Coração Executor
Aproximei-me de meu pai. Frio. Rígido. Inerte. Observei sua tez esquálida, e admirou-me a expressão serena em seu rosto, tão distinta da que trazia habitualmente. Talvez tivesse morrido no meio de um sonho bom. Olhando em volta, via-se que todos na sala mantinham uma postura cordial. Desentrelacei minhas mãos dos dedos gélidos de meu pai e me dispus a caminhar até as cadeiras mais afastadas do caixão.
Já acomodado, comecei a analisar aqueles semblantes tristes. Indo e vindo. Conversando baixinho. Revezando-se para se aproximar do caixão e despedir-se de meu pai, alguns chegavam mais perto; outros, mantinham certa distância do defunto. Todos ali para ver meu pai morto. Nunca o visitaram enquanto estava vivo, por que vinham agora para vê-lo sem vida? Sempre considerei o velório uma cerimônia sem sentido. Contudo, para mim, aquele em específico significava não um ritual fúnebre, mas o início de uma nova vida.
Cada um dos presentes, entre os familiares, amigos e conhecidos, vinha, em algum momento, prestar sua solidariedade a mim, que agora me tornara órfão também de pai. Perguntavam que terrível mal tinha acometido meu pai, que fizera sucumbir um homem ainda jovem, forte e que sempre sustentara um ar inabalável. Eu repeti, incontáveis vezes, reprimindo o sorriso orgulhoso, que nem com a necropsia foi possível definir o que causou a morte. “Causa indeterminada” é o que consta na certidão de óbito.
Alguns questionaram se a morte não foi decorrente de sua doença do coração. Meu pai já havia sofrido um infarto, mas, como diz o ditado popular “vaso ruim não quebra”, ele sobreviveu sem sequelas. Minha mãe também esteve por perto para socorrê-lo. Se ele tivesse tido mais um depois que ela se foi, não haveria alguém que o socorresse. Minha tia me alertou, preocupada, que cuidasse de minha saúde, pois aquele mal poderia ser hereditário. Eu lhe disse que ficasse tranquila. Daquele homem, eu não havia herdado nada.
Quando as pessoas começaram com a história de o quanto meu pai era um bom homem e que não merecia um fim tão prematuro, eu comecei a ficar inquieto e desejar ir embora. Queria sair do meio daquelas pessoas estúpidas que achavam que conheciam meu pai, quando na verdade não faziam ideia de quem era o homem que estavam velando.
E, sobretudo, queria sepultar logo meu pai para que sua partida da minha vida se consumasse. A certa altura do velório, comecei a olhar para o relógio de minuto em minuto, ansiando para as 17h, a hora do enterro, e batia o pé impacientemente quando alguém vinha com o papo de “Ah, é uma pena, ele ainda era tão jovem”.
Aquele homem desprezível não merecia nenhuma lágrima, mas é claro que eu interpretei bem meu papel de filho desolado pelo falecimento repentino do pai. Nenhum deles sabia quem era realmente meu pai e como ele fazia da nossa vida miserável. Assim como toda boa família problemática, escondíamos muito bem nossas desavenças dos olhares de fora. Comecei a imaginar a reação das pessoas nesse velório se soubessem que eu matei meu pai, o quão chocadas ficariam. É claro que ninguém nem desconfia. Ninguém desconfiaria sequer que eu seria capaz de tal ato infame. Eu mesmo me surpreendi quando me peguei desejando fazê-lo, e depois imaginando, e depois planejando, e, até executar de fato, não tinha certeza de que realmente conseguiria.
Tudo que eu queria era que ele me deixasse em paz, que parasse de me atormentar, mas isso nunca aconteceria, então tive que fazer algo para obter finalmente o controle da minha vida. Para isso, tive que me tornar um assassino, mas não acho culpa em meu ato; apenas adiantei sua ida para o inferno, pois bem nenhum fazia na Terra. Queria que ele saísse da minha vida silenciosamente, por isso eu precisava de uma maneira de matá-lo sem deixar nada que pudesse ligar sua morte a mim, de preferência algo que parecesse um acidente ou morte natural. E foi aí que me ocorreu. Uma agulha. Seria essa a arma do meu crime, arma que não deixaria nenhum vestígio. Eu seria realizador de um crime perfeito. Seria, na verdade, algo muito simples, mas que não deixaria pistas que pudessem me incriminar.
É isso, eu tinha tomado a decisão e já tinha um plano; só precisava concretizá-lo. Mas, para chegar lá, eu ainda precisava tomar coragem. Passei semanas imaginando o momento, premeditando cada ação com máxima prudência, dia a dia minha vontade de fazê-lo sendo alimentada pela presença odiosa daquele homem. Até que finalmente tomei coragem. Foi na madrugada de domingo. No dia anterior, decidira que já não poderia esperar mais. Tinha que ser feito. O maldito tinha que ter um fim.
Fomos dormir costumeiramente às 23h. Eu tinha dissolvido meu remédio para dormir no leite que ele tomava todas as noites antes de se deitar, apenas por garantia. Eu sabia que ele tinha o sono pesado; nunca havia tido problemas para deitar a cabeça no travesseiro mesmo sendo alguém tão abominável. Aguardei ainda algumas horas.
Quanto mais o tempo passava, mais minha ansiedade aumentava, então, às 3h da madrugada, levantei de minha cama com minha agulha no bolso.
Fui até o quarto dele, entrei cuidadosamente e, com passos lentos e hesitantes, aproximei-me de sua cama. Ele estava deitado de costas para mim, não vi seu rosto. Abaixei-me ao seu lado e, tentando ser o mais firme e preciso que conseguia naquele estado de tensão, enfiei a agulha atrás do lóbulo de sua orelha, até que tocasse o cérebro, causando sua morte instantânea. Uma forma muito eficaz de matar uma pessoa sem deixar vestígios que aprendi numa aula de biologia certa vez, uma curiosidade dita pelo professor. É claro que ele não achou que alguém realmente faria uso desse conhecimento um dia.
Não vou negar que senti em meu íntimo um certo orgulho por não ter sido descoberto. Por ter cometido um crime perfeito, mas não pensem que fiquei feliz em ter que fazer aquilo. Em cometer um crime, em matar alguém. Fiquei feliz, sim, em não ser mais atormentado por aquele ser hediondo, ainda que, fatidicamente, fosse meu pai.
Ao entrar no cemitério, estranhamente comecei a suar frio e sentir falta de ar, mas imaginei se tratar do cansaço e da ansiedade causados por toda aquela situação. Como era previsto para o final daquela tarde, começou a cair uma chuva fraca. Era um bom dia
para um enterro, deve-se dizer. Debaixo de meu guarda-chuva, murmurei um adeus quando o coveiro colocou o último tijolo que lacrou o túmulo. Virei-me e fui embora, deixando para trás meu pai e meu pecado.
Eu estava em casa. Estava sozinho. Finalmente conhecendo um pouco de paz. Sentei-me na poltrona em que antes costumava
repousar meu pai e apreciei o silêncio que inundava a casa toda. Notei, então, que ainda faltava uma coisa para me livrar completamente da presença de meu pai. À minha frente, na estante, estava a nossa foto de família. Eu pensei em cortá-lo da foto e deixar apenas minha mãe e eu. Mas assim que comecei a levantar, uma forte pressão veio sobre meu peito. Era como mãos empurrando meu peitoral. Era como as mãos pesadas de meu pai. Uma dor excruciante me atingiu. As mãos penetraram meu peito e esmagaram meu coração entre elas. Maldito! Ele não me deixou em paz! Sua sombra cobriu meus olhos e me mergulhou na escuridão.