O DESPACHANTE ADUANEIRO
Já fazia algum tempo que ele estava se sentindo daquele jeito. Era um sentimento de leveza, de esvaziamento do eu, de fluidez etérea, que o acompanhara o dia inteiro, desde que acordara, pela manhã, até à noite, quando se deitara para dormir. Era engraçado, mas ele não se lembrava de haver dormido na noite anterior. Lembrava-se sim, que tivera sonhos, sonhos tão reais, que eram como se fossem verdadeiras ações realizadas na vida diária. Daí o porquê daquela sensação de estar mais cansado quando acordava do que quando se deitava.
Também não sentia nenhuma necessidade de dormir. Por ele teria ficado no escritório trabalhando até altas horas da madrugada e depois ainda teria feito amor com Lúcia, sua esposa, se não fosse a estranha atmosfera que havia se instalado entre eles desde há algum dias atrás. Era como se houvesse uma barreira entre os dois, impedindo o contato físico.
Mas ele não queria pensar naquilo agora. Outras coisas o preocupavam. Lembrava-se de que antes de ir para a cama havia tomado uma ducha e não conseguira identificar se estava quente ou fria. Tentara regular a temperatura do chuveiro, mas não adiantou muito. Talvez ele estivesse com algum defeito, ou então era a sua própria pele que não estava captando bem as informações sinestésicas referentes ao ambiente.
Aliás, se alguém lhe perguntasse agora se estava quente ou fria a temperatura do quarto ele não saberia dizer. No entanto devia estar muito frio, pois quando ele se deitou e tocou na pele macia de Lúcia, para ver se ela estava acordada e disposta ao jogo do amor, viu que ela estava dormindo, mas sua respiração exalava um bafejo que se transformava em uma nuvem fria, como se ela estivesse na rua, numa noite de pleno inverno glacial. “Nossa”, pensou ele, “ela deve estar com muito frio”. E então puxou sobre ela o grosso cobertor que estava enrolado aos pés da cama. E depois se deitou ao lado dela, sem se cobrir, por que não estava sentindo nem calor nem frio. Pensou em quão estranho era aquilo tudo, pois estava no Rio de Janeiro em pleno mês de janeiro.
Ele não se lembrava nem de ter dormido na noite anterior. Mas isso também não era relevante. Ninguém se lembra mesmo de ter dormido, pensou. Só do que sonha enquanto dorme. E ele sonhara com ele mesmo. Sonhou que era dono de uma empresa que prestava serviços na área de comércio exterior. Sua empresa, próspero escritório de despachos aduaneiros, ficava num edifício de vinte andares, ali na rua Treze de Maio, bem no centro nervoso do Rio de Janeiro, ao lado do imponente e belíssimo prédio do Teatro Municipal.
Ele estava nesse ramo de serviços há mais de trinta anos. Começara como office-boy de um antigo despachante, um velho “raposão” do cais, como eram conhecidos os antigos comissários de despachos alfandegários, e aprendera todas as manhas da profissão. Era capaz de identificar, só no olhar para as caixas, se a carga importada tinha problemas ou não. Sabia também quando dava para acertar com o fiscal “por fora”, ou quando não ia ter acordo. Conhecia todos que recebiam propina e quem não recebia. Sabia como tratar com uns e outros. A única regra a seguir era: o fiscal sempre tem razão. Com ele não se discute. Negocia-se ou não.
Vida danada aquela, a de despachante aduaneiro, trabalhando no Porto do Rio. Mas ele gostava dela e não conseguia ver a si mesmo fazendo outra coisa além de elaborar declarações de importação para os seus clientes, calcular fretes, tributos, taxas alfandegárias, fazer conversões cambiais e realizar pagamentos e transferências de dinheiro de uma conta para outra, de um banco para outro, como normalmente faz um despachante aduaneiro.
Só que aquilo que antes ele fazia na unha, agora tinha que fazer no computador, pela Internet. Estava ficando velho, mas aprendera a usar a maquininha. Também não tinha outro jeito. Se quisesse continuar no ramo teria que aprender a usar o computador, porque agora tudo era feito eletronicamente. O sistema usado pela alfândega só aceitava a declaração eletrônica e aquelas “massetadas” que ele e seus colegas despachantes usavam para mascarar algumas importações fraudulentas, agora eram todas analisadas por um sistema eletrônico que pegava, de cara, as classificações fiscais erradas, a incorreta descrição de mercadoria, a falsa declaração de conteúdo ou qualquer outra malandragem que se fizesse na declaração.
Despachante aduaneiro era malandro por profissão. Essa era a crença geral que rolava pelo porto. Por isso ele não gostava do termo. Preferia o rótulo de técnico em comércio exterior, que era o título do diploma que recebera no curso que fizera na faculdade.
Sim. Sonhara com tudo isso na noite anterior, disso se lembrava bem. Era como se um longo filme tivesse sido rodado em sua cabeça, com todos esses detalhes. Toda a sua vida profissional fora contada no sonho, desde o tempo em que sua principal tarefa era despachar partidas de azeitonas importadas no armazém do cais do porto. Antes de o fiscal da alfândega fazer a conferência aduaneira, ele retirava a metade inferior das azeitonas dos barris e completava seu peso com pedregulhos, para enganar os fiscais. O produto roubado era vendido por fora, sem o pagamento dos impostos. Ganhara uma nota preta com isso até o dia em que a tramóia foi descoberta e o escritório de despachos onde trabalhava teve sua licença cassada. Mas ele se empregou em outro escritório e continuou no ramo até conseguir a própria licença.
No seu sonho Lúcia, sua esposa, também esteve presente. Relembrava alguns instantâneos da sua vida com ela. De quando se conheceram, o registro do primeiro beijo, a primeira vez que fizeram amor, o nascimento do primeiro filho e também do segundo. Nessa viagem onírica contemplou também alguns “flashs” de cenas domésticas. Como daquela vez que eles brigaram por causa de um telefonema que ele recebeu da sua secretária às três horas da manhã. Ele agora sorria se lembrando daquele acontecimento, mas na época não fora nada fácil explicar para a esposa porque a secretária lhe telefonara naquela hora da noite para “falar de serviço”. “Não dava para esperar até de manhã?”, perguntou ela, desconfiada. A coisa nunca foi bem explicada, mas como não se repetiu, Lúcia abandonou o caso e tudo ficou por isso mesmo. Ela nunca teve certeza se ele teve um caso com a guria, e ele também nunca se entregou.
Ficou a eterna desconfiança de quem perdoa, porque não tem certeza do que aconteceu, mas nunca esquece, justamente porque a dúvida não permite.
Mas agora, sentado na cama, olhando Lúcia que dormia pesadamente, bafejando um ar frio como se estivesse dormindo numa casa sem aquecimento em Moscou, em pleno inverno, e não no verão do Rio de Janeiro, ele sentia como se tudo aquilo tivesse acontecido numa outra vida.
Sentia-se vazio e atemporal. Não havia em sua mente medida de tempo nem de espaço. Puxou pela memória tentando lembrar que dia era aquele, se era dia de trabalho ou fim de semana, em que dia do mês estavam, em que ano, e não conseguia se lembrar. Ficou com medo. “Será que estou ficando com Alzhaimer?” perguntou a si mesmo. Mas não, não podia ser. Não tinha idade para tanto, embora idade não regulasse para essas coisas. Alzhaimer costuma apagar as memórias mais próximas e conservar as mais antigas. Se fosse, ele não se lembraria das últimas discussões com os fiscais da alfândega quando estes impugnavam os seus despachos; não se lembraria da bola que batia aos domingos com os colegas no clube; não se lembraria das festinhas dos aniversários dos filhos; não se lembraria do prazer que sentia quando fazia amor com Lúcia. Não se lembraria de Cíntia, a secretária maluca que telefonara para sua casa às três horas da manhã, bêbada, para dizer que se ele a abandonasse iria contar tudo para a mulher dele...
Ainda assim era estranho. Porque as memórias vinham mais nítidas quanto mais antigas eram. Podia recitar de cor e salteado a escalação do time do Flamengo que ganhara o título mundial de 1981, quando ele tinha cerca de dez anos e acompanhava o pai no seu fanatismo pelo clube. Era capaz de ver, como se estivesse acontecendo agora, o Júnior cobrando escanteios para o Nunes subir de cabeça e fazer o gol. Via o Zico, com seus dribles infernais, entortando os zagueiros adversários. Via o goleiro Raul pulando como um gato para buscar uma bola colocada lá na forquilha.
Mas logo voltou a preocupar-se porque não conseguia se lembrar do nome do goleiro atual do Flamengo. Nem qual fora o último jogo ao qual assistira. Pensando bem, não conseguia se lembrar nem do que comera no jantar. Mas se lembrava nitidamente do angú com carne que sua avó fazia. E dos doces que comia nas quermesses da igreja, nos dias da sua infância em São João do Meriti. Decididamente, acordara naquela manhã com a memória bem bagunçada.
Ao colocar o pé no chão do quarto não sentiu a textura do tapete que ficava no pé da cama. Passou pela sua cabeça que não era a primeira vez que isso acontecia. Era algo que já vinha de algum tempo, uns dois ou três dias, talvez. Perdera a noção de tempo como perdera a sensibilidade sinestésica.
O que seria isso? Hanseniase, talvez? Lembrou-se que lera em algum lugar que os hansenianos podem perder a sensibilidade cutânea. Que ficam sem tato, não sentem a temperatura ambiente, nem dores nos lugares atingidos pela doença. Concluiu que teria que procurar um médico para ver o que estava acontecendo com ele.
Lembrou-se que aquele sentimento de descolamento do mundo real era algo que já vinha acontecendo desde há alguns dias atrás. Sentiu-o pela primeira vez no momento em que colocou, mecanicamente, o pé direito no chão do quarto e murmurou aquelas palavras que sua avó lhe ensinara nos anos em que morou com ela: “Deus me dê um bom dia.” Era um ritual, no qual ele acreditava, por isso o praticava desde criança. Nunca se levantava com o pé esquerdo, nem deixava de invocar a senha que a avó lhe ensinara. Agora já não tinha muita certeza se isso dava certo ou não, mas o rito havia se tornado um hábito e ele o incorporara em seu comportamento de uma forma tal, que se não o fizesse sentiria que alguma coisa estava faltando. Seria como deixar de escovar os dentes ou tomar aquela ducha pela manhã. Comportamentos absolutamente imprescindíveis, embora a sensação física de fazer essas coisas e sentir prazer em fazê-las também já não estivesse sendo detectado pelo seu sistema neurológico.
Também não sabia distinguir mais quando tivera um dia bom ou um dia ruim. Nem quando um dia terminava e começava outro. Lembrou-se que, desde que tivera esse sentimento, as coisas que fazia, e as que lhe acontecia já não tinham mais a capacidade de excitá-lo a ponto de se sentir feliz ou infeliz. Era como se estivessem acontecendo com outra pessoa. Frente ao espelho, escanhoando a face com o aparelho de barbear, um pequenino filete de sangue começou a escorrer pelo queixo. Teve uma vaga impressão de que isso já havia ocorrido centenas de vezes antes. Mas não doía mais.
“Todo dia é esta gota de sangue que cai no vazio e se perde junto com o suor que eu destilo”, pensou, com um sorriso inexpressivo. E assim lhe parecia a vida que levava. Inexpressiva. Fugidia como o sangue que a água da torneira levava para o ralo.
Logo se deu conta de que não era a primeira manhã que ele se sentia invadido por aquela sensação de vazio que lhe vinha imediatamente com o contato entre a sola do pé e o chão. Sabia, no entanto, que aquele sentimento era bem recente. Começara na noite anterior. O toque no chão era a âncora que eliciava o estado interno de vacuidade que parecia agora ser a única coisa que existia dentro dele. Já não se reconhecia pela manhã, quando acordava. Olhava para a sua cara no espelho e o que via era a imagem de um sujeito inexpressivo, imitando todos os seus gestos. Parecia um holograma dele. A imagem de uma pessoa que fazia tudo igual ao que ele fazia, mas da qual fora retirada toda a energia vital.
Passou a mão pelo pequeno filete de sangue que escorria do seu queixo. Engraçado. Ele parecia não ter consistência alguma. Não tinha cor, nem temperatura, nem textura. Era como se ele caísse em gotas que pingavam eternamente.
O tempo. O que era o tempo, para ele? Era como uma régua que tinha marcas apenas no passado. Em cada ranhura feita nela havia um momento da sua presença, um registro de pensamento, uma notícia de atitude. Mais antigas, mais nítidas, mais recentes, mais difíceis de ler, mais próximas, quase imperceptíveis. Quando mais perto chegava de si mesmo, mais a régua se escondia numa bruma espessa e vazia de conteúdo. E quando ele tentava olhar o presente, o que sentia era uma espécie de buraco vazio, sem qualquer presença nem lembrança de espécie alguma, embora pudesse ver todas as coisas que estavam ali. Ali estavam, por exemplo, o retrato da família sob a penteadeira. Seus dois filhos sorrindo. Lúcia, com aquele vestido branco que ele tanto gostava. Ele, sem aqueles tufos grisalhos nos cabelos e aquela entrada na testa, que indicava uma futura calvície. Fotografia de uma família feliz.
Feliz? Como ter a sinestesia de um sentimento desse tipo quando o que se sente é só vazio? O espelho refletia o seu rosto, vago de expressão. O reflexo de Lúcia se virando na cama e procurando mecanicamente puxar o cobertor para cobrir os ombros, a água que saia da torneira e o aparelho de barbear que deslizava, mecanicamente sobre o seu rosto ligeiramente pálido, o celular de Lúcia, marcando 7:30 horas da manhã de 26 de janeiro de 2012 eram como um filme que ele assistia sem dele participar com a menor emoção.
Mas tudo aquilo, que estava presente nos seus olhos, ele sentia que ali estava como parte de um passado que vivera e não de tempo que estava vivendo. E estranhamente não conseguia pensar no futuro. Quando tentava projetar a consciência para frente, no tempo, e imaginar o que iria acontecer com ele dali há instantes, vinha aquele branco total. Não conseguia se imaginar tomando café dali há alguns minutos. Nem se via guiando seu carro pelas ruas apinhadas do Rio, em direção ao seu escritório na rua Treze de Maio.
Nada no futuro. No presente apenas a sensação de estar em um mundo que não sentia a sua presença. Tomara o café da manhã com a família, mas não sentira o sabor do pão com geléia de morango, que ele tanto gostava, nem o gosto da aveia com banana e mel, que ele comia diariamente, porque alguém lhe havia dito que fazia bem para os intestinos. Tentou conversar com Lúcia e as crianças, mas elas o olharam como se não o estivessem vendo, como se ele não estivesse ali. Havia muita tristeza no olhar deles. Gostaria de conversar com eles sobre isso, saber qual o motivo de estarem ostentando rostos tão tristes, mas parecia que elas não queriam falar sobre isso porque ninguém respondeu as perguntas que ele fez.
É. Decididamente o mundo ficara mesmo diferente desde a noite anterior. E aquele resto de dor, que ele ainda sentia no lado esquerdo da cabeça. Lembrava-se vagamente que ela já fora muito mais forte, dilacerante até, em algum momento antes, que ele não conseguia identificar quando foi. Mas era como se alguma coisa muito pesada tivesse caído sobre a sua cabeça, esmagando-a completamente. A dor, naquele momento, tinha sido lancinante. Mas durara poucos segundos. Depois fora se acalmando, arrefecendo, e agora só restava dela aquela sensação de uma ferida profunda que cicatrizara, mas que ainda guardava alguns resquícios da dor original.
Terminou o café, deu um beijo em Lúcia e nas crianças. Engraçado, mas elas pareciam não ter sentido nada. Não corresponderam ao seu carinho como se não o tivessem sentido. Não se lembrava de ter feito nada de ruim que justificasse aquela indiferença com que elas o estavam tratando. Mas agora não era hora de pensar nisso. Tinha muito trabalho para fazer.
Chegou ao escritório às nove horas, pontualmente, como fazia todos os dias. Estava vazio. Não estranhou, pois sempre fora o primeiro a chegar. Lá estavam todas as coisas que ele usava em seu trabalho. Na sua mesa, várias declarações de importação empilhadas, aguardando sua assinatura. Eram todas do dia anterior. Por que não as teria assinado?
Eram quase 9:30 horas da manhã e ninguém chegara. O escritório ainda estava vazio. Seria domingo? Estaria ele tão doente da memória que não se lembrava que era domingo e que nesse dia ninguém trabalhava?
Não conseguia se lembrar que dia era aquele. O celular mostrava a data de 26 de janeiro. Ele ligou o computador e abriu a tela em busca da sua agenda. Haveria compromissos a cumprir naquele dia? Não, a agenda não mostrava nenhum compromisso.
Foi então que ele viu a data indicada na tela do computador. Quarta-feira, vinte e cinco de janeiro de 2012. E a hora, 20:30. Estranho, o calendário, no computador, estava bem atrasado. Em dias e horas. Quando ele saíra de casa, há pouco mais de trinta minutos, pelas contas dele, (era o tempo que normalmente levava para vir da casa ao trabalho), eram exatamente 8:30 da manhã e o dia era 26 de janeiro e não vinte e cinco como marcava o computador. Olhou novamente no celular para confirmar. Era isso mesmo. O celular marcava 26 de Janeiro, e a hora 9:30 da manhã.
Mas não teve tempo para pensar no que estava acontecendo. Um estrondo ensurdecedor chamou a sua atenção. Ele sentiu a rajada quente do som invadindo os seus ouvidos. Era como se todo o prédio estivesse desabando. Não deu tempo para ver nada. Uma nuvem de poeira tomou imediatamente a sua sala por inteiro. Não deu nem tempo para tossir. Rapidamente, como num “flash”, uma luz imensa se acendeu na sua cabeça, como se um sol acabasse de explodir dentro dela. E a dor, horrível, lancinante, na nuca, como se ela acabasse de ser atingida por um torpedo que esmigalhava a sua cabeça, transformando-a numa massa informe de sangue pisado, tecidos rotos, ossos partidos e massa gelatinosa derramada, que se espalhava pelo chão, foi a única coisa que percebeu, num relance de momento.
Agora ele estava vendo. Era isso mesmo. O prédio inteiro ruíra. Um grande bloco de concreto caiu em cheio na sua cabeça, esmigalhando-a. Ele se viu soterrado, prensado no meio daqueles escombros. Sentia-se fluído como um gás, leve como uma bolha de sabão. Parecia que flutuava. A dor na cabeça ainda era terrível. Mas não sangrava mais.
Não tinha idéia de quanto tempo ficara desmaiado. Levantou-se sem nenhum problema, estranhando que nenhum osso do seu corpo estivesse quebrado. Sentia-se leve como uma pluma e viu que podia andar pelo meio daquela montanha de concreto, tijolos e ferros retorcidos em que se transformara o prédio onde trabalhava. Não viu mais ninguém no prédio. Ninguém pedindo socorro, nenhum corpo entre os escombros. Talvez fosse mesmo noite e ele o único bobão que ainda estaria ali naquela hora. Os outros já tinham ido para casa. Quem sabe não era o celular que estaria marcando o tempo errado?
Serpenteou através dos escombros, escorregadio como uma cobra, procurando uma saída para a rua. Achou o que era o resto de uma porta e saiu. Na rua, uma multidão de curiosos, com os olhos esbugalhados de espanto e os rostos contraídos pela surpresa se ajuntava, gritando e chorando, num caos que ele só vira antes na televisão, quando as torres gêmeas do Trade Center, em Nova Iorque, foram torpedeadas por dois jumbos pilotados por terroristas. Uma nuvem de poeira empesteava o ar. Sirenes de carros de polícia, bombeiros e ambulâncias provocavam um caos de sons, que no entanto, ele não conseguia ouvir. As vozes das pessoas também formavam uma algazarra monumental. Ele via suas bocas se moverem, podia entender o que diziam, mas não ouvia o som de suas vozes. Será que a laje que caíra em sua cabeça teria rompido seus tímpanos e ele ficara surdo?
O teria acontecido ali? Seria obra de terroristas também? Tentara, inutilmente, chamar a atenção das pessoas, mas parecia que ninguém o via. Pôs essa indiferença na conta do susto em que todos estavam tomados e nem se importou com o fato de as pessoas sequer se aborrecerem com os empurrões que ele lhe dava, tentando sair do meio daquela multidão.
Só então notou que não era apenas o som que havia sumido do mundo. Também não havia mais cores no ambiente. Era um mundo opaco, insípido, inodoro e totalmente silencioso. Sentia-se como se estivesse participando de um filme mudo, completamente descolorido, onde a imagem vai se esvanecendo aos poucos, como uma fotografia que o tempo vai apagando.
Lembrou-se que seu carro ficava num estacionamento na Rua Manoel de Carvalho. Correu para lá, pegou-o e dirigiu célere para casa. Precisava tranquilizar a família, que naquela altura já devia estar sabendo do acontecido.
Então tudo foi passando pela sua mente como num filme que alguém estivesse rebobinando. Viu o desespero de Lúcia e o choro incontido das crianças. O vai e vem de parentes e amigos, tentando consolá-los. Viu um corpo sendo retirado dos escombros, com a cabeça completamente esmagada. Viu depois o mesmo corpo deitado em uma maca, no Instituto Médico Legal e mais tarde em um caixão, com um pano cobrindo a sua cabeça. Viu várias coroas de flores encostadas na parede. Leu nomes de pessoas que ele conhecia. Parentes e amigos, e até nomes de gente que ele achava que eram seus desafetos. Viu Lúcia sendo abraçada e consolada pelas pessoas que entravam e saíam rapidamente da sala. Seu coração ficou apertado como se tivesse sido esmagado por uma morsa. Teve medo de olhar para dentro do caixão para ver quem era o defunto. Mas enfim olhou.
Foi então que ele finalmente entendeu o que havia ocorrido. E no momento em que essa consciência o atingia, como um raio que vinha de dentro da sua mente, uma luz intensa o envolveu. E com ela veio uma força irresistível que começou a tragá-lo, como se ele fosse uma mancha de poeira chupada por um potente aspirador. O peso insuportável do nada que ele era então se desvaneceu e ele sentiu-se, finalmente, livre para voar.
E da mais recôndita reentrância de sua mente veio aquela frase, que ele, até então, se recusara a pronunciar: “lembra-te que és pó e ao pó reverterás.”
“Requiescant in pace”, disse, para si mesmo. E desapareceu no vácuo, como uma estrela tragada por um buraco negro.
Já fazia algum tempo que ele estava se sentindo daquele jeito. Era um sentimento de leveza, de esvaziamento do eu, de fluidez etérea, que o acompanhara o dia inteiro, desde que acordara, pela manhã, até à noite, quando se deitara para dormir. Era engraçado, mas ele não se lembrava de haver dormido na noite anterior. Lembrava-se sim, que tivera sonhos, sonhos tão reais, que eram como se fossem verdadeiras ações realizadas na vida diária. Daí o porquê daquela sensação de estar mais cansado quando acordava do que quando se deitava.
Também não sentia nenhuma necessidade de dormir. Por ele teria ficado no escritório trabalhando até altas horas da madrugada e depois ainda teria feito amor com Lúcia, sua esposa, se não fosse a estranha atmosfera que havia se instalado entre eles desde há algum dias atrás. Era como se houvesse uma barreira entre os dois, impedindo o contato físico.
Mas ele não queria pensar naquilo agora. Outras coisas o preocupavam. Lembrava-se de que antes de ir para a cama havia tomado uma ducha e não conseguira identificar se estava quente ou fria. Tentara regular a temperatura do chuveiro, mas não adiantou muito. Talvez ele estivesse com algum defeito, ou então era a sua própria pele que não estava captando bem as informações sinestésicas referentes ao ambiente.
Aliás, se alguém lhe perguntasse agora se estava quente ou fria a temperatura do quarto ele não saberia dizer. No entanto devia estar muito frio, pois quando ele se deitou e tocou na pele macia de Lúcia, para ver se ela estava acordada e disposta ao jogo do amor, viu que ela estava dormindo, mas sua respiração exalava um bafejo que se transformava em uma nuvem fria, como se ela estivesse na rua, numa noite de pleno inverno glacial. “Nossa”, pensou ele, “ela deve estar com muito frio”. E então puxou sobre ela o grosso cobertor que estava enrolado aos pés da cama. E depois se deitou ao lado dela, sem se cobrir, por que não estava sentindo nem calor nem frio. Pensou em quão estranho era aquilo tudo, pois estava no Rio de Janeiro em pleno mês de janeiro.
Ele não se lembrava nem de ter dormido na noite anterior. Mas isso também não era relevante. Ninguém se lembra mesmo de ter dormido, pensou. Só do que sonha enquanto dorme. E ele sonhara com ele mesmo. Sonhou que era dono de uma empresa que prestava serviços na área de comércio exterior. Sua empresa, próspero escritório de despachos aduaneiros, ficava num edifício de vinte andares, ali na rua Treze de Maio, bem no centro nervoso do Rio de Janeiro, ao lado do imponente e belíssimo prédio do Teatro Municipal.
Ele estava nesse ramo de serviços há mais de trinta anos. Começara como office-boy de um antigo despachante, um velho “raposão” do cais, como eram conhecidos os antigos comissários de despachos alfandegários, e aprendera todas as manhas da profissão. Era capaz de identificar, só no olhar para as caixas, se a carga importada tinha problemas ou não. Sabia também quando dava para acertar com o fiscal “por fora”, ou quando não ia ter acordo. Conhecia todos que recebiam propina e quem não recebia. Sabia como tratar com uns e outros. A única regra a seguir era: o fiscal sempre tem razão. Com ele não se discute. Negocia-se ou não.
Vida danada aquela, a de despachante aduaneiro, trabalhando no Porto do Rio. Mas ele gostava dela e não conseguia ver a si mesmo fazendo outra coisa além de elaborar declarações de importação para os seus clientes, calcular fretes, tributos, taxas alfandegárias, fazer conversões cambiais e realizar pagamentos e transferências de dinheiro de uma conta para outra, de um banco para outro, como normalmente faz um despachante aduaneiro.
Só que aquilo que antes ele fazia na unha, agora tinha que fazer no computador, pela Internet. Estava ficando velho, mas aprendera a usar a maquininha. Também não tinha outro jeito. Se quisesse continuar no ramo teria que aprender a usar o computador, porque agora tudo era feito eletronicamente. O sistema usado pela alfândega só aceitava a declaração eletrônica e aquelas “massetadas” que ele e seus colegas despachantes usavam para mascarar algumas importações fraudulentas, agora eram todas analisadas por um sistema eletrônico que pegava, de cara, as classificações fiscais erradas, a incorreta descrição de mercadoria, a falsa declaração de conteúdo ou qualquer outra malandragem que se fizesse na declaração.
Despachante aduaneiro era malandro por profissão. Essa era a crença geral que rolava pelo porto. Por isso ele não gostava do termo. Preferia o rótulo de técnico em comércio exterior, que era o título do diploma que recebera no curso que fizera na faculdade.
Sim. Sonhara com tudo isso na noite anterior, disso se lembrava bem. Era como se um longo filme tivesse sido rodado em sua cabeça, com todos esses detalhes. Toda a sua vida profissional fora contada no sonho, desde o tempo em que sua principal tarefa era despachar partidas de azeitonas importadas no armazém do cais do porto. Antes de o fiscal da alfândega fazer a conferência aduaneira, ele retirava a metade inferior das azeitonas dos barris e completava seu peso com pedregulhos, para enganar os fiscais. O produto roubado era vendido por fora, sem o pagamento dos impostos. Ganhara uma nota preta com isso até o dia em que a tramóia foi descoberta e o escritório de despachos onde trabalhava teve sua licença cassada. Mas ele se empregou em outro escritório e continuou no ramo até conseguir a própria licença.
No seu sonho Lúcia, sua esposa, também esteve presente. Relembrava alguns instantâneos da sua vida com ela. De quando se conheceram, o registro do primeiro beijo, a primeira vez que fizeram amor, o nascimento do primeiro filho e também do segundo. Nessa viagem onírica contemplou também alguns “flashs” de cenas domésticas. Como daquela vez que eles brigaram por causa de um telefonema que ele recebeu da sua secretária às três horas da manhã. Ele agora sorria se lembrando daquele acontecimento, mas na época não fora nada fácil explicar para a esposa porque a secretária lhe telefonara naquela hora da noite para “falar de serviço”. “Não dava para esperar até de manhã?”, perguntou ela, desconfiada. A coisa nunca foi bem explicada, mas como não se repetiu, Lúcia abandonou o caso e tudo ficou por isso mesmo. Ela nunca teve certeza se ele teve um caso com a guria, e ele também nunca se entregou.
Ficou a eterna desconfiança de quem perdoa, porque não tem certeza do que aconteceu, mas nunca esquece, justamente porque a dúvida não permite.
Mas agora, sentado na cama, olhando Lúcia que dormia pesadamente, bafejando um ar frio como se estivesse dormindo numa casa sem aquecimento em Moscou, em pleno inverno, e não no verão do Rio de Janeiro, ele sentia como se tudo aquilo tivesse acontecido numa outra vida.
Sentia-se vazio e atemporal. Não havia em sua mente medida de tempo nem de espaço. Puxou pela memória tentando lembrar que dia era aquele, se era dia de trabalho ou fim de semana, em que dia do mês estavam, em que ano, e não conseguia se lembrar. Ficou com medo. “Será que estou ficando com Alzhaimer?” perguntou a si mesmo. Mas não, não podia ser. Não tinha idade para tanto, embora idade não regulasse para essas coisas. Alzhaimer costuma apagar as memórias mais próximas e conservar as mais antigas. Se fosse, ele não se lembraria das últimas discussões com os fiscais da alfândega quando estes impugnavam os seus despachos; não se lembraria da bola que batia aos domingos com os colegas no clube; não se lembraria das festinhas dos aniversários dos filhos; não se lembraria do prazer que sentia quando fazia amor com Lúcia. Não se lembraria de Cíntia, a secretária maluca que telefonara para sua casa às três horas da manhã, bêbada, para dizer que se ele a abandonasse iria contar tudo para a mulher dele...
Ainda assim era estranho. Porque as memórias vinham mais nítidas quanto mais antigas eram. Podia recitar de cor e salteado a escalação do time do Flamengo que ganhara o título mundial de 1981, quando ele tinha cerca de dez anos e acompanhava o pai no seu fanatismo pelo clube. Era capaz de ver, como se estivesse acontecendo agora, o Júnior cobrando escanteios para o Nunes subir de cabeça e fazer o gol. Via o Zico, com seus dribles infernais, entortando os zagueiros adversários. Via o goleiro Raul pulando como um gato para buscar uma bola colocada lá na forquilha.
Mas logo voltou a preocupar-se porque não conseguia se lembrar do nome do goleiro atual do Flamengo. Nem qual fora o último jogo ao qual assistira. Pensando bem, não conseguia se lembrar nem do que comera no jantar. Mas se lembrava nitidamente do angú com carne que sua avó fazia. E dos doces que comia nas quermesses da igreja, nos dias da sua infância em São João do Meriti. Decididamente, acordara naquela manhã com a memória bem bagunçada.
Ao colocar o pé no chão do quarto não sentiu a textura do tapete que ficava no pé da cama. Passou pela sua cabeça que não era a primeira vez que isso acontecia. Era algo que já vinha de algum tempo, uns dois ou três dias, talvez. Perdera a noção de tempo como perdera a sensibilidade sinestésica.
O que seria isso? Hanseniase, talvez? Lembrou-se que lera em algum lugar que os hansenianos podem perder a sensibilidade cutânea. Que ficam sem tato, não sentem a temperatura ambiente, nem dores nos lugares atingidos pela doença. Concluiu que teria que procurar um médico para ver o que estava acontecendo com ele.
Lembrou-se que aquele sentimento de descolamento do mundo real era algo que já vinha acontecendo desde há alguns dias atrás. Sentiu-o pela primeira vez no momento em que colocou, mecanicamente, o pé direito no chão do quarto e murmurou aquelas palavras que sua avó lhe ensinara nos anos em que morou com ela: “Deus me dê um bom dia.” Era um ritual, no qual ele acreditava, por isso o praticava desde criança. Nunca se levantava com o pé esquerdo, nem deixava de invocar a senha que a avó lhe ensinara. Agora já não tinha muita certeza se isso dava certo ou não, mas o rito havia se tornado um hábito e ele o incorporara em seu comportamento de uma forma tal, que se não o fizesse sentiria que alguma coisa estava faltando. Seria como deixar de escovar os dentes ou tomar aquela ducha pela manhã. Comportamentos absolutamente imprescindíveis, embora a sensação física de fazer essas coisas e sentir prazer em fazê-las também já não estivesse sendo detectado pelo seu sistema neurológico.
Também não sabia distinguir mais quando tivera um dia bom ou um dia ruim. Nem quando um dia terminava e começava outro. Lembrou-se que, desde que tivera esse sentimento, as coisas que fazia, e as que lhe acontecia já não tinham mais a capacidade de excitá-lo a ponto de se sentir feliz ou infeliz. Era como se estivessem acontecendo com outra pessoa. Frente ao espelho, escanhoando a face com o aparelho de barbear, um pequenino filete de sangue começou a escorrer pelo queixo. Teve uma vaga impressão de que isso já havia ocorrido centenas de vezes antes. Mas não doía mais.
“Todo dia é esta gota de sangue que cai no vazio e se perde junto com o suor que eu destilo”, pensou, com um sorriso inexpressivo. E assim lhe parecia a vida que levava. Inexpressiva. Fugidia como o sangue que a água da torneira levava para o ralo.
Logo se deu conta de que não era a primeira manhã que ele se sentia invadido por aquela sensação de vazio que lhe vinha imediatamente com o contato entre a sola do pé e o chão. Sabia, no entanto, que aquele sentimento era bem recente. Começara na noite anterior. O toque no chão era a âncora que eliciava o estado interno de vacuidade que parecia agora ser a única coisa que existia dentro dele. Já não se reconhecia pela manhã, quando acordava. Olhava para a sua cara no espelho e o que via era a imagem de um sujeito inexpressivo, imitando todos os seus gestos. Parecia um holograma dele. A imagem de uma pessoa que fazia tudo igual ao que ele fazia, mas da qual fora retirada toda a energia vital.
Passou a mão pelo pequeno filete de sangue que escorria do seu queixo. Engraçado. Ele parecia não ter consistência alguma. Não tinha cor, nem temperatura, nem textura. Era como se ele caísse em gotas que pingavam eternamente.
O tempo. O que era o tempo, para ele? Era como uma régua que tinha marcas apenas no passado. Em cada ranhura feita nela havia um momento da sua presença, um registro de pensamento, uma notícia de atitude. Mais antigas, mais nítidas, mais recentes, mais difíceis de ler, mais próximas, quase imperceptíveis. Quando mais perto chegava de si mesmo, mais a régua se escondia numa bruma espessa e vazia de conteúdo. E quando ele tentava olhar o presente, o que sentia era uma espécie de buraco vazio, sem qualquer presença nem lembrança de espécie alguma, embora pudesse ver todas as coisas que estavam ali. Ali estavam, por exemplo, o retrato da família sob a penteadeira. Seus dois filhos sorrindo. Lúcia, com aquele vestido branco que ele tanto gostava. Ele, sem aqueles tufos grisalhos nos cabelos e aquela entrada na testa, que indicava uma futura calvície. Fotografia de uma família feliz.
Feliz? Como ter a sinestesia de um sentimento desse tipo quando o que se sente é só vazio? O espelho refletia o seu rosto, vago de expressão. O reflexo de Lúcia se virando na cama e procurando mecanicamente puxar o cobertor para cobrir os ombros, a água que saia da torneira e o aparelho de barbear que deslizava, mecanicamente sobre o seu rosto ligeiramente pálido, o celular de Lúcia, marcando 7:30 horas da manhã de 26 de janeiro de 2012 eram como um filme que ele assistia sem dele participar com a menor emoção.
Mas tudo aquilo, que estava presente nos seus olhos, ele sentia que ali estava como parte de um passado que vivera e não de tempo que estava vivendo. E estranhamente não conseguia pensar no futuro. Quando tentava projetar a consciência para frente, no tempo, e imaginar o que iria acontecer com ele dali há instantes, vinha aquele branco total. Não conseguia se imaginar tomando café dali há alguns minutos. Nem se via guiando seu carro pelas ruas apinhadas do Rio, em direção ao seu escritório na rua Treze de Maio.
Nada no futuro. No presente apenas a sensação de estar em um mundo que não sentia a sua presença. Tomara o café da manhã com a família, mas não sentira o sabor do pão com geléia de morango, que ele tanto gostava, nem o gosto da aveia com banana e mel, que ele comia diariamente, porque alguém lhe havia dito que fazia bem para os intestinos. Tentou conversar com Lúcia e as crianças, mas elas o olharam como se não o estivessem vendo, como se ele não estivesse ali. Havia muita tristeza no olhar deles. Gostaria de conversar com eles sobre isso, saber qual o motivo de estarem ostentando rostos tão tristes, mas parecia que elas não queriam falar sobre isso porque ninguém respondeu as perguntas que ele fez.
É. Decididamente o mundo ficara mesmo diferente desde a noite anterior. E aquele resto de dor, que ele ainda sentia no lado esquerdo da cabeça. Lembrava-se vagamente que ela já fora muito mais forte, dilacerante até, em algum momento antes, que ele não conseguia identificar quando foi. Mas era como se alguma coisa muito pesada tivesse caído sobre a sua cabeça, esmagando-a completamente. A dor, naquele momento, tinha sido lancinante. Mas durara poucos segundos. Depois fora se acalmando, arrefecendo, e agora só restava dela aquela sensação de uma ferida profunda que cicatrizara, mas que ainda guardava alguns resquícios da dor original.
Terminou o café, deu um beijo em Lúcia e nas crianças. Engraçado, mas elas pareciam não ter sentido nada. Não corresponderam ao seu carinho como se não o tivessem sentido. Não se lembrava de ter feito nada de ruim que justificasse aquela indiferença com que elas o estavam tratando. Mas agora não era hora de pensar nisso. Tinha muito trabalho para fazer.
Chegou ao escritório às nove horas, pontualmente, como fazia todos os dias. Estava vazio. Não estranhou, pois sempre fora o primeiro a chegar. Lá estavam todas as coisas que ele usava em seu trabalho. Na sua mesa, várias declarações de importação empilhadas, aguardando sua assinatura. Eram todas do dia anterior. Por que não as teria assinado?
Eram quase 9:30 horas da manhã e ninguém chegara. O escritório ainda estava vazio. Seria domingo? Estaria ele tão doente da memória que não se lembrava que era domingo e que nesse dia ninguém trabalhava?
Não conseguia se lembrar que dia era aquele. O celular mostrava a data de 26 de janeiro. Ele ligou o computador e abriu a tela em busca da sua agenda. Haveria compromissos a cumprir naquele dia? Não, a agenda não mostrava nenhum compromisso.
Foi então que ele viu a data indicada na tela do computador. Quarta-feira, vinte e cinco de janeiro de 2012. E a hora, 20:30. Estranho, o calendário, no computador, estava bem atrasado. Em dias e horas. Quando ele saíra de casa, há pouco mais de trinta minutos, pelas contas dele, (era o tempo que normalmente levava para vir da casa ao trabalho), eram exatamente 8:30 da manhã e o dia era 26 de janeiro e não vinte e cinco como marcava o computador. Olhou novamente no celular para confirmar. Era isso mesmo. O celular marcava 26 de Janeiro, e a hora 9:30 da manhã.
Mas não teve tempo para pensar no que estava acontecendo. Um estrondo ensurdecedor chamou a sua atenção. Ele sentiu a rajada quente do som invadindo os seus ouvidos. Era como se todo o prédio estivesse desabando. Não deu tempo para ver nada. Uma nuvem de poeira tomou imediatamente a sua sala por inteiro. Não deu nem tempo para tossir. Rapidamente, como num “flash”, uma luz imensa se acendeu na sua cabeça, como se um sol acabasse de explodir dentro dela. E a dor, horrível, lancinante, na nuca, como se ela acabasse de ser atingida por um torpedo que esmigalhava a sua cabeça, transformando-a numa massa informe de sangue pisado, tecidos rotos, ossos partidos e massa gelatinosa derramada, que se espalhava pelo chão, foi a única coisa que percebeu, num relance de momento.
Agora ele estava vendo. Era isso mesmo. O prédio inteiro ruíra. Um grande bloco de concreto caiu em cheio na sua cabeça, esmigalhando-a. Ele se viu soterrado, prensado no meio daqueles escombros. Sentia-se fluído como um gás, leve como uma bolha de sabão. Parecia que flutuava. A dor na cabeça ainda era terrível. Mas não sangrava mais.
Não tinha idéia de quanto tempo ficara desmaiado. Levantou-se sem nenhum problema, estranhando que nenhum osso do seu corpo estivesse quebrado. Sentia-se leve como uma pluma e viu que podia andar pelo meio daquela montanha de concreto, tijolos e ferros retorcidos em que se transformara o prédio onde trabalhava. Não viu mais ninguém no prédio. Ninguém pedindo socorro, nenhum corpo entre os escombros. Talvez fosse mesmo noite e ele o único bobão que ainda estaria ali naquela hora. Os outros já tinham ido para casa. Quem sabe não era o celular que estaria marcando o tempo errado?
Serpenteou através dos escombros, escorregadio como uma cobra, procurando uma saída para a rua. Achou o que era o resto de uma porta e saiu. Na rua, uma multidão de curiosos, com os olhos esbugalhados de espanto e os rostos contraídos pela surpresa se ajuntava, gritando e chorando, num caos que ele só vira antes na televisão, quando as torres gêmeas do Trade Center, em Nova Iorque, foram torpedeadas por dois jumbos pilotados por terroristas. Uma nuvem de poeira empesteava o ar. Sirenes de carros de polícia, bombeiros e ambulâncias provocavam um caos de sons, que no entanto, ele não conseguia ouvir. As vozes das pessoas também formavam uma algazarra monumental. Ele via suas bocas se moverem, podia entender o que diziam, mas não ouvia o som de suas vozes. Será que a laje que caíra em sua cabeça teria rompido seus tímpanos e ele ficara surdo?
O teria acontecido ali? Seria obra de terroristas também? Tentara, inutilmente, chamar a atenção das pessoas, mas parecia que ninguém o via. Pôs essa indiferença na conta do susto em que todos estavam tomados e nem se importou com o fato de as pessoas sequer se aborrecerem com os empurrões que ele lhe dava, tentando sair do meio daquela multidão.
Só então notou que não era apenas o som que havia sumido do mundo. Também não havia mais cores no ambiente. Era um mundo opaco, insípido, inodoro e totalmente silencioso. Sentia-se como se estivesse participando de um filme mudo, completamente descolorido, onde a imagem vai se esvanecendo aos poucos, como uma fotografia que o tempo vai apagando.
Lembrou-se que seu carro ficava num estacionamento na Rua Manoel de Carvalho. Correu para lá, pegou-o e dirigiu célere para casa. Precisava tranquilizar a família, que naquela altura já devia estar sabendo do acontecido.
Então tudo foi passando pela sua mente como num filme que alguém estivesse rebobinando. Viu o desespero de Lúcia e o choro incontido das crianças. O vai e vem de parentes e amigos, tentando consolá-los. Viu um corpo sendo retirado dos escombros, com a cabeça completamente esmagada. Viu depois o mesmo corpo deitado em uma maca, no Instituto Médico Legal e mais tarde em um caixão, com um pano cobrindo a sua cabeça. Viu várias coroas de flores encostadas na parede. Leu nomes de pessoas que ele conhecia. Parentes e amigos, e até nomes de gente que ele achava que eram seus desafetos. Viu Lúcia sendo abraçada e consolada pelas pessoas que entravam e saíam rapidamente da sala. Seu coração ficou apertado como se tivesse sido esmagado por uma morsa. Teve medo de olhar para dentro do caixão para ver quem era o defunto. Mas enfim olhou.
Foi então que ele finalmente entendeu o que havia ocorrido. E no momento em que essa consciência o atingia, como um raio que vinha de dentro da sua mente, uma luz intensa o envolveu. E com ela veio uma força irresistível que começou a tragá-lo, como se ele fosse uma mancha de poeira chupada por um potente aspirador. O peso insuportável do nada que ele era então se desvaneceu e ele sentiu-se, finalmente, livre para voar.
E da mais recôndita reentrância de sua mente veio aquela frase, que ele, até então, se recusara a pronunciar: “lembra-te que és pó e ao pó reverterás.”
“Requiescant in pace”, disse, para si mesmo. E desapareceu no vácuo, como uma estrela tragada por um buraco negro.