AS CRÔNICAS DE PENNY WOODY - O INFERNO DE DANTE: CLTS 16.
by: Johnathan King
I
Penny Woody acordou com o som de um trovão. Estava num lugar escuro e úmido, seus olhos fitaram o ambiente ao seu redor a procura de algo conhecido ou um rosto familiar. Mas ele mal conseguia enxergar alguma coisa com exatidão. Tudo era tão negro quanto a noite era densa, um cobertor perfeito que absorvia qualquer resíduo de luz e desviava qualquer som. O pouco que conseguiu ver, não mostrou mais do que um ambiente lamacento e com um odor acre. Aquilo era cheiro de morte. Penny levou o braço em direção ao rosto e enfiou o nariz, para amenizar o odor de carne podre que empesteava o ar. A dor abaixo do peito, no lado direito, fez Penny levar a mão até o local. Tocou a faixa que o envolvia da cintura para cima. Estava machucado. Apesar do desconforto, o jovem se levantou. Caminhou com dificuldade pela lama.
Trovões soavam alto. Sempre ameaçadores e intimidadores. O céu negro como as penas de um corvo, se tornou vermelho como o rubi mais rubro num instante. A escuridão virou inferno, de repente. Verdadeiras labaredas de fogo emergiram nas alturas, se movendo de forma frenética de um lado para o outro, como casais de namorados apaixonados dançando uma valsa insana. Penny sentiu um arrepio horrível. Ele parecia perdido em pensamento e confusão. O jovem ficou parado em silêncio encarando aquele céu de fogo, havia nervosismo e medo em seu olhar.
Penny Woody olhou de repente para a sua esquerda, uma criatura de tamanho descomunal o encarava fixamente, uma espécie de demônio com cabeça de cachorro, de cuja boca saia uma repugnante língua que se movimentava para todos os lados, como se tivesse vida própria. O jovem arregalou os olhos, surpreso, se sentiu mal ao ver aquele monstro, e caiu de bunda no chão com o susto. Os dentes da besta eram presas enormes e se projetavam para fora da boca, parecidos com adagas afiadíssimas. Seus olhos de zumbi sombrios brilhavam em uma cor cobre de chamas, e demonstravam um ódio absoluto. O cão do inferno ainda possuia um par de asas de dragão enormes, e um corpo esquelético e apático, que lembrava uma criatura morta trazida de volta à vida por algum tipo de encantamento diabólico.
Penny Woody teve um momento de pânico. E começou a se desesperar. O demônio era incrivelmente grande, tinha vinte metros de comprimento, do focinho à cauda. E mesmo com todo seu corpo tremendo de medo, Penny Woody se levantou do chão e começou a correr na direção contrária da besta. O cão do inferno rangeu os dentes, rugiu alto e feroz, abriu suas enormes asas de dragão, e atacou.
Enquanto corria para escapar do monstro, Penny começa a ir perdendo a noção do tempo e o senso de direção. Parecia que seria impossível escapar do cão do inferno. Parou numa ribanceira de trinta metros de altura, havia chegado num caminho sem saída. Olhando para baixo corria um rio com uma água escura, onde também podia se ouvir as vozes de muitas pessoas.
O cão do inferno parou logo atrás de Penny Woody.
- Chega! - gritou o monstro, soltando um rugido de triunfo e lançando fogo aos céus, agitando ainda mais os casais de namorados apaixonados que dançavam nas alturas.
O chão tremeu e Penny caiu da ribanceira. Fechou os olhos e imaginou como seria morrer. Provavelmente, não seria uma experiência boa. Desejou que de algum modo não chegasse ao fundo.
II
De repente, tudo parou. Penny abriu os olhos. Não estava caindo. O coração do jovem batia forte, ele podia sentir como se o mesmo fosse sair do seu peito. Em vez disso, ele se encontrava no que parecia ser um belo e radiante jardim florido. O perfume das flores o deixaram meio tonto, como se o jardim tivesse vida própria. O cão do inferno havia simplesmente sumido e todo aquele cenário de terror desaparecido, como se nunca tivessem existido. O jovem soltou um longo e profundo suspiro de alívio. Achava que estivera em um sonho terrível, mas que agora havia acordado. Então diante dele surgiu a figura de um ser pequeno e ao mesmo tempo intimidador. O monstrinho calçava botas pequeninas pretas, tinha uma pele pálida e lábios rubros como sangue. A face da criatura brilhava à luz do dia como um fantasma imaginário, e ela encarava Penny com olhos vermelhos infernais, ameaçadores e perversos.
Penny Woody ficou parado encarando a criatura. O monstrinho sorriu de forma maligna. A expressão dele era sombria e parecia zombar do jovem. Então todo o cenário ensolarado do jardim mudou bruscamente. O céu de um azul cintilante, se tornou turvo num instante. O dia se transformou em noite como que por encanto. Tudo no jardim parecia vibrar de maneira sobrenatural e no céu relâmpagos cortavam a escuridão. Logo todo o lugar estava cheio daquelas criaturas pequeninas e monstruosas com rostos de fantasmas.
Uma delas se aproximou de Penny Woody o suficiente para que ele pudesse observá-la mais de perto. O seu rosto, a princípio apenas fantasmagórico, ficou mais branco, num tom mais pálido. Penny ficou assustado. O rosto do jovem estava cheio de espanto. O monstrinho parecia um boneco de ventríloquo estranho que ganhou vida.
- Onde eu estou? - perguntou Penny Woody.
A criatura riu.
- Você está no inferno!
III
Penny Woody lembrou de sua antiga vida, de quando chegou em casa num final de tarde qualquer de agosto. Lembrou como a rotina de professor podia ter dias extenuantes, como aquele. Encontrou a esposa Virgínia, no quarto fazendo suas malas, atônito, se aproximou tentando entender o que estava acontecendo.
- O que você está fazendo? - perguntou ele.
-Precisamos conversar.
Penny deu de ombros.
- Eu tô aqui! Sobre o que quer conversar?
Virgínia o encarou.
- Eu quero me separar de você.
As palavras de Virgínia atingiram Penny como uma bomba.
- Como é que é?
- É isso que você ouviu. Eu quero me separar de você.
- Olhe, Virgínia - Penny tentou argumentar. - Sei que o trabalho tem tomado meu tempo, mas as coisas vão melhorar.
Penny Woody se aproximou, mais uma vez, da esposa, mas Virgínia se afastou.
- Cansei de suas desculpas.
Sem reação, ele viu a esposa sair. Ficou no quarto, remoendo as palavras de Virgínia, sem encontrar motivos para que ela agisse daquela maneira. Com a cabeça latejando abriu a gaveta da cômoda e pegou um revólver, saiu e bateu a porta com força. Um som de tiro ecoou pela casa. Momentos depois o professor retornou para o quarto nervoso e tremendo de adrenalina. Em seguida colocou o revólver na cintura e saiu de casa dirigindo até um bar.
Penny estava num estado de incompreensão, tentando encontrar uma resposta para o pedido de divórcio da esposa. Mas não encontrava nenhuma que fizesse sentido para ele, pelo menos não naquele momento. No final da noite, Penny entrou no carro bêbado. A vida havia dado a ele um soco no estômago. Ao lembrar da esposa e do pedido de divórcio, chorou. Tocou o revólver no banco do passageiro. Ele acelerou o carro. No cruzamento, não viu o sinal vermelho e a batida contra o caminhão o lançou longe.
IV
Um trovão ribombou no céu, e a cabeça de Penny começou a doer. Procurou pelo jardim florido e suas criaturas com cara de fantasmas, mas todos haviam sumido, assim como tinha acontecido com o cão do inferno e o céu de fogo. O que ele contemplava agora em sua frente era um vasto e silencioso deserto de areia negra. Um vento frio fez os pelos do corpo de Penny se arrepiarem. Ele achava por um momento que fosse chover no inferno.
Olhou para o alto e contemplou para seu espanto e horror uma multidão agitada de pessoas gritando e se debatendo num céu envolto em fogo ardente, como uma supernova explodindo num anel de força consumindo tudo. Olhando para baixo, na direção do deserto negrume, Penny Woody fôra surpreendido por uma procissão de pessoas mortas vagando sem destino, todas ainda presas em suas antigas vidas, lamentando e chorando, enquanto eram atormentadas por pequenos demônios voadores numa mistura bizarra de macaco, morcego, águia e escorpião, uma quimera do inferno perfeita.
Os pequenos demônios podiam assumir a fisionomia da alma atormentada, e ficavam constantemente fazendo com que cada um ali nunca se esquecesse dos seus pecados terrenos e do por que foram condenados àquele lugar de dores e tormentos eternos.
Penny Woody também tinha o seu demônio particular com rosto de gente e corpo de animal. Era o rosto de sua esposa Virgínia num corpo de escorpião com asas de morcego. A criatura sentia um prazer sádico em atormentar Penny, enquanto esse tentava afastá-la para longe, o que não surtia efeito... Mas, em vez disso, só deixava o pequeno demônio mais furioso, o fazendo soltar gritinhos agudos e terríveis. Penny tapou os ouvidos para não ouvir o barulhinho maldito emitido pelo monstrinho com o rosto da sua esposa, mas era em vão, pois o som ia direto aos tímpanos.
Agora, tomado pelo desespero, Penny Woody amaldiçoava sua morte e o inferno que havia tragado sua alma. O som feito pelo pequeno demônio foi sumindo, ficando mais baixo, como passos que se afastam numa calçada. Penny olhou ao redor, a criatura havia desaparecido... A procissão dos mortos também. Ele estava outra vez sozinho no deserto.
Penny Woody começou a sentir um calor horrível se espalhando por seu corpo. Sua boca foi ficando excessivamente seca e ele começou a cavar o chão do deserto em busca de água, chegando a ingerir areia para aplacar o terrível fogo que tomava conta do seu interior. Penny caiu, para o lado, a dor tomando conta de sua mente, e seu último pensamento foi que seu corpo estava queimando.
V
Penny Woody acordou tremendo de frio, os olhos abrindo com dificuldade, se acostumando com a luz ambiente. Ele se levantou, não sentia mais como se seu corpo estivesse pegando fogo. Olhou ao redor, espantado, estava dentro de uma cidade medieval decrépita. Nuvens cinzentas e baixas se misturavam à neblina, e havia uma espécie de chuva fria e fina no ar. O local tinha uma aura assombrada, solitária.
Castelos em ruínas e as casas abandonadas pareciam abrigar olhos curiosos em seus interiores, enquanto vultos escuros saltavam pelos telhados em ruínas feito gatos vagabundos na calada da noite. Nada em relação a cidade parecia real, tudo lembrava um cenário de filme de terror amaldiçoado.
Penny nunca imaginou que algo poderia ser mais assustador que a visão do cão do inferno com asas de dragão. Mas estava enganado. Aquela cidade e seus habitantes passavam uma sensação de horror impossível de se descrever com palavras.
Demônios medonhos com formas e tamanhos diferentes emegiam de todos os cantos imagináveis, feito feras selvagens, ferozes, rosnasndo e mostrando os dentes. Seus olhos brilhavam como prata incandescente na neblina e suas peles tinham uma palidez leitosa com a textura de madeira branca crua.
Penny se virou. Estava cercado por aquelas criaturas assustadoras. Ele suou frio. Um turbilhão de sensações passou por sua mente, fazendo sua cabeça doer novamente. De repente, ele começou a ouvir o som de muitas vozes indo em sua direção, perturbando seus pensamentos. Ao mesmo tempo que parecia que essas tais vozes vinham da sua própria cabeça. Eram lamentações, gemidos de dor, e choros. O espírito de Penny Woody de alguma maneira bizarra compartilhava também de todo aquele sofrimento infernal, como se ele mesmo fizesse parte dele.
Os demônios que cercavam Penny riam diabolicamente do seu sofrimento, ao mesmo tempo em que cantavam e dançavam de alegria, numa insanidade frenética. Penny correu para longe dos demônios, buscando pela saída da cidade. Ele correu tanto que parecia uma eternidade, e ao mesmo tempo era como se não tivesse saído do lugar. As vozes em sua cabeça crescendo de intensidade, adquirindo um tom mais elevado, alucinante e enlouquecedor.
Penny parou e gritou com toda sua força. O vozerio em sua cabeça começou a ficar mais baixo e menos intenso, até parar. Os movimentos dentro da cidade também se tornaram mais lentos. Os castelos antigos e as velhas casas abandonadas que serviam de morada para demônios, aos poucos foram ficando sem brilho e sem cor, e se transformaram em sombras, e desapareceram.
VI
Penny Woody estava outra vez sozinho. Mas o mais assustador era o local em que ele se encontrava. Um abismo de fogo ardente que subia até as alturas. As chamas crepitavam clareando tudo ao seu redor e emanavam um som estranho de gemidos e chiados, como se estivessem vivas. Penny podia ouvir claramente o som de pessoas gritando do fundo do abismo em chamas. O fogo que saia do grande buraco com movimentos ágeis, como se possuísse braços, puxava de volta para baixo aqueles que tentavam escapar do seu domínio.
- Penny Woody! - uma voz cadavérica emergiu das profundezas do grande abismo de fogo.
O cão do inferno com asas de dragão estava diante de Penny. O jovem encarou a besta sem resistência, ciente da sua condição de impotência diante daquele monstro. Penny estava intorpecido.
- Eu não entendo porque você está fazendo isso comigo? - perguntou ele.
O demônio riu. Sua risada parecia zombar da pergunta de Penny Woody.
- Você é um assassino, e o lugar de assassinos é no inferno.
A resposta do monstro o tirou de seu devaneio.
- Virgínia! - disse Penny Woody.
Epílogo
Quando Penny Woody acordou num lugar que parecia ser uma UTI, seus olhos fitaram o teto, depois o ambiente ao seu redor tentando reconhecer onde estava. Sua cabeça doia um pouco e suas ideias estavam meio confusas. Não havia sinal da presença recente de um único ser humano vivo por perto. Penny saiu da cama. Caminhou até próximo a porta de entrada do quarto e contemplou um corredor longo, vazio e quase totalmente escuro, o que lhe provocou uma sensação incômoda, as luzes vez por outra piscavam como se fossem apagar a qualquer momento. Ignorando os acontecimentos desde sua internação, o medo crescente que estava sentindo de toda aquela situação estranha e o tempo que se encontrava desacordado, Penny saiu para fora.
O professor chegou ao térreo.Tudo estava tranquilo e silencioso. E não foi difícil chegar até a recepção aparentemente abandonada do hospital. Um vento gelado soprava do lado de fora. Apenas uma densa neblina branca pairava no ar. A rua estava calma e silenciosa. Em cima do balcão Penny Woody encontrou um jornal velho. A matéria de capa chamou sua atenção. Nela podia se ler: Professor mata esposa e depois morre vítima de acidente de trânsito após passar duas semanas internado num leito de UTI.
FIM
Tema: FORMAS DE VIDAS ATERRORIZANTES.