O Epílogo Anunciado
Deito-me às páginas, rubras letras cursivas; no âmbito dos sonhos habito tendo à alma o eflúvio de minha própria seiva. Nas sombras oníricas eu o encontro, alado ser notívago e esquálido, beleza núrida¹! Traz consigo o semblante da luz sombria e ao redor de seu esplendor há flores mortas. Olhos felinos, besta humana de nume composição; belíssimo! Mórbida beleza para uma única busca inebriante: a minha sujeição. Hesito, ainda que atordoada; ele me chama à sua glória abissal e, no meu observar tão extático — a sentir que me rarefaço a cada instante — , o livro que protege as minhas letras — e o meu espírito — se evidencia no pomo solene da besta que me chama.
Ao fitá-lo, desperto; acordo fulminante e certa de que devo escrever o que vi… o que senti…, no entanto não há mais sangue à pena, nem folhas ao diário que tão súbito revela-me ausente. Roubado! Ó, sim, levado de mim tal como se leva a alma d’um moribundo. A criatura o levou pelos meus pesadelos com a sua dantesca imagem fascinante quando me deixei ludibriada em seu manto de revelação; estava preso ao pomo de seu poder… Meu pobre imo… meu pobre imo em letras e sangue estará na eternidade sobre o altar de condenados n’um templo sombrio n’algures do universo… a menos que eu o reencontre no desvanecer do sono profundo, o sono profundo é a única escolha.
Vozes sibilares do inverno que se esparge — fogo algum crepita, veste alguma protege. Uma única vela — a única luz — se apaga pelo sopro das cordilheiras. Outro espaço… caminho pelo macio gelo enquanto sinto meus pés necrosarem. Preso ao pinheiro, com arames envoltos a carne fresca animal, uma única página do que se perdera de mim, à força, pela atrocidade do apoteótico. “Estou no sétimo sono, à sétima noite, sob sete palmos, ao sétimo cântico do limbo.” — Li-o, era a minha própria letra cursiva, rubra-enferrujada, reli-o, era a minha própria voz no pântano obscuro do sonhar que desfazia. Outra noite sem sucesso; a cada hora meu corpo se desprendia da alma, a cada ínfima hora afastada do centro de meu ser, das palavras quais me guiam nas sombras do novo mundo, o nadificante núcleo da ausência crescia.
Terceiro sono, lua cheia. Luminosidade dos vales onde o pecado é a sombra da inocência. Meu corpo rasteja pelo labirinto negrume criado de altos muros e árvores mortas de estatura gigantesca; sinto minha respiração densa, sufocada pela aura maligna que descansa no âmbito onírico que me cinge. No entanto, no pousar de uma coruja misteriosa em galhos secos do último carvalho fitado pelos meus olhos ardentes, uma folha em seu bico cai como pena sobre meu semblante já tão consternado. Está vazia. A nulidade que compõe suas entranhas vocifera meu horror pálido e posso visualizar com a perfeição de uma águia a destruição iminente de meu diário roubado pela criatura alada. Desperto, terceiro sono, maldita lua cheia.
Sem força alguma, debaixo de minha própria vitalidade que símil ao vapor se esvaía de mim. Esperei pela quarta imersão no pulsar do entardecer e ela, tão atemporal, não tardara; no quarto plano sonial respirava um dia pálido e seco, nenhuma criatura soturna poderia contemplar a desértica fauna e flora enquanto o astro, no firmamento, no seu ápice cuspia fogo e lava. No horizonte, entretanto, destacava-se uma cruz sem réu; uma cruz que sussurrava meu nome na melancolia de uma elegia. Fui levada até ela frente ao meu desejo peculiar de ouvi-la mais de perto, fui levada pelo sopro quente impetuoso que tão cálido tocava-me a ferir cada centímetro de minha cútis. “Aqui jaz O Diário” — eu li sobre o túmulo mórbido. Em desespero cavei com minhas mãos em carne viva e como, como doía! A dor era real e hoje, ainda, persiste. E mais real que minha decadência, à sete palmos: o diário, o meu diário, rachado, rasgado e ferido, repousava morto.
Meus olhos abriram e levantei meu tronco, célere, a janela do quarto aberta trazia o frio das sete horas da noite. Uma hora de sono, uma mísera hora, e minhas mãos cuja areia adentrava pela carne exposta não puderam alcançá-lo na fundura da cova tórrida e seca. Meu pranto em horror faminto, lágrimas de adeus e agrura. “Por quê?” — bradei ao vazio. “Eu que nada fiz contra deus algum, nem à vida pacata reclamei ou ao caos da solidão fui contra em meu abismo… Eu análoga ao ser mais desprezível, ao verme, ao grão, ao escarro do átomo… tudo o que significava para minha ínfima constituição era o livro que me guardava a alma e ainda assim dele fui desprendida…” — lamuriei. Curvei-me, então, à insônia e nela me obriguei a morar enquanto nenhuma resposta atravessava-me os sentidos.
Quinta noite, escleras avermelhadas, pupilas dilatadas. Sonho algum. E assim da quinta à sexta noite, quebrado o silêncio pelo tênue som que vinha, eu sei, cobrir meu corpo com a mortalha que eu intuía, mas, não ainda; pois que do som veio a medonha criatura de beleza tamanha tal como a morbidez; o homem deificado, alado, de essência animal, felino, no plano da existência real, longe dos sonhos, longe dos pesadelos. Aterrorizada, às pressas para o canto do quarto lúgubre, buscando com tanto afinco um esconderijo. Nenhum diário no pomo, desta vez, eu me preparei para o meu fim, sete palmos, sétima noite. A ave-criatura-ser, besta celestial do inferno, revelou, portanto, no cântico do limbo, que o diário perdido fora perdido dele e de mim, ele que vivera pelo diário desde a página primeva quando nela dei vida, em letras conturbadas, a uma entidade protetora de todo e qualquer diário existente em terra humana. A força das palavras que me tinham o trouxeram, enquanto entidade deificada, mórbida e exuberante, atemporal e consciente; soubera da perdição do diário e em sonhos, profundos, tentou resgatá-lo pelo vínculo tão primitivo ainda que dele já não precisasse mais para se manter entidade-criatura.
Oh, mas não, nem mesmo ela e nem mesmo outro deus-demônio é capaz de curvar a linha da morte sem rompê-la e nem os céus, nem o inferno, nem a destrutiva humanidade poderia impedir que a hora chegasse e que o sepulcro tão fúnebre se adiasse para sempre. Ouvi, atenta, a dor da criatura-besta que tão logo ao dizer-me a verdade, desvaneceu-se à minha frente seguindo à imensidão cósmica de sua morada e deixando, como piedade, a vida retomada ao meu coração agora triste, profundamente amargurado em razão da amarga e fatídica verdade que eu não sou capaz de redigir com clareza, pois que meu luto, e minha saudade, ó sim, a minha lânguida solidão e o meu langor, estes sim são os únicos a possuir imortalidade.
¹ Núrido (Poética): celestial e soturno.
Deito-me às páginas, rubras letras cursivas; no âmbito dos sonhos habito tendo à alma o eflúvio de minha própria seiva. Nas sombras oníricas eu o encontro, alado ser notívago e esquálido, beleza núrida¹! Traz consigo o semblante da luz sombria e ao redor de seu esplendor há flores mortas. Olhos felinos, besta humana de nume composição; belíssimo! Mórbida beleza para uma única busca inebriante: a minha sujeição. Hesito, ainda que atordoada; ele me chama à sua glória abissal e, no meu observar tão extático — a sentir que me rarefaço a cada instante — , o livro que protege as minhas letras — e o meu espírito — se evidencia no pomo solene da besta que me chama.
Ao fitá-lo, desperto; acordo fulminante e certa de que devo escrever o que vi… o que senti…, no entanto não há mais sangue à pena, nem folhas ao diário que tão súbito revela-me ausente. Roubado! Ó, sim, levado de mim tal como se leva a alma d’um moribundo. A criatura o levou pelos meus pesadelos com a sua dantesca imagem fascinante quando me deixei ludibriada em seu manto de revelação; estava preso ao pomo de seu poder… Meu pobre imo… meu pobre imo em letras e sangue estará na eternidade sobre o altar de condenados n’um templo sombrio n’algures do universo… a menos que eu o reencontre no desvanecer do sono profundo, o sono profundo é a única escolha.
Vozes sibilares do inverno que se esparge — fogo algum crepita, veste alguma protege. Uma única vela — a única luz — se apaga pelo sopro das cordilheiras. Outro espaço… caminho pelo macio gelo enquanto sinto meus pés necrosarem. Preso ao pinheiro, com arames envoltos a carne fresca animal, uma única página do que se perdera de mim, à força, pela atrocidade do apoteótico. “Estou no sétimo sono, à sétima noite, sob sete palmos, ao sétimo cântico do limbo.” — Li-o, era a minha própria letra cursiva, rubra-enferrujada, reli-o, era a minha própria voz no pântano obscuro do sonhar que desfazia. Outra noite sem sucesso; a cada hora meu corpo se desprendia da alma, a cada ínfima hora afastada do centro de meu ser, das palavras quais me guiam nas sombras do novo mundo, o nadificante núcleo da ausência crescia.
Terceiro sono, lua cheia. Luminosidade dos vales onde o pecado é a sombra da inocência. Meu corpo rasteja pelo labirinto negrume criado de altos muros e árvores mortas de estatura gigantesca; sinto minha respiração densa, sufocada pela aura maligna que descansa no âmbito onírico que me cinge. No entanto, no pousar de uma coruja misteriosa em galhos secos do último carvalho fitado pelos meus olhos ardentes, uma folha em seu bico cai como pena sobre meu semblante já tão consternado. Está vazia. A nulidade que compõe suas entranhas vocifera meu horror pálido e posso visualizar com a perfeição de uma águia a destruição iminente de meu diário roubado pela criatura alada. Desperto, terceiro sono, maldita lua cheia.
Sem força alguma, debaixo de minha própria vitalidade que símil ao vapor se esvaía de mim. Esperei pela quarta imersão no pulsar do entardecer e ela, tão atemporal, não tardara; no quarto plano sonial respirava um dia pálido e seco, nenhuma criatura soturna poderia contemplar a desértica fauna e flora enquanto o astro, no firmamento, no seu ápice cuspia fogo e lava. No horizonte, entretanto, destacava-se uma cruz sem réu; uma cruz que sussurrava meu nome na melancolia de uma elegia. Fui levada até ela frente ao meu desejo peculiar de ouvi-la mais de perto, fui levada pelo sopro quente impetuoso que tão cálido tocava-me a ferir cada centímetro de minha cútis. “Aqui jaz O Diário” — eu li sobre o túmulo mórbido. Em desespero cavei com minhas mãos em carne viva e como, como doía! A dor era real e hoje, ainda, persiste. E mais real que minha decadência, à sete palmos: o diário, o meu diário, rachado, rasgado e ferido, repousava morto.
Meus olhos abriram e levantei meu tronco, célere, a janela do quarto aberta trazia o frio das sete horas da noite. Uma hora de sono, uma mísera hora, e minhas mãos cuja areia adentrava pela carne exposta não puderam alcançá-lo na fundura da cova tórrida e seca. Meu pranto em horror faminto, lágrimas de adeus e agrura. “Por quê?” — bradei ao vazio. “Eu que nada fiz contra deus algum, nem à vida pacata reclamei ou ao caos da solidão fui contra em meu abismo… Eu análoga ao ser mais desprezível, ao verme, ao grão, ao escarro do átomo… tudo o que significava para minha ínfima constituição era o livro que me guardava a alma e ainda assim dele fui desprendida…” — lamuriei. Curvei-me, então, à insônia e nela me obriguei a morar enquanto nenhuma resposta atravessava-me os sentidos.
Quinta noite, escleras avermelhadas, pupilas dilatadas. Sonho algum. E assim da quinta à sexta noite, quebrado o silêncio pelo tênue som que vinha, eu sei, cobrir meu corpo com a mortalha que eu intuía, mas, não ainda; pois que do som veio a medonha criatura de beleza tamanha tal como a morbidez; o homem deificado, alado, de essência animal, felino, no plano da existência real, longe dos sonhos, longe dos pesadelos. Aterrorizada, às pressas para o canto do quarto lúgubre, buscando com tanto afinco um esconderijo. Nenhum diário no pomo, desta vez, eu me preparei para o meu fim, sete palmos, sétima noite. A ave-criatura-ser, besta celestial do inferno, revelou, portanto, no cântico do limbo, que o diário perdido fora perdido dele e de mim, ele que vivera pelo diário desde a página primeva quando nela dei vida, em letras conturbadas, a uma entidade protetora de todo e qualquer diário existente em terra humana. A força das palavras que me tinham o trouxeram, enquanto entidade deificada, mórbida e exuberante, atemporal e consciente; soubera da perdição do diário e em sonhos, profundos, tentou resgatá-lo pelo vínculo tão primitivo ainda que dele já não precisasse mais para se manter entidade-criatura.
Oh, mas não, nem mesmo ela e nem mesmo outro deus-demônio é capaz de curvar a linha da morte sem rompê-la e nem os céus, nem o inferno, nem a destrutiva humanidade poderia impedir que a hora chegasse e que o sepulcro tão fúnebre se adiasse para sempre. Ouvi, atenta, a dor da criatura-besta que tão logo ao dizer-me a verdade, desvaneceu-se à minha frente seguindo à imensidão cósmica de sua morada e deixando, como piedade, a vida retomada ao meu coração agora triste, profundamente amargurado em razão da amarga e fatídica verdade que eu não sou capaz de redigir com clareza, pois que meu luto, e minha saudade, ó sim, a minha lânguida solidão e o meu langor, estes sim são os únicos a possuir imortalidade.
¹ Núrido (Poética): celestial e soturno.