A Ave-Fantasma
Era meio-dia a pino quando Paulo quebrou o pescoço da primeira ave do dia. Deu dois passos para trás e contemplou sua obra de arte, extasiado. Já perdera a conta de quantos animais havia matado por diversão ou prazer. Aquela pobre criatura infeliz seria a centésima, a décima? Nem ele sabia. Depois de uma certa familiaridade, fora perdendo o controle dos números.
Aquele pescoço curvado num ângulo esquisito começou a dar repulsa ao assassino. Os olhos vítreos – ou seriam baços? – da galinha já estavam dando nojo, e, por isso, ele decidiu enterrá-la.
Entrou em casa, onde percorreu os três corredores com destreza. As velas acesas na pequena capela em seu quarto não o impediram ou sequer o atrapalharam de ir em direção à gaveta – Oh, a preciosa gaveta – onde ele guardava os sacos de lixo.
O Santo Antônio – do qual ele era devoto – imponente no santuário, olhava para Paulo com desdém diante de suas córneas de barro. Paulo apenas se curvou, apagou uma das cinco velas com um sopro tímido e voltou para o que estava fazendo.
O tempo mudara de uma forma que impressionaria até o mais sagaz meteorologista. Nuvens quase negras escondiam o sol, e o terreiro, antes branco de areia quase nunca revolvida, agora transmitia cores escuras e sem graça. Isso também não atrapalhou Paulo. Ele foi em direção ao altar de pedra onde deixara a galinha, colocando-a no saco de lixo com destreza. Depois da primeira parte de ocultação – ambas as partes davam-lhe prazer e entusiasmo – ele olhou mais uma vez para o céu.
Tentou encontrar o sol, tão majestoso que estivera essa manhã, assistindo o sacrifício de mais um infeliz, e agora escondido por um simples amontoado de vapor.
Não podia pensar muito antes de fazer. Por isso, foi em direção a parte de trás de terreiro, passando pela grande quantidade de cactos espinhosos, que dificultavam e desencorajavam intrusos e curiosos. Com cuidado, passou por todos esses perigos e enfim chegou ao seu santuário.
No terreiro limpo, debaixo de uma imponente mangueira, se encontravam várias pequenas sepulturas, todas com o pequeno amontado de terra característica e, claro, as cruzes. Algumas eram de pau compensando, com dimensões perfeitas. Outras eram gravetos que Paulo encontrara espalhado por aí. Estética não era seu ponto forte.
Com precisão, procurou um lugar vazio que pudesse abrigar mais uma cova, e para lá foi. Segurando sempre o saco de lixo, ciente do corpo inerte que se encontrava dentro do mesmo, sem vida. Colocou-o no chão e começou a cavar, com as mãos, a cova.
Quando enfim terminou, um monte de terra se encontrava ao seu lado, e então Paulo depositou o saco de lixo bem lá no fundo, onde a galinha sacrificada poderia apodrecer sem ser incomodada pelo barulho ou a luz interna. Depois de cobrir com terra, buscou, atrás do tronco da mangueira, a cruz qual havia preparado pela manhã. Era feita de pau-d’arco, e resistente como o mesmo.
Extasiado, foi até a cova recém feito e ali cravou a cruz. Antes de ir embora, conseguiu contar três gargalhadas. Altas, felizes. Ali só ele seria escutado.
Foi quando saía do campo de cactos e ia para a estrada que encontrou com o homem. Paulo não sabia dizer se aquilo poderia ser chamado de homem, mas assim ele pensou. Vestia farrapos, trazia um cajado, e seus olhos eram brancos como leite. Era cego. Se estivéssemos no tempo de Jesus, bem que Paulo poderia confundi-lo com um profeta. E, como tal, ele falava em alto e bom tom.
- Arrependam-se de seus pecados! Ela está vindo! Oh, meu Deus. Ela está vindo!
Paulo achou aquilo cômico. Como um velho demente e cego havia achado caminho para povoado tão ermo? Paulo olhou para a igrejinha que se encontrava a cerca de cem metros dali, e pensou se o louco não haveria saído de lá.
- Ora, meu senhor. - Disse Paulo. - Vá catar coquinhos.
O homem parou, como que estatelado. Olhou para o céu, coisa que Paulo também fez. Ao ver o negrume tomando conta do manto que cobre a terra, o clima pareceu mais denso. O homem começou a balbuciar coisas ininteligíveis, que Paulo julgou ser uma prece.
Em seguida, o homem se virou para Paulo, apoiou seu cajado na terra árida e apontou o dedo em direção a ele.
- Você! - Gritou o homem. - Pagará pelos seus pecados! Oh, Santo Deus!
Paulo estremeceu. Mas, com a impressão de loucura ainda mais forte, segurou o homem pelos cotovelos e o guiou em direção à igrejinha.
- Vamos, seu Zé. Por lá você encontra ajuda.
Deixou o homem ir sozinho, e lá ele foi, praguejando coisas ininteligíveis consigo mesmo. Sumiu no horizonte, passando direto pela igreja. Seu praguejar ainda foi ouvido por alguns minutos. Paulo logo esqueceu aquilo, e foi para casa. Antes de entrar, deu mais uma olhada na sua criação de galinhas. Elas ciscavam para lá e para cá, como se estivessem felizes da vida. Paulo sorriu. Um sorriso maléfico. Só então, adentrou a casa.
***
O som do vidro se partindo foi como um susto no silêncio. Paulo dormia no sofá, com um livro no colo.
- Que merda é essa?
Foi em direção ao barulho. Na cozinha, o vidro quebrava denunciava que alguém havia jogado uma pedra. Essa hipótese fez sentido por alguns segundos, pelo menos até Paulo perceber as manchas de sangue nas pontas quebradas da janela.
Observou aquilo por longos segundos. Inclinou a cabeça para o buraco, tentando ver o céu. Continuava escuro, como se a chuva estivesse prestes a cair. Mas não viera nenhum aguaceiro. Ao longe, no pé de goiaba, Paulo identificou a figura de sua vizinha mais próxima. Ela estava encostada na árvore, com as pernas cruzadas e os braços relaxados, como se estivesse descansando.
- Amélia! - Chamou Paulo.
- Amélia, venha aqui!
No entanto, não houve resposta. Paulo se dirigia à sala quando sentiu uma pontada de dor no tornozelo direito. Automaticamente, chutou o que o havia furado, só para dar de cara com uma de suas galinhas. Suja de sangue, provavelmente fora ela que havia se jogado contra a janela. Paulo ficou um momento sem entender, um momento que pareceu ter durado várias horas.
- Mas que dro….
A ave avançou em direção a Paulo, bicando cada vez mais forte seus tornozelos. Paulo a chutava, mas parece que seus chutes perdiam a força a cada vez que a ave arrancava pedaços de pele junto com os pelos da perna.
Ele correu até a gaveta, buscando sua última esperança. A faca reluziu na luz da lâmpada da cozinha, revelando o quanto estava afiada. Sem medo, Paulo cravou a lâmina na galinha. Uma, duas, três vezes, até ela parar de se debater.
Ficou minutos assim, estático, tentando entender o que havia acabado de acontecer. Haveria uma de suas galinhas criado super força e quebrado a janela, desenvolvendo então uma super bicada? O que estaria acontecendo?
Com a perna ainda doendo, foi em direção ao buraco na janela e olhou para o terreiro. Sua vizinha Amélia continuava lá, descansando. Ele pensou em falar com ela. Mas, antes, tinha de ver onde estavam as galinhas.
Foi para seu quarto, onde a espingarda o esperava. Colocou munição e guardou uma caixa em seu bolso, só por precaução. Caminhou lentamente até a porta dos fundos, como se estivesse numa operação ultra secreta. No entanto, apenas estava com medo.
Ao sair para o terreiro, um vento gélido o envolveu, e Paulo teve um arrepio. Olhou mais uma vez para o pé de goiaba, onde sua vizinha parecia dormir. Que lugar estranho para adormecer, não é mesmo?
Em um lapso, Paulo se lembrou da galinha que havia enterrado ao meio-dia. Seria uma vingança de todas as galinhas? Um surto de alguma doença? Não conseguia tirar da mente o velho “profeta” e suas palavras. O que antes parecia loucura, agora, no meio do caos, poderia obter algum sentindo.
Foi enquanto pensava que sentiu mais uma bicada. Uma galinha preta, a que seria a próxima a ser sacrificada, fazia seu barulho característico, grasnando.
Paulo não teve pena, atirou nela. A galinha caiu, vencida. Paulo andou mais pelo terreno, se deparando sempre com mais uma delas. Elas vinham na maior velocidade, com fúria e destemidas. Foi difícil colocar munição em meio às bicadas, mas Paulo conseguira atirar em todas.
Só no fim, sentou-se no chão de terra árida, exaurido. Havia acabado com todo o seu criatório, tudo porque um surto havia acometido ele todo. Teve medo, pela primeira vez em muito tempo. O céu negro não parecia querer mandar chuva tão cedo, e Amélia, seus traços eram tão…
Deixou a espingarda no solo e foi em direção ao pé de goiaba. Lá, Amélia repousava. No entanto, toda a vida de seu corpo havia se esvaído. Ela parecia lavada em sangue, com nacos de carne arrancados nas coxas, nos braços, nos tornozelos e no rosto. Paulo caiu de joelhos, tomado pelo pânico.
Ficou minutos ali, em frente ao corpo da vizinha. Ao redor, as nuvens negras se movimentavam pelo céu, nunca revelando o sol, e o vento gélido da tarde envolvia o corpo de Paulo numa atmosfera tétrica. Ele precisava ligar para a polícia. Era seu último recurso.
Não sabe como chegou em casa. As pernas andavam de forma involuntária, guiando-o ao porto seguro. Parou de frente ao telefone, tentando lembrar o número da polícia.
Antes de discar, olhou para os lados, como se para sentir-se seguro.
- Alô? - Disse Paulo.
A resposta demorou, mas foi direta.
- Paulo! Finalmente você me ligou. Eu precisava te avisar que...
Ele parou, estático, sem entender. Estaria mesmo ligando para polícia? Ia apertar em desligar, num impulso.
- Por favor, não desligue! - Disse a voz. - Preciso te avisar sobre ela.
Um silêncio se fez por alguns segundos. Paulo não sabia o que responder. A voz se permitiu continuar
- Sim. A Ave-Fantasma.
- Ave o quê?
- Sim. - Disse a voz, pigarreando em seguida.
Paulo sentia-se num filme, numa ficção. Não fora ele que fora bicado por galinhas assassinas, nem matado elas, nem encontrado a vizinha morta, muito menos estava falando com um estranho que deveria ser a polícia. Parecia um sonho, irreal. Ele não conseguia acreditar. Mesmo assim, ouviu a voz. Mais uma vez, se tornou sua última esperança.
- Ela vem às vezes. Talvez de dez em dez anos. Mas, ultimamente, tem vindo com mais frequência. - Longa pausa. Paulo conseguia ouvir a respiração da pessoa. - Escute! Um tiro no coração, certo? Só um no coração e ela nunca mais virá.
- Certo. - Disse Paulo. - E como é essa Ave-Fantasma? Por que ela vem?
- Oh, de certo a pior parte. - Disse a voz. - Ela vem, principalmente para fazer justiça, mas acaba estrapolando... Escute! Quando o sino der três badaladas…. Ela virá.
Paulo ficou impaciente.
- Certo! Mas como ela é?
- Oh, ela é terrível….. Terrível como...
Não houve mais informações, porque a ligação caiu. O telefone ficou segurado na orelha por minutos, a mente em frenesi. Ele não estava entendendo nada.
Paulo tentou discar mais uma vez o número, mas o telefone simplesmente parara de funcionar.
Um tiro no coração. Apenas.
Ele tentou imaginar como seria essa criatura que a pessoa havia falado. Pensou sobre se tudo aquilo não seria um trote. Um trote que mata pessoas e enlouquece galinhas? Não haveria como isso ser verdade. O sino teria que dar três badaladas… qual sino? O da igrejinha? A cabeça de Paulo parecia girar e girar, ele não conseguia manter uma linha de pensamento. Era melhor esperar… Sim, era o melhor a se fazer.
***
Colocou mais munição na espingarda e se colocou diante da porta. Ainda não entendia nada, mas o fato de não conseguir se comunicar com ninguém era angustiante. Ele tinha que enfrentar o que quer que fosse.
Quando saiu para a estrada de terra árida, a noite começava a jogar o sal de estrelas no céu, e não havia mais nuvens negras. Uma lua cheia imponente se destacava no céu e iluminava a igrejinha. O corpo de Amélia jazia no pé de goiaba.
Três badaladas… Quando isso aconteceria? Mais uma vez se perguntou: Seria tudo isso verdade? Estava mesmo acontecendo com ele? Não teve tempo de pensar mais, porque o som que ele tão temia enfim veio.
Prestou atenção no céu. Não parecia nada de diferente, até um grasnado alto chamar sua atenção. Procurou por todos os lados, até achá-la.
Lá estava. No topo da igrejinha. O ser tão temido.
Paulo sabia que agora era só ele. Ele e a Ave-Fantasma. Um tiro no coração. Era só o que precisava.
O ser se levantou. Aparentava ter corpo de mulher, mas suas enormes asas denunciavam que aquilo estava longe de ser humano.
Ela se preparou e, enfim, alçou voo.
***
Ela veio por justiça. Condenar os pecadores. Ela é o juiz dos seres vivos. Ele soube disso quando errou o tiro. Soube que nunca mais maltrataria um animal. Nas garras possantes da Ave-Fantasma, enquanto voava pelo céu estrelado, ele só teve uma certeza: O Deus da mata tarda, mas nunca falha.