar sobre isso. Mas quando sabemos se estamos realmente vivos ou mortos? Há algum momento em que temos certeza de quando começamos a sentir necessidade de ter mais vida ou de tirá-la, seja a própria ou de algum desafeto? A grande questão é que quando a oportunidade bate a porta do necessitado, deve ser usada. Arrependimento?
Pode acontecer.
E quando a imagem que reflete a olho nu faz com que a diferença defina o que é bonito ou feio?
Já aconteceu.
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Era a representação de sua imagem estampada naquela poeira que se ergueu em sua frente revelando a sua pior face. Ele era mais valioso que um aglomerado de pó com sangue que mirava seus olhos com desdém, mas no atual momento percebia que o que saiu de dentro de seu cérebro tornara-se seu pior inimigo. A tradução sangrenta de como se sentia após ter feito o que fez.
O redemoinho aumentava. Não havia vento, mas ali estava o contorno de algo que fazia parte da sua dor. Provocara algo mais forte do que podia dominar. A areia tomava forma e ele desintegrava vagarosamente. Quanto mais humano o redemoinho parecia, mais seu corpo esfarelava. Temia merecer.
Paralisado em frente a crianças felizes e aparentemente normais, colocava sua curta história em poucas linhas de um caderno que talvez nunca fosse escrito. Causou o mal. Pode-se dizer que foi sem querer, mas não foi.
As mãos com resquício de sangue e trêmulas se negavam a entrar nos bolsos. As pernas suadas manchavam a calça, jeans claro e o semblante mais fechado do que o habitual chamava a atenção dos pais que observavam seus filhos se divertindo sem perceber a massa vultuosa que se formava em volta.
A poeira bailava no céu. Apenas ele a via. Parecia debochar a cada movimento que fazia sobre a cabeça das crianças. Perdeu a autoridade sobre si mesmo ou talvez nunca houvesse tido esse controle. A sensação de eliminar seus futuros desafetos vagavam ao redor de seu peito como um despertar de cada dia. Ver a areia entrar em suas pequenas bocas e sair pelos olhos alegrava sua mente. Era apenas uma maneira de livrar seus pensamentos de coisas desagradáveis que aconteceram e se repetiam o tempo todo. Seu rosto deformado era motivo de risos. Não o esconderia mais. Estamparia de cabeça erguida. As novas cicatrizes ardiam com o calor do sol e seus olhos secos não piscavam mais.
A verdade e o arrependimento podem surgir, mas nesse caso já era tarde.
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Algo inexplicável acontecia, eles apenas caíam desfalecidos. Em todas as mortes, ele estava por perto, nas primeiras vezes pareceu coincidência, mas com o aumento dos casos as suspeitas aumentavam em relação ao tal pacto. Ele tinha como um presente de algo ou alguém que sentia remorsos por deixar que tivesse tido um início de vida tão infeliz. A areia que muito foi jogada em sua cara tornou-se sua arma. Devolveu na mesma moeda. A diferença é que permanecia vivo, eles não.
Kevin observava de perto o engasgar das vidas. Sempre soou divertido ver a cara de sofrimento daqueles que o fizeram chorar. Era sua satisfação.
A sua presença nunca fora festejada. Ninguém o convidava para as reuniões ou aniversários. Após as mortes, piorou. Não passavam nem ao menos em frente a sua casa. As famílias diziam que sua sobrevivência era por razão de um pacto, ninguém sairia vivo daquele acidente.
Em sua cabeça todos mereceram. Não sabia o que era justiça. Ninguém nasce sabendo. Precisava se defender. Na maioria das vezes apanhou.
Muitas vezes chorou sozinho. Seus olhos secos não permitem que as lágrimas escorram como em outras pessoas. Era cheio de defeitos de fabricação, frase que gostava de repetir.
Suas habilidades surgiram após uma viagem que fizera com seus pais. Procuravam tratamentos e cirurgias que pudessem melhorar a sua qualidade de vida. Kevin nasceu com síndrome de Treacher Collins, uma doença genética rara caracterizada por más formações na cabeça e na face, deixando a pessoa com os olhos caídos e um maxilar descentralizado devido ao desenvolvimento incompleto do crânio. Seu rosto desfigurado era a razão de suas tristezas. Crianças zombavam de sua aparência. Raramente saía de casa. Era um mundo único e solitário.
As frustrações apenas aumentavam a cada tentativa, a cada médico e a cada negativa. Nada dava certo e naquela noite tudo piorou. Voltando para casa à noite, sua mãe dormia, seu pai cansado dirigia em alta velocidade, não via a hora de chegar em casa. O menino vinha concentrado nas árvores ao redor. Teve certeza de ter visto um grande redemoinho formar-se no lado do veículo.
Sentiu um forte impacto na cabeça e acordou dois meses depois no hospital. Foram muitas cirurgias. Seus pais não resistiram aos ferimentos e morreram.
Seu rosto deformado ganhou algumas cicatrizes e a cabeça carregava uma placa de metal, o que já era ruim, tornou-se algo insuportável. Foram meses de fisioterapia com a ajuda de sua avó materna até ele conseguir sair de casa.
No dia de seu primeiro passeio, caminhava ainda com dificuldades a poucos metros de casa, um menino passou de bicicleta, o reconheceu e jogou areia em sua direção. Kevin com um simples movimento de proteção com as mãos em frente ao rosto fez a areia pairar no ar e cair sem tocar em seu corpo. Foi estranho, porém, seu cérebro imediatamente enviou mensagens claras o fazendo entender o que acontecera. Voltou para casa pensativo, já havia lido sobre efeitos pós-traumáticos, porém nunca acreditara que aconteceria com ele. Ao chegar, sua avó o questionou sobre o passeio, ele nem sequer respondeu.
Ela apenas passou a mão na cabeça do neto. Kevin avistou um vaso de flores, tentou levantar a terra. Deu certo.
Aquilo tudo parecia fácil demais, pensava estar dormindo. Beliscava os braços e cutucava as cicatrizes na cabeça. Apenas sentia dor, os outros movimentos eram extremamente limitados. Sabia que nos sonhos ele poderia voar, correr, saltar, fazer o que mais desejava. A conclusão é que estava acordado e algo muito formidável acontecia. O menino completara 12 anos enquanto estava em coma, não acreditava mais em superpoderes, “São coisas de revistas de quadrinhos e filmes”, assim sempre pensou, no entanto, nesse momento, podia fazer algo inacreditável. Mais uma vez, testou seu corpo. Tentou correr, mas seus músculos frágeis não obedeciam, nada mudou fisicamente. Seu dom era invisível.
Voltou para a rua e experimentou em um menino que mal conhecia. Desajeitado, pensou em jogar um punhado de areia em sua cabeça. Acertou os olhos. Ele começou a gritar de dor. Foi a seu encontro, aquele menino não tinha culpa de nada, nunca havia feito algo contra Kevin. Chamou alguns adultos que passavam por perto.
— O que você fez, coisa feia? — Disse um homem que passava de bicicleta. — Vai chamar a mãe dele.
Não tinha ideia de onde ela morava. Olhou para o homem que pegava o menino no colo e apontava para a casa a frente. Entendeu. Foi, bateu na porta. A mulher saiu. Já a conhecia, vira com sua avó na igreja. Apenas apontou.
— Pedro. — Ela gritou e correu em direção ao homem que carregava seu filho e levou até o carro que estava estacionado em frente a casa e saíram acelerando.
Voltou para casa e trancou-se no quarto assustado com o que havia acontecido.
Na manha seguinte sua avó o acordou chorando.
— Levanta. Temos que ir à igreja.
Não sabia do que se tratava, apenas foi. O silêncio no carro permaneceu até chegarem à igreja quando notou que as pessoas em sua maioria vestiam preto e choravam. Teve certeza quando entrou e viu aquele pequeno caixão e a mãe do Pedro chorando ao lado.
Caminhou até o altar. As pessoas cabisbaixas viravam a cara quando percebiam ser ele que passava. Seu rosto sempre causou náuseas em quase todos que o viam.
O caixão estava fechado. Ficaram do lado esquerdo. Ouviu sua avó dizer “Meus pêsames" à mãe de Pedro. Quando tentou fazer o mesmo, ela virou o rosto. A frase foi guardada.
— Saia daqui, filme de terror. — Zeca, o menino que inventou o maior número de apelidos para Kevin, estava acompanhado de Julian e Sthefan.
Não disse nada. Apenas saiu.
Ficou em frente à igreja observando alguns bebês que brincavam na caixa de areia de um playground. Mexeu seus dedos da mão direita e a poeira fina levantou. Distanciou-se mais um pouco e entrou no carro. Apontou as mãos e derrubou o castelinho. Um bebê chorou. Kevin sorriu.
Sua Avó entrou no carro.
— Falou com a mãe do Pedro? Ela disse que você que avisou que Pedro havia se machucado.
— Sim, vó. Estava passando. Apenas a chamei.
Estava certo que tinha um dom. Precisava aprimorar e aperfeiçoar.
Voltaram para casa.
Pegou a bicicleta, pedalou com dificuldade e voltou à igreja. Viu os três meninos rindo e debochando de uma garota nos fundos da igreja. Chegou perto e gritou:
— Ei! Deixem-na em paz.
Zeca era o maior. Dois anos mais velho que os outros e a fama de ser o chefe da escola.
— O que disse aberração?
Kevin sorriu. Ergueu as mãos para o céu. Virou os dedos e apontou para ele. Toda a areia que estava na caixa dos bebês levantou e foi em sua direção. Passou por ele e entrou na boca daquele que era o seu maior desafeto. Zeca caiu tentando respirar, mas a areia bloqueou a entrada de ar e seu rosto ficou roxo. Levantou novamente as mãos e puxou a areia de volta. Imaginou que sairia por onde entrou, mas saiu pelos olhos e orelhas.
Um redemoinho se criou em sua volta. Sthefan e Julian que haviam levado a menina para outro lugar voltaram e viram o corpo do Zeca no chão. Kevin se afastou.
De onde estava, ouvia os gritos das pessoas que saiam do velório. Os meninos não souberam explicar. Falaram terem o visto, mas não sabiam o que havia feito.
Chegou em casa. Tomou um banho e foi dormir. Sentia-se exausto. Sua avó o acordou balançando seu corpo. Abriu os olhos com dificuldade e perguntou.
— Para quem são os pêsames hoje?
— O que disse meu amor?
— Nada, vó. Estava sonhando.
Tentou disfarçar. Olhou para a janela, era noite.
— Tem um policial querendo falar com você. Parece que outra criança morreu. — Sua avó tremia.
Não sentia remorsos. Eles apenas pagavam o que faziam. Seus pais choravam o mesmo que sempre chorou.
O policial começou perguntando o que ele fazia na igreja. Disse que apenas passava por lá. Perguntou se havia tido algum problema com Zeca. Respondeu que não. Completou dizendo que viu os três amigos incomodando uma menina e tentou ajuda-la, mas correu com medo que eles o pegassem.
— Obrigado garoto. Cuide-se. — O policial estava em frente a uma criança, não tinha nada de concreto contra Kevin.
No jornal, a manchete da capa era: “Mistério envolvendo mortes de crianças”.
Ele era o mistério e isso o alegrava.
Preferiu ficar uns dias em casa, trancado no quarto. Percebeu precisar se manter longe dos outros. Sua avó estava acostumada com o estilo de vida do neto. Passado uma semana, saiu caminhando pelo bairro. Escutou de longe um homem aparentando ser mais velho que sua avó zombando de sua cara. Sentiu que não devia ter saído, mas saiu.
Andou em sua direção balançando os braços, porém, nada aconteceu. O homem riu de seus movimentos. Deu meia volta e continuou caminhando. A raiva consumia seu interior. Escondeu-se atrás de uma árvore e ficou a observar aquele velho e questionando a si mesmo a razão de não acontecer nada. Talvez os poderes houvessem ido embora.
Uma moça saiu de dentro da casa. Ouviu-a dizer:
— Vai com o vovô.
Atrás dela vinha uma criança que parecia estar aprendendo a andar indo na direção do velho. O abraçou e sentou a seu lado. Não teve dúvidas, assim que ele deixou de prestar atenção no neto, movimentou levemente as mãos causando um enorme redemoinho e enviou lentamente na direção dos dois. A criança gritou e calou-se. Fez o movimento contrário e voltou para casa. Precisava dar aquele susto.
No dia seguinte, logo pela manhã, o sino da igreja chamava a população para que todos comparecessem. Saiu do quarto. Sua avó ligava a TV. O jornalista estava dando a notícia de mais uma morte. Viu o velho e a mulher chorando e tentando explicar o que havia acontecido. Mas não diziam coisa com coisa. O velório foi naquele mesmo dia.
Chegaram direto ao caixão. Sua avó deu os “pêsames" à mulher e ao velho. Eles agradeceram.
Saíram. Sua avó foi direto para casa. Ele preferiu ir andando.
Sthefan e Julian o esperavam escondidos.
— "Tá" feliz, aberração? Satisfeito com a morte do Zeca.
Não se conteve e respondeu:
— Ele mereceu.
Os dois partiram para cima de Kevin. Começaram a agredi-lo. Socaram seu rosto. Jorrou sangue em suas roupas. Julian segurou seus braços com os joelhos não permitindo que fizesse os movimentos. Conseguiu livrar uma das mãos e apontou para Sthefan. Uma rajada de areia atingiu seu peito. Penetrou e saiu nas costas.
Julian se apavorou. Ajoelhou-se é começou a rezar.
— CHEGA DE MORTES. — gritou Kevin.
Mesmo com os braços parados, o redemoinho continuava circulando seus corpos, as flechas de areia passavam perto da cabeça de Julian como se o provocasse. Kevin pedia para parar, o sangue corria em seu pescoço. Aquilo parecia abrir sua consciência.
Foi atingido de raspão. Estava sendo atacado pelo seu próprio poder. Mexia as mãos para que cessasse, mas não parou. Jogou seu corpo por cima do Julian. Não sabia a razão, mas queria salvá-lo.
O redemoinho o tirou dali. As flechas atravessaram o corpo de Julian no momento em que levantou para fugir. O sangue jorrou forte. Caiu. Kevin tentou ajudar. Era tarde.
A poeira baixou e as pessoas viram os corpos
ensanguentados e as mãos de Kevin no peito de Julian. Alguns choravam com a cena. Outros corriam na direção dos corpos. Kevin pegou uma bicicleta que estava por perto e com muita dificuldade correu o mais rápido possível.
Parou na principal praça da cidade. O redemoinho o acompanhou, sobrevoava a cabeça das crianças, que eram muitas. Nesse momento todos viam o que parecia ser uma tempestade. O nevoeiro cobriu toda extensão do lugar. Todos que estavam ali nunca fizeram nada contra ele, nunca zombaram do seu rosto. Talvez quando crescessem um pouco mais poderiam vir a fazer. Os pais corriam na direção dos filhos, o pânico era generalizado. Os participantes do velório chegavam para tentar capturar Kevin.
Aquele redemoinho retirou os pais de perto dos filhos, formando uma espécie de proteção em círculo onde apenas as crianças ficaram. Um a um engasgava e caia, seus pais viam tudo sem ter o que fazer. Alguns tentavam atravessar a areia, mas eram jogados para trás pela força do redemoinho. Kevin perdeu o domínio de seu poder. A raiva saiu de dentro dele e virou areia.
Uma nuvem gigante escureceu o céu, o sol foi esquecido e os pingos de chuva que começaram suaves, desciam velozmente dissipando a força do mal que pairava sobre a praça. Seu corpo foi desmanchando até restar apenas o rosto que pela primeira vez estava molhado pelas lágrimas ao ver que em meio ao pó, a silhueta tornou-se ele, sem doença. A aparência que ele sempre quis ter estava a sua frente. Não havia mais tempo. Os olhos fecharam.
Desapareceu, deixando apenas a areia molhada misturada ao sangue dos inocentes e as lágrimas de seus pais.
Em meio aos trovões e gritos de desespero dos pais carregando os corpos de seus filhos, uma frase ecoou:
— Meus pêsames.