-ESTÁTICA- IOLANDINHA PINHEIRO

Este texto foi inspirado no conto PONTO CEGO da sempre genial amiga e escritora CRISTINA GASPAR.


 
 AS MEMÓRIAS DE UMA MEMÓRIA


Jorge acordou antes de terminar a sesta do domingo. Foi até a porta e olhou para o vasto terreno que cercava a casa. Tudo parecia normal a não ser por um barulho de crepitação distante. Não havia fogo nas proximidades, nem cheiro de fumaça para se preocupar, apenas um chiado que já ouvira antes, mas não lembrava onde.

Estava triste. A proximidade do crepúsculo sempre lhe provocava uma certa melancolia. A escuridão que viria em seguida, ocupando todos os lugares, lhe trazia a sensação de finitude à espreita.

Voltou para a sala com Rex. Só sairia do sítio no dia seguinte. Havia planejado comprar ração para os cavalos e ir até a capital para visitar o filho. Ainda não tivera tempo de conhecer o novo netinho.

Rodrigo havia falado que o filho se chamaria Jorge, como ele. Estava orgulhoso. Havia contado a novidade para os vizinhos e mostrara a foto do neto ainda no hospital, com a pulseirinha de identificação no braço minúsculo.
Pensou em avisar ao filho da visita, talvez tivessem algum compromisso e se atrapalhassem para recebê-lo. Ligou o celular, mas estava sem sinal. Tentou o telefone fixo, mas não estava dando linha.

Resolveu ir até a cidade. A chave da velha caminhonete girou, mas tudo o que ouviu foi um som de estalo. Olhou o motor e verificou a bateria. Pareciam perfeitos.

Voltou para casa e abriu um livro. Rex se deitou perto de seus pés. Leu alguns capítulos, e acabou dormindo na cadeira de balanço sem sequer jantar. Naquela noite, não sonhou, e no dia seguinte havia esquecido o rosto e o nome dos amigos.

Acordou e não lembrava nada do que havia feito pela manhã ou à tarde. Tudo o que percebia era que já estava escuro novamente, ou talvez a noite não tivesse terminado ainda. O barulho de chiado agora estava mais próximo, intenso. Subiu na caixa d’água e observou. Não viu mais o celeiro, somente as plantas ao redor do sítio. Tinha certeza de que havia vizinhos morando lá perto, mas não sabia para onde haviam ido.

Voltou para casa sentindo a angústia de quem se perde das próprias memórias. Enquanto fazia o café, esqueceu as pessoas da família.
Naquela noite, comeu umas frutas que estavam na geladeira e alimentou o cachorro. Não conseguia lembrar que tinha um cão, mesmo assim gostava dele.

Antes de dormir, chorou. Quando acordou ainda estava escuro, e continuou noite por muitas horas. O barulho do chiado agora beirava o insuportável. A lua e as estrelas haviam sumido. Não conseguia mais ver a cerca ou as árvores, apenas uma espécie de camada que cobria quase tudo ao redor, uma imagem de pontinhos pretos sobre uma superfície branca, como às vezes se vê quando a televisão não está pegando nenhum canal.

Sentou-se no batente da casa enquanto a coisa se fechava sobre ele. O cachorrinho latiu e investiu contra aquilo que os cercava. Com um novo avanço, a coisa alcançou o bichinho. O cão olhou para o seu dono uma última vez como se implorasse por socorro. Enfim foi engolido também.

Antes de ser totalmente envolvido, Jorge viu o rosto de uma outra pessoa olhando para ele, um rosto amado que não conseguia mais identificar perto mas ao mesmo tempo, distante. E então tudo acabou.

Do outro lado da tela, Rodrigo usou o controle para desligar a televisão. Havia dormido enquanto assistia ao filme com as lembranças de uma pescaria que fizera com o seu pai mais uma vez. Havia dez anos da partida de Jorge em um terrível acidente a caminho de sua casa, para conhecer o neto.  Desde então, Rodrigo passava noites em claro colocando os filmes no aparelho como se aquilo pudesse trazer o pai de volta.

A esposa havia dito que só se libertaria quando jogasse as velhas fitas fora. Iria fazer isso no dia seguinte. Assim esqueceria a dor da perda do pai, e talvez o espírito do pai, onde estivesse, pudesse esquecer as próprias lembranças também.

Estava na hora de virar a página.