CONVIVENDO COM MONSTROS.
Zaccky acelerou a BMW vermelha na autovia. O vento no rosto. Velocidade de 180 por hora. A paisagem de tirar o fôlego, a caminho de Hannover, Alemanha. A lembrança da namorada Milla, uma advogada do Mali.O rapaz tirou os óculos escuros e ligou o rádio. Arregalou os olhos. Aquela música o atraía. Era contagiante e alegre. Sabia uma ou duas palavras em português. -"Euuuu.... tô com saudades de te deixar louca, de beijar sua boca e chamar de safada..." Zaccky tentava acompanhar a música, sorrindo. Não entendia nada mas adorava o ritmo. -"Que música boa. Uau." Anotou o nome do cantor. -"Brasil. Isso é música brasileira." Um telefonema do escritório. -"Zaccky? Filho, os japoneses estão esperando. Reunião às dez." Zaccky sorriu. -"Pai, estarei aí vinte minutos. Te amo." O carro voando na pista. Uma vaca atravessou a estrada. Zaccky freou bruscamente. O choque com o animal. O carro saiu da estrada e capotou várias vezes. As equipes de resgate. A mesa de cirurgia. As luzes. O esforço dos médicos. O rapaz em coma. -"Coma, Zacarias! Coma senão você cai na cinta!" Gritava a mulher no terreiro. Zaccky, em coma, via a cena. -"Não fale assim com o menino, Bastiana. Me dê o mingau." O homem pegou o prato. A mulher jogou a criança de um ano no colo do homem de chapéu de couro. O quintal cheio de bodes e cabras. Os cactos e a vista pra serra. Bastiana e Pedro tinham cinco filhos. Uma vida difícil no agreste. A seca. A fome. A água rara. Seis meses sem chuvas. O pequeno Zacarias estava doente. Pedro, no outro dia, levou o filho ao posto de saúde da cidade, a três quilômetros dali. A noite caiu. Um céu bonito e estrelado não rimava com aquela figura grotesca que rondava a casa de barro. Um homem alto e carrancudo com uma arma. Andara muito até alí. Escondendo-se na vegetação para não ser visto. Tinha visto Pedro e a criança na cidade e os seguiu. Era perfeito. -"Dessa vez não vou errar. Mato todos e levo a criança." O relógio marcava onze da noite. Steve sentou-se numa pedra. -"Está cedo. Vou esperar." Um jogo de damas no celular. Um lanche de presunto. O brutamontes caiu no sono. Eram três da manhã quando despertou. Virou a garrafa de água no rosto. -"Puxa. Apaguei. Vamos ao que interessa." Ele se levantou e colocou o casaco. A touca ninja. A arma em punho. O silenciador. O quintal da casa. Dois cães a beira da porta. Steve tirou um pedaço de carne da mochila. Um barbante. Ele jogou a carne na direção dos animais. Steve puxou o barbante. Os cães comendo a carne apetitosa. Nem notaram o ponto vermelho em suas cabeças. Os tiros certeiros. Steve avançou até a casa. A porta só escostada. Steve com os óculos infravermelhos. As luvas de couro. Pisando em ovos. Pedro roncava na rede. Alguns meninos no chão. Steve apontou a arma mas não disparou. Ficou horrorizado com tanta pobreza. A cama de solteiro. Bastiana e o pequeno Zacarias. Steve pegou a criança, enrolada numa manta. O homem saiu rápido. O carro parado perto de um riacho. Steve ligou para seu contato. -"Alfred? Arrume o quarto. A arara está aqui." Falou em códigos. Steve acelerou, levantando poeira. Saiu da rua de terra. A rodovia. A criança no bebê conforto. -"Sortudo, você! Queria eu ter a vida que você vai ter, rapazinho!" Horas depois, o hotel em frente ao aeroporto da capital paraibana. O quarto 43. Três batidas na porta. O homem careca apareceu. -"Steve. Entre." O brutamontes entrou. Reparou na garrafa de vinho no aparador. A maleta sobre a cama. O homem abriu a maleta. -"Cem mil reais. Ótimo, meu caro." Steve pegou a maleta. -"A criança está no carro, rapaz. Até nunca mais." Steve não deu as costas ao outro. A mão nas costas. O homem puxou um revólver. -"Não pense nisso, Alfred. Meus homens estão com seu filho. Só vão soltar o garoto vivo se eu voltar com o dinheiro. Acha que sou idiota?" O outro mirou a cabeça de Steve. -"Está mentindo!" Steve ligou o celular. Um vídeo. -"Duvida? Herculano é bom menino. Gosta de futebol e xadrez. Veja, está ensinando os tapados dos meus homens!" Alfred abaixou a arma. -"Não dificulte as coisas. Entrega a criança aos gringos e fica na tua. Se um cair, todos caem. Está no esquema só porque trabalha no aeroporto, imbecil." Steve jogou as chaves do carro sobre a cama. -"Herculano será libertado assim que os gringos chegarem a Alemanha, só por garantia que você não vai dar furo! Adeus." Alfred ligou pra esposa. -"Traga as visitas. Temos chocolate de sobremesa." Era a senha que o plano estava dando certo. Raimunda sorriu. A mulher abraçou o casal de alemães. Um táxi. Em pouco tempo estavam no hotel. Hans e Frida pegaram Zacarias no colo. Um choro de alegria. O casal não podia ter filhos. -"Nossa filha, Frida." Exultou o homem branquelo e de olhos azuis. Os novos documentos da criança já estavam prontos. O casal saiu do avião com um boneco e voltaria com uma criança de verdade. Nada mudaria nas câmeras de segurança. Alfred estava no check in. Tudo correndo bem. -"Parra um café, Alfred." Hans colocou um cheque no bolso do funcionário do aeroporto. Gumercindo, verdadeiro nome do rapaz, sorriu. -"Grato, senhor. Tenham uma ótima viagem." Um sinal a outro funcionário do aeroporto. O casal de alemães passou tranquilo pela inspeção. As máquinas desligadas para o casal passar para a pista. Gumercindo olhou, de longe, o casal embarcar no avião. -"Garoto de sorte. Agora é alemão e rico." Gumercindo apertou o bolso, onde estava o cheque que ganhara. Zaccky Lieverstein foi criado em Dortmund. A família se mudou pra Berlim, sede da fábrica de motores da família. -"Está pele e osso, Hans. Vamos cuidar dele." Frida estava apaixonada por Zaccky. O garoto cresceu saudável e mais tarde cursou as melhores faculdades. Herdeiro único de um polpudo patrimônio. Estava sempre acompanhado de seguranças e tutores. Hans e Frida mimavam o filho. Zaccky retribuía com muito amor e carinho. Desenvolveu um apreço por motores e carros, igual ao pai. Orgulhoso, Hans surtou ao ver o filho se dar bem no tênis e no golfe, esportes de elite. Bastiana e Pedro acordaram. Os meninos querendo algo pra forrar o estômago. Pedro foi ao quintal. A moita de boldo. Um chá cairia bem pois o café deles tinha acabado a dias. Um grito. -"Pedro. O Zacarias não está aqui." Gritou Bastiana, desesperada. As crianças procurando o bebê. Pedro não encontrou os cães. -"Canela e Foguete sumiram. Meus cães sumiram." A família foi até um vizinho, que chamou a polícia. As buscas. Os avisos na cidade. A polícia investigando o sumiço da criança. O mistério do desaparecimento dos cães. O caso encerrado. Vinte anos se passaram. Hans e Frida não mediam esforços e dinheiro pra salvar o filho. Zaccky teve uma pequena melhora mas morreu após quatro meses em coma. O rapaz despertou e quis abraçar os pais. Eles choravam. Zaccky pensou em sua casa e estava lá, instantâneamente. -"Estranho, eu penso e vou pra onde eu penso. Milla, quero ver Milla." Zaccky quis socar o moço que beijava sua namorada. O seu braço passou pelo rosto do rapaz. Milla parecia feliz. -"Adam, nosso plano falhou. Quando eu ia dizer ao tonto que estava grávida, o ricaço trouxa morre!" Adam a abraçou. -"Vai ter que abortar, Milla. É meu filho mas não tenho condições de criar." Horrorizado, Zaccky pensou em sua casa. Passou pela porta. -"Passei direto?!? Eu morri?!!" As escadas. As paredes. Os pais com a dezena de empregados na casa luxuosa. Zaccky podia ler os pensamentos deles. Um tumulto de vozes na sua cabeça. Ele se aproximou de Hans. -"Não creio. Pai... fala comigo." Hans sentiu um arrepio. Zaccky se aproximou da mãe. -"Mãe? Sou eu!" Zaccky viu alguém chorando. Não era uma das empregadas. A mulher o abraçou. -"Quem é você? Não a conheço." A mulher se afastou. -"Zacarias. Sou sua verdadeira mãe. Filho, esse casal roubou você de mim." Zaccky estava confuso. -"Deixe-o, Tiana. Você nunca ligou pra ele mesmo. Viveu pouco mas bem, diferente de nós. Você já causou a morte de Steve, Raimunda e Gumercindo. Causou o incêndio na fábrica de motores. Deixe a vingança pra lá, mulher." Zaccky viu a legião de demônios atrás daquela mulher que dizia ser sua mãe. Hans, a sós com a esposa, pensou em Zaccky. O espírito do rapaz captou aquela energia e ficou próximo ao homem. -"Não deveria ter concordado, querida. Roubamos a criança. Foi um erro." Frida estava abatida. -"Uma vaca na estrada. Que irresponsabilidade desses fazendeiros! Nosso Zaccky se foi. Nunca. Ouviu, Hans? Nunca uma vaca tinha atravessado a cerca e entrado na pista. Em oitenta anos, nunca!" Bastiana sorriu. Pedro abraçou o filho. -"Ela causou seu acidente para tirá-lo de Frida. É uma suicida, Zaccky." O rapaz estava todo coberto de sangue e ferimentos do acidente. -"Não suportei sua falta, meu filho." Gritou Bastiana. -"Então é verdade. Sou filho de vocês, brasileiros?! Por isso gostava tanto de forró, feijoada e da seleção brasileira?" Pedro se aproximou do filho. Eles estavam na casa do agreste. Zaccky reconheceu a casa de seus pesadelos. -"Seus irmãos foram adotados, Zaccky. Estão bem." Eles entraram na casa. -"Existem um intenso tráfico de crianças, infelizmente. Crianças raptadas para casais gringos sem condições de procriar. São centenas de desaparecidos, só no Brasil. Você foi um deles, Zaccky." Pedro assumiu uma postura ereta e confiável. Falava sem sotaque. Zaccky percebeu que ele era um ser de luz boa e intensa. -"Sua mãe se revoltou. Fiquei triste mas quem garante que você sobreviveria aqui? O amanhã a Deus pertence." Zaccky se comoveu. Bastiana começou a atormentar Frida. A mulher deu seis tiros em Hans, antes de se matar. No hospital, Hans contou toda a história a polícia, antes de morrer. Zaccky e Pedro assistiram o intenso embate entre Frida e Bastiana, noutra realidade. -"Há algo que as une, meu pai. São adversárias mas são parecidas!" Disse Zaccky a Pedro. -" Foram mãe e filha em outras vidas, meu rapaz, mas isso já é outra história!" FIM