A LENDA DE COBRA NORATO.
O sujeito entrou no botequim, olhando para os lados. A pequena vila ao lado do rio Amazonas. Deu meia volta na mesa de sinuca, onde alguns rapazes se divertiam. Uma mesa vazia, perto da pista de dança. O sanfoneiro animado. Os casais com energia pra dançar a noite toda. Um soldado no balcão. -"O amigo me acompanha na cerveja?" O soldado se virou. -"Mas é claro. Vejo que é homem de bem." O barman trouxe uma garrafa e dois copos. -"Sou o cabo Damião." O militar se apresentou. -"Honorato, seu criado." A morena trigueira no canto do bar. Ela lançou um olhar fulminante para o visitante que ria das piadas do quartel. -"Disfarce. Jurema está olhando muito pra cá." O moço tomou toda a cerveja do copo. -"Se olha, há interesse. Vou dançar." Ele deu um salto do banquinho de madeira e jogou o chapéu no balcão. Apontou para a moça e a chamou. Jurema veio na direção dele, jogando o cabelo e abrindo um sorriso do tamanho do Amazonas. -"A graça do moço?" Ela o mediu do alto da cabeça até o sapato branco. -"Me chamo Honorato. Encantado." Ela estava colada ao corpo dele. -"Encantada estou eu, desde que entrou no botequim da vila. Moço bonito." Ele a abraçou e a conduziu, ao som do forró. O moço dançava bem demais, a ponto de Jurema pedir água na quarta música. Honorato atraía a atenção de todos. Todas as moças queriam dançar com o rapaz. -"A cerveja esquentou, amigo." Disse o soldado, dançando ao lado dele. -"A noite está só começando, amigo militar. Apenas começando." O baile terminou as três horas. Honorato e o soldado esvaziaram a última garrafa. Jurema se aproximou deles. A moça saltou para cima do rapaz e o beijou. -"Vai com Jurema, amigo. Eu não aguento mais beber." Honorato, Jurema e o soldado caminhavam a pé, tendo a lua por testemunha. A mata escura. Uma pequena caminhada até a vila. Eles cantavam. Honorato e Jurema abraçados. -"Jurema, vai na frente. Vou depois." A moça estava confusa. -"Que vão fazer?" Honorato a acalmou. -"Vou conversar com o soldado. Não sou daqui e tenho algo a fazer." A moça não estava satisfeita. -"Jura que você vem? Eu moro na rua Treze. A casa amarela da esquina." O soldado sabia onde era. -"Eu sei onde é. Levarei esse moço até lá, Jurema." A moça se foi. As luzes da vila ao longe. -"Forasteiro estranho e esquisito. Vai dispensar a moça mais linda da vila?" Honorato mexeu num arbusto. O moço tirou uma garrafa e um machado. O soldado sacou o revólver. -"Virgem Maria. Largue isso ou morre." Honorato riu. -"Isso é leite de mulher. Custei pra pegar e esse machado é virgem. Venha comigo até o rio." O soldado obedeceu. Eles desceram o barranco. O reflexo da lua nas águas. O coachar de sapos e pios de coruja. Os som de grilos e cigarras. -"Alí. Veja, meu amigo." O soldado viu uma grande cobra, dormindo. Honorato foi até ela e abriu sua boca. -"Rápido. Derrama o leite na boca dela." O soldado, tremendo todo igual vara verde, obedeceu. A cobra despertou e se mexeu. -"Vai, soldado. Dê uma machadada na cabeça dela. Vai." O militar deu três golpes. Usou de toda sua força. O sangue da cabeça da cobra sujou a farda do jovem soldado. A cobra imóvel. Honorato desmaiou. -"Amigo. Acorda. A cobra morreu." O soldado arrastou Honorato pra água, molhando seu rosto. -"Esse rapaz tem feições de um réptil. Estranho." Honorato despertou. -"Que alívio. Vamos queimar a cobra." O dois jogaram galhos secos sobre a grande cobra. O soldado tirou um isqueiro do bolso e ateou fogo nos galhos. As chamas logo cresceram. A cobra virou cinza, logo depois. O vento soprou e levou as cinzas para o alto. -"Obrigado, amigo. Eu vivi por anos nesse corpo de cobra. Eu saio às vezes pra dançar, beber e namorar mas quero viver livre desse encanto. Agora estou livre. Não sou mais cobra Norato." O soldado o abraçou. -" Cobra Norato?!? Ainda custo a crer. Eu acho que ganhei um irmão." O soldado acendeu um cigarro. Eles sentaram no barranco. -"No Cachoeiri, entre o Amazonas e o Trombetas, nasci com minha irmã gêmea, Maria Caninana. Éramos duas serpentes negras, batizados com nomes cristãos. Vivíamos no rio e a noite, quando se viam as estrelas, deixavamos os corpos de cobras na margem pra visitar a mãe índia. A gente comia e se divertia até o primeiro canto do galo. Era o sinal que o sol viria. Era hora de entrar no corpo da cobra e ganhar o rio. Eu voltava a ser cobra Norato. Eu não sou ruim pois salvei muitos de afogamentos no grande Amazonas. . Minha irmã sim, era ruim demais. Ela atacava mergulhadores e pescadores. Matava sem piedade. Parou de visitar a mãe. Ela mordeu a cauda da enorme serpente que vivia debaixo da igreja de Óbidos, no Pará. A serpente se mexeu e a igreja caiu. O chão da cidade rachou. A mãe morreu de desgosto e matei minha irmã. É preciso coragem pra desencantar cobra Norato." O soldado estava boquiaberto. -"E até quando você vai viver assim, como gente?" Honorato riu. -"Não sei. Estou cansado de nadar, meu irmão." O soldado deu um cigarro a ele. -"Vamos então. O amor de Jurema o espera." FIM