O BEIJO GELADO DA MORTE
A massa de ar polar derrubando a temperatura. A capital paulista não pára. A madrugada mais fria das últimas décadas, beirando zero grau. A chuvica, como dizia a Maju. A sensação térmica de quatro graus abaixo de zero. As avenidas movimentadas. Uma aglomeração aqui, outra ali, mesmo em tempos de pandemia. O esforço heróico e digno de medalha de ouro de alguns voluntários que distribuem cobertores e sopa aos moradores de rua da cidade. Os albergues lotados. A solidariedade que salva vidas. Não é só cobertor e sopa que aquecem mas também carinho e amor. Era o que faltava na vida de Abelardo. O homem forrou o papelão no mármore congelante da entrada do prédio de escritórios. Um agasalho fino. A calça de moletom. A touca. O homem de setenta anos tirou o cobertor da sacola. As mãos trêmulas. A barba longa e o cabelo branco. O cachorro junto dele. Para o amigo fiel deu seu único pedaço de pão. A lua no céu. Algumas pessoas passaram pertinho dele mas o ignoraram. Estava acostumado a ser ignorado pela família. As palavras dos filhos ressoando na sua mente. -"Bêbado. O senhor acabou com nossa vida." A aposentadoria cortada pelo INSS. O joelho machucado. As dores na coluna e duas operações que não deram certo. Quinze anos numa casa de repouso, após a morte da esposa. A diabetes alta. Abelardo se encolheu todo. Os calafrios.Os dentes tremendo. As extremidades congelando. O nariz gelado. Um gole no corote quase vazio. Delirava. Falava alto que queria sua mãe. Tinha saudades da roça, no Paraná. Quatro horas da manhã. Uma Kombi da prefeitura passou por ele. Abelardo foi visto. Acordou assustado. Olhar perdido. O cachorro latiu. Sem forças pra ficar de pé. Não sentia as pernas. Amparado, conseguiu entrar no carro. Outros moradores de rua recolhidos. O corpo caiu no banco. O hospital, finalmente. O esforço da equipe médica, tentando salvar o homem na maca. Cobertas e remédios. Soro. Tudo inútil. Abelardo recebeu o beijo gelado da morte. Triste fim. Só mais um número nas estatísticas. FIM