ALEXIA - CLTS 16
 
 
     Alexia nunca foi, desde que conseguia se lembrar, uma criança normal. Primeiro pela forma, desconhecida ainda por ela, como fora encontrada. A única pessoa que sabia do tal lugar misterioso era quem a encontrou, a Abadessa Dulce e se dependesse dela tal mistério se manteria oculto perpetuamente.
 
     A menina, totalmente fiel e manipulada pela líder das irmãs da Abadia da cidade de Santo Inácio, brincava pelos pátios e arredores do lugar sem se importar com muita coisa, nem fazer muitas perguntas. Até completar 15 anos.
     
     As mudanças que toda pré-adolescente passa da infância para a vida adulta, foram traumáticas para ela. Porque fora ensinada sempre a refrear seus instintos e paixões quando chegasse a idade e ela chegou e foi avassaladora.
 
     – Senhor, eu tenho medo! Ajude-me a ser uma pessoa melhor. Afaste de mim tais pensamentos. Eu te peço. Essas duas sobressalências, que nasceram em mim, -disse, apertando os seios sobre a camisola branca, -São como ferrões de vespas. Elas machucam e me tornam impura. Toda a mulher tem que conviver com eles? A não ser pela benção da maternidade, eles não têm serventia. Eu queria poder arrancá-los.
 
     De todas as suas orações, ultimamente as mais recorrentes eram as de súplica para que pudesse suportar essa fase tão difícil. Tanto que deixou de lado outros questionamentos antes muito importantes para ela. Como aqueles que davam conta dos seus estranhos poderes.
Porém, tanto sua sexualidade quanto a utilização dos seus poderes eram reprimidos pela Abadessa, que dizia que satanás poderia usar tão grandioso poder como porta para fazer o pecado entrar nela, assim como já dizia o mesmo quanto a curiosidade natural que a menina viria a ter de conhecer o próprio corpo.
  
     Foi com nove anos que Alexia teve, pela primeira vez, a exata dimensão dos seus poderes. Ela brincava no jardim da Abadia, sozinha como sempre. As freiras nem sempre tinham tempo para dar atenção à ela e nesses momentos ela passava as horas correndo, brincando com alguns animais domésticos e também os selvagens dos arredores. Cresceu acostumada com esses momentos solitários e fazia de tudo para torná-los os mais felizes que pudessem ser. E ela tinha uma facilidade maior para concretizar isso do que as outras pessoas. Seus poderes.
  
     Antes de contar como Alexia se deu conta do tamanho verdadeiro de suas aptidões sobrenaturais, deve-se voltar um pouco mais. Dois anos para ser mais exato. Quando, com sete anos, a menina, ao visitar uma igreja com as freiras Palmira, Juliana e a Abadessa Dulce, deliberadamente usou seus dons para fazer o mal a outro ser humano. O padre Bonifácio, que ela detestou desde a primeira vez que seus olhos caíram nele, era o paroquiano responsável por aquela diocese e não eram somente os seus olhares estranhos e insidiosos e os demorados carinhos e qualquer contato físico, pois talvez ela ainda fosse muito nova para fazer uma conexão à alguma conduta sexual ou assediosa por parte do Padre. Mas antes de tudo isso eram as histórias que as frias colunas e os cantos úmidos da Abadia escondiam em suas estruturas e que a feira Juliana, única amiga e em quem ela depositava toda a sua confiança, lhe contava.
 
     O padre, como já se deduz, não era um bom cristão. Muito menos mereceria tão honrada vocação de pastor daquelas ovelhas de Santo Inácio que melhor seriam pastoreadas se o fossem pelo demônio em pessoa. Ele, o padre, e o que a menina fez com ele, eram pensamentos que passeavam constantemente em sua cabeça até hoje.
 
     Avançando para os acontecimentos ocorridos quando a garota tinha nove anos. Aquela tarde veranil trazia consigo o calor natural que atiçava os instintos incontroláveis das pessoas e ao mesmo tempo a brisa refrescante que acalmava o espírito e amenizava as paixões com temperança. Causavam sempre estranhas sensações aquelas tardes de verão. O pórtico da Abadia, todo ornado de flores, era como as portas do céu e tudo o que tinha além dele, era visto por ela como amaldiçoado. A propriedade não tinha portão, nem muro, como outros monastérios, que eram fortalezas instransponíveis, para que cada um que buscasse Deus pudesse entrar para depositar nele a sua fé e também para que as próprias freiras desafiassem seus medos e fraquezas e que suas escolhas dependessem exclusivamente da força de seus corações.
  
     O medo naqueles olhos angelicais, parecia o mesmo medo visto nos olhos daquelas pessoas que eram alvos das suas investidas brutais. Ela não fazia por mal, mas às vezes machucava elas. Como naquele dia com o garoto. Sem nunca ter tido contato antes com alguém do gênero oposto, que tivesse a mesma idade que ela e que não fosse padre, teve pânico. Se ocultou em uma moita e ficou o observando. Ele já a tinha visto e achou engraçado vê-la se esconder.
  
     – Você não quer brincar? Eu tenho pião e bolinhas de gude. Deixo você escolher. – Disse ele, na tentativa de iniciar a conversação. Mas não obteve resposta. Então ele se aproximou e disse:
 
     – Eu sei que você está aí. Pode sair. Eu vi você se esconder. Não tenha medo.
Mas ela saiu correndo e ele correu atrás dela. Por fim ela parou de correr e resolveu enfrentá-lo.
 
     – Fique longe de mim. Você não pode vir aqui. Vá embora! -Vociferou a garotinha e saiu correndo. Porém, o apelo do pião rodopiando sobre o chão de barro daquele lado do terreno, a chamou tanto a atenção, que ela não conseguia parar de olhar. Enquanto corria, ao olhar para trás ela percebeu que o menino lançara seu pião, que rodopiava alegre e sem direção definida.
 
          Aquele brinquedo, o qual ela jamais vira igual, era a sua alma solitária e indômita, que não podia ser contida num espaço pequeno. Muito menos aprisionada naquela fortaleza de tristeza da Abadia.
Seu olhar, seu coração, sua mente, estavam ambos conectados naquele objeto de madeira que girava. O sol não existia, nem as árvores ou o menino. O próprio chão no qual aquilo girava não era mais do que o vazio, o nada. Ergueu o seu braço direito e girando o pulso, fez um movimento evocatório com a sua mão. Desse gesto firme e enérgico emanou a arrebatadora vibração que sugou em suas correntes o pião e aos olhos incrédulos de Léo, como era chamado o rapaz, o seu brinquedo girava em espiral como se tivesse entrado dentro de um tornado. A menina o controlava e ela gargalhava, sentada no chão, sem perceber a presença dele. Quando se deu conta, no entanto, que ele estava ali, num momento de distração, que fez com que o pião caísse de uma altura de dez metros e quase se espatifasse no chão, ela voltou a se concentrar no objeto e sua raiva lançou-o ainda mais para o alto até estraçalha-lo como se fosse atingido por um tiro de espingarda. Léo chorou. Chorava pelo brinquedo perdido e principalmente de medo. Aterrorizado pelo que acabava de presenciar.
 
     Na Abadia, o grande dia para Alexia e Juliana havia chegado.
     
     – Vamos fugir essa noite. Você está preparada?
  
     – Estou. Eu sonho com esse dia há muito tempo. Finalmente serei livre.
Sempre tive medo de que eu não fosse aceita pelas pessoas. Por isso dizia a mim mesma que o melhor lugar para mim era aqui. Mas você me abriu os olhos, irmã. Obrigada.
 
     As duas se abraçaram e se emocionaram ao se darem conta de que o dia que tinham planejado por tanto tempo finalmente havia chegado. Com a desconfiança cada vez maior da Abadessa, as duas se falavam cada vez menos nesses últimos dias. Foram os preparativos para a tão aguardada viagem ao Vaticano, que ensejaram o encontro das duas naquela noite alegre. Na cela de Alexia, Juliana pintava o mais belo retrato do que seria a vida das duas fora daquelas paredes. Sonhava com um emprego. Em alugar um lugar pequeno para as duas. Em adotar a pequena e serem uma família. Daria todo o conforto à ela. Daria tudo o que lhe fora negado na infância triste e trágica. Os abusos sofridos pelo pai desde que podia se lembrar. O assassinato da mãe, presenciado por ela, e cometido pelo seu abusador, seu algoz, seu próprio progenitor. E a avó por parte de mãe. Uma mulher rica, mas autoritária, que achou por bem encarregar a educação da neta à escola de freiras. Até que ela se tornou uma e conheceu a menina Alexia, quando essa tinha cinco anos.
 
     Os olhos do Padre saltavam para fora como dois monumentos ao grotesco. Vermelhos, com suas veias inchadas, injetadas de sangue, eram dois avisos ao mundo de que o horror e a morte podem possuir e destruir tudo. A ponta de sua língua pendurada para fora da boca aberta soava como o último esforço antes que sua vida se extinguisse para sempre. Bonifácio se matara no seu quarto logo depois que Alexia entrou nos domínios de sua mente e ordenou que ele fizesse isso. As últimas imagens que passavam pela cabeça do Padre pedófilo antes que soltasse o último suspiro, eram as das suas vítimas sendo forçadas a fazerem coisas detestáveis em nome de um falso Deus que ele dizia existir.
 
     A noite da fuga causou uma ansiedade incontrolável na freira e na noviça que pretendiam escapar. Amarraram suas malas já preparadas para a viagem que não fariam para o Vaticano, em terezas que fizeram com lençóis e as desceram, depois foi a vez delas. Sentiam-se como duas aves ao deixar a gaiola. Só estariam seguras, pensavam, depois que pegassem carona e estivessem bem longe daquela abadia e daquela cidade. Pegaram carona com um caminhoneiro que passou e as viu sentadas sobre as malas. Tinham caminhado cerca de cinco quilômetros e pararam para descansar um pouco.
 
     Nenhum veículo passou naquela estrada deserta antes desse. O homem fedia e era de aspecto desagradável. Juliana pensava que talvez não tivesse sido uma boa ideia ter aceitado a carona. Mas ao mesmo tempo se sentia segura com Alexia ali e isso na verdade poderia ser um pouco assustador.
 
     – Estão com fome? Tem frutas aí atrás do banco. No cesto. Sirvam-se. Tem bananas, tangerinas e figos. Podem comer.
Elas agradeceram e se serviram. Tinham apetite. Perderam os modos e devoravam as frutas com vontade e ousadia. Sentiram a primeira pequena felicidade fora da Abadia naquele momento. Depois do que, sofreriam um revés violento, quando o motorista, numa ousadia repentina, passou a mão debaixo do hábito de Juliana e apalpou sua coxa.
 
     – Eu sempre quis saber o que as freiras têm aí embaixo. Hein? Mostra pra mim, vai. Deixa eu tocar.
 
     O sujeito salivava e colocava a língua pra fora como um lagarto ao ver um ovo. Juliana tremia sob aquela ameaça. Ela não conseguia se mexer.Voltavam memórias terríveis dos abusos de seu pai e lágrimas caladas escorriam do seu rosto. Nesse momento os olhos do homem encontraram os de Alexia e suas feições se alteraram. Imediatamente ele parou o que estava fazendo e segurou o volante com as duas mãos. Não voltou a falar com as duas e nem sequer olhou para o lado até que a voz de Alexia o alertasse sobre o destino das duas. O ponto final daquela carona.
 
     Elas não comentaram nada sobre aquele acontecimento. E assim que chegaram na estação, compraram bilhetes para o trem das 23 horas, que as tiraria dali de uma vez por todas.
 
     Os sonhos da iludida e inocente freira, não saíram exatamente como ela projetara em sua mente. Demorou para arrumar um emprego e temia que pudessem acabar na rua. Pois a pouca economia que tinha guardado, garantiu o primeiro mês de aluguel, algumas roupas novas e comida e já estava acabando. Mais uma vez Alexia interferiu para que a amiga e mentora conseguisse um emprego. Quando se candidatou para uma vaga numa loja de variedades que inauguraria no centro da cidade. Do mesmo modo como aconteceu com o motorista, assim que os olhos do gerente da loja que entrevistava Juliana, cruzaram com os olhos da menina, ele parou de entrevistá-la e considerou-a contratada, sem fazer mais nenhuma pergunta.
 
     Feliz por Juliana, que via renovar-se a cada manhã e se fortalecer em espírito e amor, ela mesma não conseguia para ela, um contentamento que a fizesse parar de sofrer. A garota ainda sofria com suas torturantes repreensões contra si mesma e se martirizava por alguns pensamentos e atitudes condenáveis.
 
     Mas alguma coisa mudou nela, quando numa noite, depois do trabalho, Juliana levou para casa a adorável Cecília e a apresentou como a sua namorada. O alvo do martírio nesse dia, passou dela para Cecília e para todos aqueles que segundo sua visão estreita do sexo e do amor, moldada pela Abadessa Dulce, ditava, os extintos selvagens tinham que ser exterminados. Alexia não revelava para Juliana, o quanto lhe incomodava aquele relacionamento homossexual, que ela considerava pecado e condenava com toda a autoridade que lhe era concedida através da palavra de Deus.
 
     Uma noite, a qual ela não estaria preparada e que mudaria a sua vida para sempre. Juliana a convidou para ir ao cinema com a namorada. Assistiam Cinema Paradiso e na parte final, quando Salvatore pegou a lata de filmes e projetou na tela, alguma coisa que Alexia jamais sentira, mexeu com ela de um jeito que ela não pensou que seria possível. Todas as cenas de nudez feminina e beijos, principalmente beijos, que durante a infância do protagonista, eram cortadas, sem que ele pudesse saber o que era; ele via agora pela primeira vez, adulto. Alfredo guardou todos os cortes e os emendou em um filme único que revelava o que antes ele era obrigado pela igreja e pela censura a reprimir, extirpar. As lágrimas de Salvatore ao ver as cenas tão lindas e românticas de amores idealizados, concretizados, amores partidos e de amores impossíveis, eram também as lágrimas de Alexia. De tudo o que ela aceitou e do que rejeitou também. Um momento mágico e único que o cinema foi capaz de imprimir de uma forma como ninguém antes fez. Tudo o que ela acreditava, nesse dia morreu. Ela aceitou o amor e ser amada. Estaria aberta e receptiva, quando ele aparecesse.
E apareceu quando ela começou a frequentar a escola. Depois das insistentes tentativas de Juliana de que frequentasse a escola, ela finalmente cedera. Juliana sabia o porquê. Percebeu naquela noite o quanto o filme a comovera e que algo mágico tinha acontecido. Como um milagre.
 
     Algo estava curado nela. Mas nem tudo ficaria bem. Algumas forças se impunham além da sua vontade e na busca livre para encontrar o amor, ela também encontrou o sofrimento. Não o seu. Mas o de outras. Quando ela passou a entender os relacionamentos amorosos humanos e de como o mundo parecia um mundo obscuro, rancoroso e machista. Opressor e humilhante para as mulheres. Compreendeu que os seus poderes viriam a calhar e seriam bem empregados ao punir esse comportamento falho.
  
     O primeiro vilão a sofrer nas mãos da nova autoproclamada heroína, chamava-se Edimar. A amiga, Elvira, que fora gravemente ofendida por ele, chorava no banheiro quando Alexia a encontrou. Contou-lhe tudo o que o ex-namorado fez. A traição e as humilhações e afrontas. Chegou a bater nela na frente das amigas certa vez. Se tais atitudes justificassem a extrema violência com que fora penalizado o pobre rapaz, pode-se julgar mais tarde. Pois retumba alto ainda, como uma inflamação no ouvido, os gritos medonhos de Edimar ao retalhar o próprio rosto com o canivete, sem saber porque fazia isso. Seu rosto em carne viva, escarnecia do próprio infortúnio numa careta esquelética tão onírica quanto a mais surrealista das pinturas, ou uma animação bizarra em stop-motion. Suplicando com todas as forças do seu mais íntimo subconsciente, despertado pelo desespero, Edimar pedia para morrer e Alexia manteve o controle sobre ele mesmo assim, até o fim. Ajoelhou-se e caiu com o rosto no chão. O impacto estrondoso foi chocante e serviu como um alarme de relógio, que fez com que ela enxergasse com algum mínimo grau de humanidade o estrago feito.
 
     Com a desconfiança crescente de Juliana, quanto a autoria dos assassinatos cada vez mais frequentes que estavam acontecendo, a amizade das duas foi esfriando e com o decorrer dos anos, Alexia, aos dezoito, decidiu se separar e seguir sozinha o seu caminho. Agora, a menina cheia de dogmas e incertezas, apagara-se como se nunca tivesse existido e tomara o lugar, uma mulher amarga e vingativa. Aquela menina de sete anos do passado, que sem remorso mandou o Padre asqueroso se matar e que passou os próximos oito anos se culpando e purgando os seus pecados, cerrada na sua cela e aceitando aquele dom horrendo como um mal a ser combatido atráves do amor, da fé e da oração, tinha se tornado uma mulher pensante. Que agia por si mesma e não era controlada por ninguém.
 
     O primeiro grande amor surgiu na faculdade, assim que entrou. Foi estabanado e rápido, como costumam ser os primeiros encontros. Rafael era vibrante, cheio de sonhos e engraçado. Não parecia o tipo de cara merecedor de um final, como teve por exemplo o Edimar. E mesmo que fosse, esses tempos sombrios tinham ficado para trás. Luciano tinha sido o último. Ela o fez se jogar na frente de um ônibus. Ele ainda gemia, caído no chão, com mãos e braços quebrados, quando o sinal soou e os alunos saíram, presenciando o espetáculo sangrento. A fez lembrar de tempos remotos. Quando ela e Juliana pegaram carona com aquele caminhoneiro desgraçado. Outro segredinho dela que Juliana não sabia. Antes de fechar a porta do caminhão, ela o encarou e ordenou telepaticamente que ele batesse com o caminhão na primeira árvore que encontrasse. Mas o que nem ela sabia, era que o caminhoneiro não morreu e tem pesadelos até hoje sobre vozes na sua cabeça o controlando.
 
     Passaram-se os anos. Alexia agora tornara-se uma mulher madura. Com 40 anos, achou que era hora de resolver algumas coisas e ficar em paz com seu passado. Foi visitar Juliana, que ainda se correspondia com ela, mesmo que ela não tenha respondido sequer uma carta. Uma enxurrada de sentimentos afloraram desse encontro. Juliana, uma bela senhora ruiva de 50 anos, passava a mão no rosto de Alexia, carinhosamente.
 
     – Eu mudei. Não sou mais aquela garota cruel que eu era. Eu encontrei o amor. Quer dizer, acho que sim. Depois do terceiro casamento, - desabafou e riram. Descobriu que a amiga continuava com a sua parceira Cecília e tinham adotado um filho, agora com 16 anos. O adotaram quando o menino tinha seis. Chamava-se Paulo e era gentil e educado. Tomaram café, comeram bolo e em algum momento, em que Cecília percebeu que as velhas amigas precisariam de mais privacidade, pegou o filho e saiu com ele para darem uma volta. Juliana saiu por um instante e voltou com uma caixa. Tirou uma carta de dentro da caixa e entregou a Alexia.
 
     – Essa carta voltou. Você não me escrevia. Eu não sabia o seu atual endereço para reenviar, então fiquei com ela. É da Abadessa. Eu sonhava em um dia te reencontrar. Para que pudéssemos, se você permitisse, lermos juntas. Desconfio que nessa carta esteja o grande mistério que revela quem você é. Suas origens. Toma.
 
     Alexia abriu a carta e começou a ler em voz alta:
 
“Minha filha,
Durante muitos anos eu escondi de você quem você era. Onde a encontrei e porque afinal a protegia tanto do mundo, a trazendo para o confinamento nesta Abadia. Tudo o que eu fiz, eu fiz por amor. Eu a encontrei no meio da floresta, enquanto era missionária na Amazônia, cuidando de uma tribo indígena. A maneira como a encontrei, diz muito sobre o que você é. Você segurava uma serpente venenosa nas mãos e ela não lhe feriu. Fomos cercadas por uma onça pintada, que rugiu para mim e ameaçou dar o bote, mas você a chamou, mal sabendo falar. Fazia uns sons com a boca e o bicho selvagem veio na sua direção como se fosse um cachorrinho dócil. Eu fiquei apavorada. Você tinha, o que, três anos? Era branquinha como leite e não podia ser indigena. Penso que possa ter sido abandonada pelos seus verdadeiros pais. O povo da floresta tem superstições que os levam a cometer os mais desumanos atos, sem que tenham remorsos. Mesmo apavorada eu a amei naquele instante. E entendi o seu dom e que você deveria ser protegida. Pois sei como são os seres humanos. Desprezam os que são diferentes. Mas me arrependo de muita coisa. Hoje eu faria tudo diferente. Eu estou morrendo. Sucumbindo aqui, desde que você se foi. Venha aceitar o perdão de uma pobre velha, para que a minha alma possa descansar em paz.
Daquela que te amou como uma mãe e que pode ter errado muito, mas teve as melhores intenções.
Abadessa Dulce.”
 

TEMA: CRIANÇAS PARANORMAIS E UM POUCO DE CINEMA.