O monstro do museu - CLTS 16

O MONSTRO DO MUSEU
Miguel Carqueija

Num canto pouco iluminado de uma das salas mais obscuras do museu havia no chão uma tampa gradeada retangular que abria para um esquecido subterrâneo há gerações abandonado. Geralmente um grosso tapete cobria essa grade. Se alguém observasse através dela veria uma escada de pedra que descia sabe Deus para onde; mas essa grade encontrava-se solidamente cimentada desde tempos imemoriais.
Rezava antiga lenda que vivia um monstro pavoroso naqueles escuros e tenebrosos subterrâneos, mas ninguém sabia ao certo que forma afinal e que tamanho teria a criatura.
No tempo em que se passa esta história certo Tracy estava trabalhando como vigia noturno. Ele vira a grade no dia em que o tapete fôra removido para a lavanderia e ficara intrigadíssimo. Não tinha de momento a quem perguntar e percebeu que o cimento, de tão antigo, apresentava rachaduras. Uma mórbida curiosidade começou a atiçá-lo. Seria relativamente fácil, durante a noite, quebrar o velho cimento, levantar a tampa e, munido de uma lanterna, procurar ver o que havia lá por baixo. Poderiam ser velhas e valiosas relíquias, por alguma razão esquecidas lá embaixo e que viriam enriquecer o patrimônio do museu. E ele poderia vir a ser recompensado...
Ou talvez — pensava ainda Tracy — não valesse a pena fazer isso. Era muito mal pago, vivia às turras com a esposa e os filhos. Se descobrisse riquezas poderia escondê-las, transformá-las em dinheiro e sumir do mapa, deixando tudo para trás. Para que mostrar tesouros à direção do museu? Se ao menos ele ganhasse um salário decente, mas nem isso!
Resolveu esperar que o tapete retornasse da lavanderia. Ele ocultaria qualquer dano ao cimento. Assim, se Tracy necessitasse utilizar várias noites para remover o tesouro, poderia fazê-lo com tranquilidade. Naquele canto não existiam câmeras de segurança; o lugar era muito grande para que elas cobrissem toda a área. As chances, portanto, estavam a favor do vigia, desde que ele não fizesse nada precipitado.
Passou-se uma semana. Certa noite, enfim, Tracy teve a satisfação de ver que o tapete, novinho em folha pela limpeza, estava de volta. Não tendo trazido nenhum equipamento especial conformou-se em aguardar dois dias. No dia seguinte, um domingo, o museu estaria com outro vigia, cobrindo a sua folga. Melhor, haveria mais tempo para planejar.
Precisava, decerto, de uma britadeira ou algo parecido. Descartou uma picareta: não estava acostumado a tais trabalhos braçais e poderia levar mais tempo que o conveniente. Não, ele deveria utilizar equipamentos modernos, elétricos.
Nessa noite seria bom dispor de mochila maior; provavelmente já teria de remover material, lascas de cimento. Uma boa lanterna seria indispensável.
Um revólver?
Essa ideia, que de repente passou por sua cabeça, pareceu-lhe ridícula. Ora! Essa história de monstro era pura superstição dos antigos, é claro que não poderia existir monstro algum. Entretanto Tracy possuía revólver, pois era vigia noturno. Como não se lembrara disso?
Se houvesse algum problema com a lanterna seria de bom alvitre levar velas também.
Felizmente, e muito a propósito, por ser vigia noturno Tracy era obrigado a dormir durante o dia. É claro que os dois filhos saíam para ir à escola e fazer sabia Deus o que mais na rua; Ruth também saía para fazer as compras e fofocar com as amigas. Seria fácil portanto reunir os apetrechos necessários sem ninguém reparar. A furadeira permanecia meses guardada, sem ninguém se lembrar dela.
Assim, depois de jantar no começo da noite Tracy saiu para o trabalho levando tudo o que precisaria e sem ninguém de casa desconfiar.

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Estava um tanto ou quanto nervoso quando decidiu que pelo adiantado da hora já podia dar início ao trabalho. Fotografou com o celular a posição exata do tapete, para recolocá-lo exatamente na mesma situação. Não temia que alguém ouvisse o barulho provocado pela furadeira pois o museu possuía terreno em volta, estava bem afastado da rua e das residências próximas.
Ao se abaixar para examinar a tampa não pôde deixar de reparar na caixa de vidros em frente com o tigre de dentes de sabre embalsamado e com as fauces abertas ameaçadoramente. Seria por isso que haviam inventado a história do monstro, inspiração trazida por aquele cadáver assustador?
Tudo era possível, pensou Tracy, e pôs mãos à obra.
Foi difícil, mas em aproximadamente meia hora conseguiu remover a tampa e, sonhando com os tesouros de Ali Babá, dispôs-se a descer a misteriosa escada.

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Segurando a lanterna acesa com a mão direita, Tracy pôs-se a descer. Intocados há talvez mais de século, os degraus de pedra encontravam-se ainda em bom estado. O ar estava desagradável, cheirando a mofo, a coisas antiquíssimas. Felizmente um pouco do ar condicionado penetrara com mais força graças à total remoção da tampa.
As paredes eram de um cinza-esbranquiçado sujo e os degraus desciam em túnel para as profundezas.
Tracy começou a se sentir nervoso. Por que cargas d’água haviam construído aquela masmorra absurda?
Depois de muito descer a escada fazia uma guinada para a direita e, um pouco mais adiante, terminava numa espécie de salão. Não havia nada lá, mas o teto agora era de pura pedra. Um corredor levava para mais adiante.
Inquieto por não encontrar nem vestígio de tesouro, Tracy apertou o passo. Caminhou depressa, quase correndo, finalmente viu-se num salão imenso... que terminava num lago subterrâneo.
Perplexo, dirigiu o facho da lanterna para aquelas águas lodosas que se estendiam até o paredão rochoso uns cem metros adiante.
Só isso? Nenhum objeto feito pela mão do homem?
Irritadíssimo, Tracy deu as costas ao escuro lago, resolvido a retornar para o museu.
E foi aí que ele escutou o grunhido e ao mesmo tempo, um espadanar na água.
Ele se voltou — e berrou, como nunca antes havia feito em toda a sua vida.
— Não! Não! NÃÃÃÃÃOOOOOOO....................
E foram as suas últimas palavras.

Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2017 a 31 de agosto de 2020.


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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 03/08/2021
Reeditado em 06/08/2021
Código do texto: T7313181
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