Os olhos do diabo
Não sei dizer que horas são. O corpo já fora velado, mas ainda assim permaneço aqui sem saber o que fazer. Talvez seja a incredulidade ou negação. Eu não sei responder. Não neste momento. As memórias dela ainda estão frescas em minha mente. Nunca fui sentimental, portanto, não chorei quando recebi a notícia de sua morte. Ela sempre dera sinais de que isso aconteceria, mas nunca agimos da maneira correta. Eu sempre soube que ela jamais substituiria minha mãe biológica, porém meu pai sempre pensou o contrário: “Você deve chamá-la de mãe”, ele dizia todos os dias. Lembro-me dele agora. Seu jeito violento e assustador de ser. Não me sinto culpado por ser grato por sua morte. De fato, nunca o perdoei de verdade. Apenas disse o que havia de ser dito quando ele estava prestes a nos deixar. Seu olhar se encheu de alívio e isso me irritou. Uma vida de humilhações e agressões para que em poucos minutos o algoz se abstenha do remorso por um simples “Eu lhe perdoo”. A vida me parece uma piada sem graça.
Agora ela também se foi. Estou oficialmente sozinho, mas não sei dizer se isso me parece bom agora como parecera antes. Olho para o relógio quebrado suspenso acima de uma cruz. Os ponteiros indicam 3:50, mas eu sei que a madrugada ainda se inicia. Todos se foram. Achei que alguém estaria aqui, por algum motivo, mas aparentemente me enganei. Quando o caixão é levado para o cemitério, o local do velório se torna uma lembrança mórbida de um rito que nunca me fez sentido.
A figura de seu corpo não sai da minha mente. Seu rosto inchado e seu pescoço enfaixado de maneira a esconder o hematoma deixado pelo arame farpado complementavam um cenário macabro. Não parecia um velório de despedida, mas um agonizante espetáculo de horror aonde as lágrimas eram de desespero e não de tristeza. Quando recebi a notícia não acreditei, mas uma sequência de pensamentos se uniu para me contradizer. É claro que eu acreditara, pois ela já havia dito que faria isso. Não diretamente, mas os sinais estavam ali. Através de Seu olhar apático em frente à TV ou das lágrimas que escorriam de seus olhos inchados pelos socos que lhe eram aplicados no rosto quando meu pai bebia e utilizava a violência para exprimir seu ódio contra si mesmo. Porém, essas lágrimas paravam de escorrer quando ela exprimia toda sua raiva contra si e o mundo em um garotinho que perdera a mãe em um acidente de carro cujo o motorista estava completamente embriagado. Havia uma mangueira no quintal de nossa antiga casa. Eu a cortara em pedaços com uma tesoura uma vez na tentativa de evitar que aquilo se tornasse uma arma de açoite para as minhas costas mais uma vez. Mas a criatividade dos monstros é infinita. Qualquer objeto se torna uma arma para um agressor. Uma muleta que servia de apoio para um velho que sofrera um acidente se tornava um porrete quando o café não estava forte o bastante. Lembro-me do estrondo, do barulho agonizante do metal esmagando o rosto daquela mulher triste e angustiada. De algum modo, sangue respingara em meu rosto, mas eu não pude fazer nada. Se fizesse, o próximo rosto esmagado seria o meu. Ela então se levantou, cambaleante e me perguntou que horas eram, pois ela deveria sair para buscar seu pai na escola.
Sangue, bebida e frases desconexas devido as pancadas. Assim eram os dias. Mas após a morte do velho que usava a muleta como ferramenta de demonstração de força e opressão, a mulher que chorava, mas parava de chorar quando assustava o garotinho com seus olhos esbugalhados e suas mãos trêmulas munidas de cabos de aço afim de arrancar-lhe sangue para poder se redimir de sua submissão perante as agressões sofridas durante sua vida, tornara-se ainda mais amargurada. O garotinho também chorava, desejando que sua mãe estivesse ali. Sua verdadeira mãe.
Antigas lembranças de um passado de merda... Decido ir para a casa. O vento gelado toca meu rosto e de alguma forma, isso me alegra. Na casa do meu pai e da minha madrasta eu sinto um arrepio. Posso ver a varanda. Há gotas de sangue seco espalhadas pelo chão. Um pedaço do arame farpado ainda está preso ao caibro rente às juntas do telhado. Foi ali que eu encontrara seu corpo pendurado. As amigas delas choravam perante a cena enquanto o socorro descia o corpo de forma gentil. Eu os ajudei a colocarem seu corpo na maca para irmos ao hospital. Eu ainda estou incrédulo, pois sempre achei que ela fosse morrer de tristeza enquanto assistia a um programa de TV qualquer, mas foi ali, naquela varanda, que a figura mais próxima de mãe que eu tive na vida se enforcara. Eu neguei sua morte. Achei que ainda fosse possível ressuscitá-la, mas os um dos paramédicos repousou a mão calmamente sobre o meu ombro (sinal universal de que a pessoa que você espera estar vida já está morta).
Eu me sento no sofá. Um rádio velho ao meu lado me faz lembrar do dia em que ela jurava ter visto os olhos do diabo. Eu era adolescente e estava cheio daquela vida. Então simplesmente a ignorei. Mas ela me pediu socorro e disse que os olhos estavam por todos os cantos da casa. Ela estava ansiosa e tremia. Pedia ajuda e me ameaçava. Foi quando meu pai chegou e ela correu para a rua desesperada. O diabo havia chegado. No dia seguinte, todas as fotos do meu pai que haviam na casa estavam queimadas no chão da mesma varanda que se tornara o palco de grandes espetáculos macabros. Os olhos do diabo não a encaravam mais durante o dia. Porém, durante a noite, enquanto ela ouvia o rádio, ela sempre dizia:” O diabo não está aqui, mas seus olhos estão sempre virados para mim”, e em seguida meu pai abria a porta completamente bêbado. Eu nunca soube se era devido a programação do rádio ou algum tipo de premonição, mas ela sempre dizia isso antes do meu pai chegar, como se fosse uma antecipação.
Está frio, mesmo com as janelas fechadas. Sinto que algo não está certo. Sinto cheiro de sangue. O rádio então chia assustadoramente, fazendo com que meu coração acelere. Uma voz angustiada soluça pelo rádio enquanto diz: “O diabo não está aqui, mas seus olhos estão sempre virados para você”. Num pulo, me levanto do sofá. O rádio está fora da tomada. Olho para a porta, esperando que um homem de muleta bêbado surja para esmagar meu rosto, mas nada acontece. Estou petrificado. O rádio agora está em silêncio. Não sei dizer se aquilo fora real, mas algo dentro de mim grita para que eu deixe essa casa. Há muito ódio aqui. Uma manifestação assombrosa seria compreensível até para os mais céticos, pois vidas foram moldadas em violência neste local.
O cheiro de sangue fica mais forte. Eu tento me mexer, mas estou preso em mim mesmo. Meus olhos se viram em direção a varanda, e lá está ela. Pendurada, morta, triste e sozinha. Seus olhos sem vida me encaram. Não, aqueles olhos não pertencem ao diabo. “Eu tenho que sair daqui. “, penso ao conseguir me mover e correr para a porta. Ao abri-la, espero encontrar meu pai, mas só vejo a rua na escuridão da madrugada. Me sinto aliviado. Porém, uma mão repousa em meus ombros. Me viro, e lá está ele, com seus olhos aliviados. “Obrigado por não me perdoar, pois eu mesmo nunca o fiz” ele diz enquanto o corpo da mulher pendurado por um fio de arame farpado se debate violentamente na varanda. Meu pai sempre esteve comigo desde a sua morte. Os olhos do diabo eram de alívio. Eu corro para a rua, completamente tomado pelo medo enquanto a porta se fecha. O frio novamente toca meu rosto, mas desta vez não me sinto alegre.
Um vizinho ainda acordado percebe meu desespero e chama meu nome. Eu o escuto, mas não entendo o que ele diz devido ao pavor. Um estrondo chega aos meus ouvidos, mas parece que o vizinho nada ouvira. É o barulho de metal se chocando com carne. Então eu encaro o vizinho e pergunto “Que horas são? Eu preciso ver minha mãe”. Ele me convida para entrar em sua casa.
Frases desconexas e lembranças ruins. Será que minha vida será moldada nisso a partir de agora? Não sei ao certo. Apenas não quero mais abrir meus olhos. A vida é uma piada sem graça contada por olhares diabólicos...
Guilherme Henrique