SATÃ BRASIL Capítulo IV
---Onde o Cão procura sangue, ou lama, para se banhar---
“Vocês não são um grão de neve belo e único. Vocês são a mesma matéria orgânica em decomposição que todos os outros são e somos todos parte da mesma pilha de compostagem.”
Chuck Palahniuk
No carro e em velocidade dirijo com pressa porque quero chegar logo a lugar nenhum. Aprendi com os humanos aberrantes que uma das formas de não chegar a lugar algum é ir rápido.
As pistas estão repletas hoje e vejo um mendigo no fim da alameda. Passo por ele e quase o atropelo. Então dou meia volta a oitenta por hora e lanço o BMW sobre ele. O veículo trepida, espremendo ossos sobre o asfalto.
Se este carro fosse um veículo comum teria que passar por uma reforma completa na parte da frente, pois o corpo magro do mendigo e o seu sangue fizeram grandes estrias avermelhadas nos para-lamas e no capô. Com um estalar de dedos tudo some. Resta apenas um ex-sofredor esparramado no asfalto quente, que não sumirá tão cedo. Outro assumirá sua vaga na fila da morte.
Continuo rodando, cortando a cidade em direção ao subúrbio. Nuvens negras e volumosas se acumulam sobre os paredões de rocha que circundam uma das muitas favelas dessa cidade. Paro o carro no acostamento e contemplo o aglomerado de casinholas, barracos e becos logo abaixo da pista.
Passo as mãos no rosto e abre-se a Terceira Visão. O que vejo me deixa extremamente feliz. Vejo miséria dentro e fora de mim. Algumas dessas misérias são mais palpáveis do que outras.
As casas miseráveis têm habitantes parecidos com minhas gárgulas infernais. Em algumas dessas casinhas de alvenaria há camas rústicas encostadas às paredes e, nas camas, há uma mulher, um homem ou criança que não conseguem mais andar.
Estou de olho neles e providenciando malefícios junto com a poluição atmosférica e uma tempestade tropical que se aproxima. Desejo soterrar ou alagar essas casinhas e dar fim a esses rebotalhos humanos.
Paro de fumar e jogo o cigarro ainda aceso no acostamento, esperando que o vento sopre forte para que aconteça um incêndio próximo à pista. Desastres não vão faltar.
Entro no carro e saio procurando um lugar alto e tenebroso para que eu possa assistir a tudo de cima. Encontro uma igreja ao pé da serra. Não poderia haver um lugar mais perfeito.
Enquanto levito em direção ao sino da torre, nuvens carregadas começam a desabar sobre a favela. Tenho que me contentar com deslizamentos e esquecer o fogo na beira da estrada. Não se pode ganhar todas. Nem eu posso.