SATÃ BRASIL Capítulo V
---- Onde Satã disserta sobre o Amor humano -----
“É uma bela coisa o vapor de um charuto! E demais, o que é tudo no mundo senão vapor? A adoração é incenso e o incenso o que é? O amor é o vapor do coração que embebeda os sentidos. Tu o sabes—a glória é fumaça.”
Álvares de Azevedo
Todas as pessoas do mundo querem ser amadas, poucas querem amar primeiro. É nesse ponto que eu as ganho para mim. Quando uma pessoa ama verdadeiramente uma árvore, um cachorro, um pássaro ou outra pessoa eu já perdi o jogo para ela. No entanto, quando as pessoas não amam nada nem ninguém já estão a meio caminho de cair nas minhas garras, pois os indiferentes são a minha melhor moeda de troca.
Aquela Luz está sempre rondando os indiferentes, a minha escuridão também ronda. Devo admitir que toda vez que alguém se furta de amar está sempre na iminência de odiar. Nessa situação, apenas sento e espero o peixe engolir a isca.
Um caso exemplar é o do filho adotivo que viu sua “mãe” adoecer dos rins. Quando ficou sabendo que era o único doador compatível com ela, encheu-se de orgulho e compaixão e doou um dos rins para a velha. A pobre mulher ficou repleta de alegria e os filhos dela também, já que não precisaram colocá-la em uma fila de espera.
Aconteceu, no entanto, que o filho adotivo ficou esperando o reconhecimento e o amor pelo seu gesto. O reconhecimento veio de todos, inclusive e principalmente da velhinha transplantada. Já o amor, ela precisava repartir. E o que ela tinha pelos filhos de sangue continuou e até aumentou depois disso. Para o filho adotivo restou apenas o agradecimento e a compaixão. Estas duas palavras não contavam tanto para ele, pois queria e ansiava pelo famigerado. O rapaz não se contentando com isso passou a desprezar a mãe adotiva.
O que relatei é só a ponta do iceberg quando se fala em indiferença. A Humanidade inteira chafurda nesse pântano. Uns mais, outros menos, no entanto todos pagam tributos às suas emoções, pois todos querem ser amados. Bem poucos querem ou podem amar.
Todos os ódios do mundo cabem dentro de uma única cabeça. Do nascer até à morte as pessoas compõem uma sinfonia infernal de emoções reprimidas, de raiva acumulada, de frustrações e traições que não podem ser abandonadas de uma só vez. Então, quando o corpo desaba sob o fardo dos erros, cai ao chão a casca, mas a intenção da semente fica pairando no ar procurando outro invólucro para se acondicionar e tocar de novo a música das lamentações humanas.
Saibam que todo bebê pode se tornar um assassino em potencial, ou pode se tornar parte Daquela Luz. Vai depender do pai e da mãe que os gerou e os criou. De minha parte devo confessar que infernizo a mãe desde as primeiras cólicas e contrações. Depois a infernizo com a depressão pós-parto, em menor ou maior grau, para que ela faça um pouco do trabalho que eu teria de fazer pela frente, ou seja: que ela comece a odiar sua cria e o pai dele, para que o bebê se sinta odiado também e o ciclo de ódio evolua numa crescente e se torne um ciclo odioso.
Já o pai é mais fácil fazê-lo odiar, basta apenas lhe retirar um pouco de sexo, retirar-lhe a diversão com os amigos, impedi-lo de dormir à noite com o berro da criança e fazê-lo trabalhar dia após dia, sem aumento e sem reconhecimento, para um patrão ganancioso.
Como podem ver a terra é fértil e a colheita é certa. Tenho tanto a ganhar e ganho todo dia que, às vezes, me irrito e só para variar faço elogios aos sentimentos humanos. Mas bem sei que são instáveis, leves e aéreos como uma folha seca ao vento. A única emoção que pesa é a do chamado “amor”, mas não me preocupo com ela. Criaturas abomináveis também amam.
Infelizmente depois de experimentar a mim e experimentar aquilo a que chamam Amor, nenhum ser humano volta a ser o que era antes. Eles começam a olhar para o mundo e a se comportar com mais severidade. Seus passos são mais calculados e medidos como se estivessem o tempo todo caminhando num pântano movediço ou em um deserto espinhoso.
Observem e vejam que os olhos destes humanos, antes tão dóceis, passam a refletir o brilho de um milhão de sóis e a conter a fúria de incontáveis vespas retidas à força. Até mesmo o sorriso deles esconde punhais prontos a se cravarem nas costas ou no coração dos que ainda permanecem inocentes.
Continua...