O Coveiro Negro
Segundo a lenda ele foi sepultado ainda vivo. Antes de ser dado como morto, Emílio foi espancado por cinco homens armados com barras de ferro. Dizem que seus gritos podiam ser ouvidos a metros de distância. Sim, Emílio não era boa gente, nunca foi. Certa vez ele obrigou um menino de dez anos a beber a água do valão que passava atrás de sua casa. Tudo isso só por que o garoto entrou em seu quintal para recuperar a bola de meio da pelada na rua. O menino não suportou a forte infecção e morreu alguns dias depois.
Emílio também trabalhou de pedreiro na casa de uma senhora que cuidava da mãe doente, acamada, nos eventos finais de Alzheimer. Essa senhora moribunda foi violentada e asfixiada por ele morrendo minutos depois. Maldade pura. Cansados de tanta crueldade, o povo respondeu a altura. Emílio foi surrado até seus ossos apareceram. Seu corpo foi arrastado até o cemitério e enterrado. Antes de jogarem terra, um dos homens mijou em seu rosto.
— Beba bastante, não vá se afogar — gargalhava.
Serviço feito. Cova tapada. O céu ficou escuro por densas nuvens de chuva. A primeira gota celeste molhou o solo dando início ao temporal. Uma hora depois que os homens deixaram o lugar, uma figura usando uma capa de chuva surrada terminava de desenterrar Emílio. A chuva não dava trégua. Ele puxou o homem da cova e deixou que a chuva fizesse o trabalho de limpeza. Emílio foi abrindo os olhos.
— E aí, desgraçado!
— Preciso de um médico, não consigo respirar. — falou cuspindo terra.
— Você não precisa de socorro médico, você precisa de mim e eu estou aqui.
— Acho que eles quebraram minhas duas pernas e algumas costelas também. Preciso de um hospital, estou passando muito mal.
— A chuva não vai passar tão cedo. Vai precisar da minha capa para ir até lá.
Emílio chorou.
— Eu estou todo quebrado, como vou andar até o hospital? Por favor, chama uma ambulância. — gritou.
O sujeito estendeu o braço.
— Segure minha mão.
— O que? Como?
— Vou ajudá-lo a se levantar. Vamos.
Gemendo. Sentindo cada osso estralar. Emílio segurou na mão magra e gelada do estranho. Algo aconteceu. Emílio se colocou de pé, as dores já não existiam mais.
— Agora sim você já pode ir até o hospital. Tome minha capa.
Emílio não estava entendendo nada. Ele olhou para o sujeito e seu rosto transparecia uma paz inigualável.
— Quem é você?
— E isso importa? — tirou a pá da lama. — salvei sua vida e agora chegou a sua vez de salvar a minha.
Emílio achou que tivesse sonhando.
— Preciso que me enterre. — deu a pá na mão de Emílio, tirou a capa e a colocou em seus ombros.
— Quer que eu o enterre? Mais você ainda está vivo.
O rosto dócil de repente deu lugar ao macabro.
— Sabe a quanto tempo estou perambulando por esse mundo? Sabe a quanto tempo me disfarço de gente como você? Sabe? Acha que gosto de viver nesse cemitério? Acha? Você teve o que merecia, Emílio. O inferno é pouco pra você. Coloque a capa.
A capa foi colocada. Seu corpo foi restaurado. Os olhos brilharam e se tornaram vermelhos. O aspecto de Emílio melhorou muito.
— O que achou, hein, desgraçado?
— O que fez comigo? — Emílio conseguiu sorrir.
— Você vai me sepultar. Para todos você estará aqui. Eu irei descansar um pouco. Vá atrás de seus inimigos e os mate. Cause pânico. Depois de quinhentos anos você vai passar essa capa para outro desgraçado igual a você, igual a mim. Entendeu?
— E para onde eu vou depois disso? Onde vou viver?
O sujeito riu.
— Viver? Você vai ficar morando aqui por quinhentos anos igual a mim. Simples não acha? Agora chega de conversa.
O homem se deitou na cova. A chuva já havia passado. Demorou, mas por fim Emílio terminou o serviço. Com a pá suja apoiada no ombro esquerdo ele passeou pelo cemitério e cada um dos corpos sepultados ali o saudava.
— Seja bem vindo.
Emílio deixou o lugar. Trancou o portão. Fechou a capa e segurou firme o seu instrumento de trabalho.
— Estou voltando, miseráveis.
FIM