SATÃ BRASIL Capítulo VI

“Eu sou a faca e o talho atroz!

Eu sou o rosto e a bofetada!

Eu sou a roda e a mão crispada,

Eu sou a vítima e o algoz!”

Charles Baudelaire

Andei o resto do dia pela ala dos pacientes terminais do maior Hospital da cidade. O que vi me encheu de alegria. Vi sofrimento espera e amargura.

Os pacientes sofriam, muitas vezes, calados ou sedados. Já os seus parentes sofriam de fato a dor da perda que se aproximava, a dor prematura da saudade, a dor do remorso de não ter feito mais e em boa hora por aqueles que estavam partindo.

Naquele hospital contribuí de algum modo para inflar a bolha da maldade. Antecipei o que viria, mais cedo ou mais tarde. Consegui, com um único sopro gelado, empurrar para a morte boa parte de uma ala de pacientes com insuficiência respiratória. É preciso confessar que tive uma ajudazinha: entrei junto com quatro mil e setecentas substâncias tóxicas na mão suja de um enfermeiro fumante e depressivo.

É triste admitir que também sou fraco, que preciso de ajuda para matar, mas fico feliz em saber que sempre haverá ajudantes.

De uma coisa estou certo: se esse mundo pertencesse a Deus, ele já o teria tomado e carregado no colo da eternidade. Tampouco me pertence, como alguns velhos livros escritos por homens teimam em afirmar. Esse mundo aberrante pertence à aberração chamada Humanos.

Deus e Eu somos apenas desculpas para eles se eximirem dos seus erros. Com isso, não quero afirmar que Deus não exista e que eu não existo tampouco. Quero deixar bem claro que existimos todos como imagens no espelho, estamos sempre lá, mas é preciso que alguém nos provoque. É necessário postar-se diante do espelho para que exista imagem e semelhança.

Tanto Deus quanto Eu somos apenas reação da ação humana sobre a face da Terra. Existimos como energia, como força e desejo, por isso somos imortais ou, pelo menos, seremos enquanto existir a Humanidade.

Eu inspiro indiferença e expiro maldade. A Terra é para mim um grande balão repleto de gases envenenados. Vez em quando abro as narinas e sugo o ar à minha volta, depois expiro com toda a força que posso. Naquele momento, em um lugar adiante, se forma um rodamoinho, um furacão ou um tornado e devasta áreas inteiras de plantações; derruba redes elétricas e animais que ruminam no pasto. Fico feliz em saber que captei da própria Terra e de sua circunferência os elementos de sua destruição.

Nesses dias há rumores, piados, mugidos e berros, mas nada se iguala - para mim - ao choro humano. As lamentações dos humanos fazem tocar a música que eu danço e, ultimamente, tenho gostado de dançar: chamo a mim mesmo de o bailarino do caos.

Apesar de dançarino sou um demônio muito solitário, mesmo que esteja escrito em algum lugar que somos legião. Acontece que nós nos devoramos uns aos outros sem nos entender e sem cooperar, por isso a maioria resolve agir sozinho. Quando queremos companhia nos disfarçamos de um belo homem ou de uma mulher bonita e mantemos laços de união que podem durar minutos, horas, dias ou anos, tudo dependendo da nossa satisfação.

Conheço demônios que ficam uma vida inteira – ou até mesmo por gerações - sugando o sangue dos humanos, dormindo ou trabalhando com eles. Todavia, existem alguns de nós que preferem contatos rápidos e fatais com humanos: nós nos disfarçamos de lobo, cão, cobra ou de assassino em um beco escuro. Nesses casos temos um imenso prazer em sentir nossos dentes, presas ou punhal rasgando, cortando ou perfurando a carne sangrenta e macia das pessoas.

Continua...