Gritos na noite - (horror/terror/suspense/mistério/humor negro)
Sinopse: Baseado no filme “Uma noite de crime”. A lei da purificação finalmente foi aprovada no Brasil. Mãe e filha correm contra o tempo para se salvarem. Elas só não esperavam que tanta coisa ruim pudesse acontecer em uma única noite.
Nota do autor: segundo a Lei da Purificação, intitulada no filme de horror “Uma Noite de Crime”, — enredo base deste conto — uma vez por ano, em solo americano, acontece a noite da purificação, ou seja, um período de 12 horas consecutivas em que todo tipo de crime é permitido por lei, sem consequência jurídica.
Gritos na noite
Dobrando a esquina, um carro percorria as ruas da cidade em altíssima velocidade: desprezando os semáforos, faiscando o metal da lataria rente aos outros carros estacionados, provocando exacerbado tumulto através dos gritos desaforados emergindo do interior do automóvel.
— Saiam da frente seus merdas! — Gritava o garoto ao volante.
Com o ziguezaguear do veículo, eles ridicularizavam os passantes a toque de risos e gestos estrebuchados, com as mãos para fora da janela, valseando garrafas de vodcas ao ar.
“Vai atropelá-las!” — Premeditou um rapaz ao ver o carro descontrolado se aproximar de uma mãe com sua filha.
Daí, em um sobressalto, instigado por puro instinto inexplicável, nos milésimos dos segundos que se seguiram ele deu um pulo que o colocou bem ao lado das duas.
— RÁPIDO, — ele berrou — SAIAM DAQUI!
— O que?! — Disse a mãe assustada ao sentir o empurrão do rapaz.
Tão logo eles alcançaram a borda do meio fio, o rapaz se curvou sobre elas e as protegeu com o corpo. Rezou para que o estrondo da lataria do veículo não os alcançasse. Felizmente, não os alcançou.
— Não precisa chorar, — O rapaz disse em seguida pra menininha que já ensaiava um choro pra mãe — está tudo bem, o pior já passou…
Enquanto isso, o automóvel derrapou sobre uma camada de cascalho que havia sobre a pista. Só parou depois de ir emitido um barulho de borracha sendo fritada no asfalto, até estacionar de vez, rente a um poste de luz.
— Que estão olhando seus bostas?! — exclamou um garoto gordo, o que estava na direção. Tudo indicava que ele era o líder do bando.
— Você é doido cara?! — O rapaz esbravejou pra ele com o olhar cáustico. — Está cheio de pessoas aqui! — ele disse — O mínimo que deve fazer é nos pedir desculpas!
— Que desculpas que nada, palhaço! — retorquiu o garoto gordo.
Havia mais outros indivíduos dentro do veículo. Dois fortões. Mas o garoto gordo era o que aparentava estar mais alcoolizado. Ele abriu a porta do motorista e veio bufando na direção do rapaz.
— Vai a puta que te pariu! — ele vociferou ao chegar mais perto do rapaz — Se continuar enchendo o meu saco, juro que da próxima vez te atropelo.
“Dá próxima vez?!” Pensou o rapaz. Então não demorou muito e: — “POW!” — um soco acertou o garoto gordo, acachapando seu nariz bem no meio de seus olhos avermelhados. E, segundos após, esparramado no chão, ele ficou a gesticular fúrias, convocando os outros dois para vir acudi-lo.
— Marquem a cara desse safado! — ele disse aos dois brutamontes — Assim que as sirenes soarem, vamos mostrar para esse filho da puta o que acontece com quem se mete a besta com a gente...
— Vamos dar uma lição nele agora, chefe. — interveio um deles — Vamos mostrar a ele com quantos paus se faz uma canoa...
Tão logo o garoto gordo assentiu com a cabeça, os brutamontes caminharam em direção do rapaz para fazer dele um gato escaldado. Mas de repente, eles foram surpreendidos ao ouvir um grito fininho, emanando de trás:
— Vocês tlês, palem já com isso! — bradou a menininha — Tlansgledi a lei da pulificação é clime fedelal!
Todos ao redor se espantaram ao ouvir as palavras firmes ditos pela menininha com as mãos na cintura, expressando um semblante intrépido como se fosse gente grande e corajosa.
— Vão embora daqui! — foi à vez da mãe intervir — ainda podemos chamar a polícia. Vocês estão infringindo a lei da purificação, e sabem bem disso, né?
Ao ouvirem a mãe da menininha, a gangue temeu e foi se afastando, afinal ainda era 20h e a purificação só estaria liberada a partir das 21h. Ao recuar, o garoto gordo continuou estampando o mesmo olhar carregado de ódio para o rapaz.
— Fiquem espertos! — o garoto gordo sussurrou ao fechar a porta do veículo. Sua voz rangia — Daqui uma hora está tudo liberado... Daí vão ver o que é bom pra tosse...
Ao ouvir a ameaça, a mãe tremeu de medo, e a menininha assustou-se, a ponto de correr pra subir no colo do rapaz. Mas o rapaz permaneceu com o rosto firme, os encarando.
— Fui salvo pelo gongo! — O rapaz brincou com a menininha depois que o carro partiu — Eu não ia dar conta dos três mesmo.
— Obligado você! — A menininha se antecipou com os olhinhos cintilando de admiração para o rapaz — Você impediu de selmos atlopeladas.
Depois que tudo ficou mais calmo, a quase tragédia já reverberava nas pessoas aglomeradas ao redor; faces aliviadas, cochichos entre os transeuntes, e um e outro comentário acompanhado com gestos bruscos de dedos e mãos imitando a derrapagem do veículo ocorrido há pouco.
— Obrigada! — Foi a vez da mãe da menininha agradecer. Mas logo que se acercou da fisionomia do rapaz, ela coçou a cabeça e ficou um pouco confusa — Nos conhecemos de algum lugar?
— Creio que não. — respondeu o rapaz — Morei um tempão nesta cidade, mas hoje moro em outra. Vim pra ficar apenas um dia.
— Ah, desculpe. — A mãe da menininha respondeu sem graça. E apesar de jurar que já o tinha visto, ela deixou pra lá.
— Tudo bem — ele disse — eu tenho um rosto comum. Deve ser por isso. Não é a primeira vez que me confundem com outra pessoa.
E, como depois disto, estranhamente o rapaz ficou a olhar navios no horizonte, como se estivesse preso em memórias do próprio passado, a mãe da menininha, muito curiosa, se antecipou para tirá-lo daquele seu transe.
— Diga-me, — disse a mãe da menininha — por que se arrisca a ficar na rua, logo na noite da purificação?
— Aff, — o rapaz soltou um grunhido de frustração — É que meu carro resolveu pifar aqui no centro da cidade, acredita? E como hoje não tem ônibus, uber, tampouco táxi pra nos socorrer, o jeito é ir caminhando até o hotel — Depois que respondeu tudo que a mãe da menininha queria saber, o rapaz voltou-se pra ela e retribuiu a pergunta — E vocês? Por que ainda estão na rua uma hora dessas? Não tem medo de serem purificadas?
Depois de um suspiro a mãe da menininha ajeitou os cabelos e ficou a pensar. A verdade era que a resposta era de foro íntimo. Muito íntimo. Mas do nada ela criou coragem e revelou algo que, se não estivesse tão chateada com a própria vida, teria evitado comentar com ele.
— Eu vim para o centro da cidade resolver umas “pendências” com o advogado do meu ex-marido. Mas no fim acabou que não resolvemos nada. — ela disse — Tivemos que adiar a reunião. Meu ex-marido não apareceu no escritório.
— Ah, certo. — o rapaz disse de forma compreensiva. Mas como a mãe da menininha não deu sinais que ficara a vontade com sua última pergunta, ele buscou mudar o rumo da conversa.
— Em noites como essa, — ele disse, com ar sombrio — o que há de pior nas pessoas vem a tona... Pessoas boas, como eu e você, por exemplo, se transformam em verdadeiros monstros...
— Concordo. — emendou a mãe da menininha. — Ainda hoje me pergunto: como é que o congresso brasileiro foi aprovar uma lei absurda como essa?! — Mas logo em seguida ela ficou preocupada com o teor do próprio comentário, de forma que parou pra pensar na longa jornada a pé que, ela e a filha teriam que percorrer até chegarem na casa da sua mãe.
— Por que não esperam no saguão do hotel? — se ofereceu o rapaz — Pelo que fiquei sabendo, o gerente adotou todos os protocolos de segurança possível. Estarão seguras lá dentro. Digo que são minhas convidadas e está tudo certo. Partem assim que tudo isso acabar.
— Aceitamos se não for atrapalhar... — a mãe da menininha disse sem pensar muito, de forma que ela não conseguiu esconder o alívio que sentiu após ouvir a oferta.
— Sem problemas, — ele respondeu contente. Mas em seguida estampou um semblante de preocupação ao olhar as horas na tela do celular — mas temos que acelerar. — ele disse — Daqui até o hotel tem muito chão pela frente.
O rapaz sabia que a cada minuto que passava, a cidade fica mais perigosa. A maior prova disso era que, enquanto eles percorriam as ruas e avenidas, já era possível perceber a “costumeira energia do expurgo” descendo sobre o coração de parte da população. Ao longe, — como em anos passados tornara-se cada vez mais comum desde que a lei do expurgo foi importada do exterior, dos Estados Unidos para ser mais exato — era fácil perceber o contraste de comportamentos de todo o tipo, ou seja, enquanto alguns cidadãos reforçavam as portas e janelas da própria casa, outras pessoas, usando máscaras infernais, se aglomeravam em meio a gritos e armas de todo o tipo.
Então, durante a hora que antecedia o soar das sirenes era muito comum de se ouvir entre as pessoas: “Esperei muito por esta noite!”, ou “Não vejo a hora de me purificar!”, também outras coisas mais perversas, como: “Está chegando a hora da matança!”, e também, “Só vou exercer o meu livre direito de extravasar!”.
— Já são 20h45. — alertou o rapaz depois de um bom tempo de caminhada — agora temos que correr ou não vamos chegar a tempo de entrar no hotel.
Enquanto avançavam casas, prédios e estabelecimentos de comércio, as duas permaneciam a poucos passos a frente do rapaz que as seguia temeroso, olhando a todo o instante pra trás, com a leve impressão que alguém os seguia. Quando enfim alcançaram a avenida principal, — já nas proximidades do hotel — eles ouviram muitos gritos frenéticos que comprovou que a “Noite de crimes” estava prestes a iniciar.
No mesmo instante, as caixas de altos falantes instaladas ao longo de ruas e avenidas, passaram a emitir a mensagem oficial do governo:
“Isso não é um teste! — falou a voz firme de uma mulher — É o sistema de transmissão de emergência anunciando o início da purificação anual aprovada pelo governo brasileiro. Armas de classe 4 abaixo foram autorizadas para o uso durante a purificação. O uso de qualquer outro armamento é restrito. Oficiais do governo de nível 10 receberão imunidade durante a purificação e não poderão ser feridos. Ao toque da sirene; todo e qualquer crime, inclusive assassinato, será permitido durante 12 horas contínuas. A polícia, os bombeiros e os serviços médicos de emergência estarão indisponíveis até amanhã à 9 da manhã, quando a purificação estará encerrada. Abençoado seja os nossos Novos Pais Fundadores e o Brasil. Uma nação renascida. Que Deus esteja com vocês!”.
Minutos antes, a menininha tinha acelerado os passinhos e, um pouco distante, voltava com um sorriso inocente, dando pulos nos quadriculados que ela imaginava estarem pintados no chão.
— Mamãe, me calega? — Depois que a mãe a pegou no colo, ela ouviu o grunhido do rapaz com os olhos fincados ao longe.
— Puta merda! — ele disse — Já tem um bando de mascarados lá na ponte...
A ponte em questão era justamente a via de acesso direto ao hotel. Mas a ponte já estava inundada de veículos, e com um mar de gente encapuzada ao redor. Sobre o grosso concreto desfilavam mascarados de todo o tipo: demônios vermelhos fogo, caveiras negras e cravejadas de cristais, sem falar nas bizarras criaturas erguendo espingardas, pistolas automáticas, e alguns poucos revólveres 38 enquanto eram rodeados por mulheres seminuas cortando os ares com punhais, adagas e facões reluzentes.
— Vamos fugir daqui ante que eles nos vejam — alertou o rapaz.
Infelizmente, o único atalho disponível para chegarem ao hotel, era uma estrada de terra mal iluminada que percorria abaixo da ponte, ladeada por matas a perder de vista. A vantagem era que, caso eles optassem por adentrar aquele lugar sombrio, seria apenas uns poucos quilômetros a mais até o hotel.
— Será que é seguro? — A mãe da menininha perguntou apreensiva vendo o breu que teriam que mergulhar.
O rapaz colocou a mão no queixo e fincou o olhar na escuridão a frente. Ele só abriu a boca depois de pensar muito.
— Perambular por aí com tantas pessoas à nossa volta querendo purificar, também não é lá um bom negócio... — refletiu o rapaz.
Depois deste curto diálogo, não houve negociações entre os dois, de forma que a mãe da menininha pegou na mão da pequena e passou a seguir confiante atrás do rapaz.
A escuridão quase que reinava por absoluto no pasto. E agora, sem a barreira física das construções que havia na cidade acima, as rajadas de ventos ganhavam muito mais corpulência na área onde eles estavam: gelando seus rostos, agitando suas roupas, e nas folhas das copas das árvores; vibrando assobios cortantes que amedrontaram a mãe, principalmente a menininha que, ficando muito assustada, pulou outra vez no colo do rapaz.
Durante minutos, eles caminharam em completa escuridão. Um pouco mais adiante, alguns postes de troncos de madeira retorcida e podre, intercalavam fraquíssimas luzes amareladas sobre a estrada de terra percorrendo em paralelo ao calçadão já ecoando gritos de terror lá de cima.
— Mamãe, — disse a menininha com os olhinhos naufragados de pavor — tem uma colujinha nos pelseguindo.
Depois a pequena apontou o dedinho pra frente, na direção de uma estaca de arame farpado, onde sobre a mesma empoleirava uma coruja que parecia já ter visto voar na cidade. A corujinha tinha a penugem cinzenta, os olhos amarelados, e por causa da força do vento que ora e outra fustigava seu peito, a mesma perdia o equilíbrio, mas logo em seguida o recuperava ao bater suas asas.
— É só um bichinho, minha filha, — confortou a mãe da menininha — não precisa ficar com medo, tá? É só não mexermos com ela que tá tudo bem.
Mas quando eles passaram ao lado da coruja, — que aos poucos foi ficando para trás, — ela emitiu um guincho assustador que os estremeceu por completo. A ave, agora com o peito aprumado, deu um giro de cabeça, e alçou voou em seguida, mergulhando na escuridão à frente deles. E, quando tudo parecia estar mais calmo, ela reapareceu de repente em um voou rasante, quase triscando suas garras na cabeça da menininha.
— Você acredita em sinais?! — A mãe da menininha perguntou apreensiva ao rapaz.
— Nem sei do que está falando, — respondeu o rapaz — só sei que se quisermos chegar ao hotel, precisamos continuar andando...
— Aquele guincho foi tipo um aviso. — A mãe da menininha tornou a insistir — Vamos procurar outro caminho. Por favor!
— Só há este caminho, — retorquiu o rapaz, sem lhe dar ouvidos — sem falar que falta pouco até chegarmos do outro lado.
— Realmente não acredita em sinais?! — ela tornou a reavivar a pergunta, vindo por trás do rapaz.
Continua...
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