A MALDIÇÃO DO LOBO

A MALDIÇÃO DO LOBO.

(Nota do autor: Esse é o primeiro conto que escrevi quando me acidentei em Dezembro de 2019. Tive que fazer uma série de correções no texto, evidenciando o meu atual progresso na escrita. Espero ter melhorado o enredo e que, apesar de looongo, o leitor possa ter paciência em chegar ao final e se divertir. Muito obrigado!)

Elizabeth sonha. Com sua mente cada vez mais fraca ante a chegada do sono, ela se vê sendo jogada de novo no manto onírico das lembranças de uma realidade diferente, num país estrangeiro, mas familiar. Nos recônditos de sua mente, ela se lembra então de uma outra vida, um outro país, uma outra pessoa. Teriam se passado séculos? Disso ela não se lembra direito. Mas as imagens no sonho começam a vir mais claras em seu cérebro, trazendo-lhe a recordação de que, muito tempo atrás, ela andava por uma floresta, vestindo seu capuz vermelho, surrado, velho e carcomido, indo à casa de sua vovó Anushka. Levava guloseimas que sua madrasta adorável havia preparado com tanto carinho. As duas se davam muito bem naqueles dias e como era aniversário de vovó Anushka, sua nova mãe, Masala, achou melhor fazê-la levar alguns presentes e quitutes que sua avó adorava.

Ela estava sempre vestida com aquele capuz vermelho e andava com ele pra todo lado. Na escola. Em casa. E quando brincava com as coleguinhas, que raramente vinham de outras fazendas vizinhas, elas sempre a chamavam de “A Garota do Capuz Vermelho”, devido ao formato engraçado de seu capuz cor de sangue e que ainda permanecia intensa, mesmo com o passar do tempo. Afinal, ventava e chovia muito em Mawsynram, Meghalaya, Índia. Assim, ela sempre estava preparada.

Ela travessou uma ponte pênsil, feita de raízes entrelaçadas da árvore Ficus Elástica, uma árvore tropical que era mais conhecida popularmente na época como Seringueira podendo alcançar até 60 metros de altura. Conforme suas lembranças vinham à memória, tais pontes levavam cerca de quinze anos para ficarem prontas até suas raízes crescerem e serem usadas nas pontes. Chove muito em Meghalaya. Praticamente quase todos os dias do ano chove na província indiana e construir pontes com madeiras comuns estava fora de cogitação. A solução foi usar as raízes das próprias árvores que ainda estão crescendo, uma vez que são seres vivos. Verdadeiras “pontes vivas” ainda crescendo e aumentando de tamanho.

Atravessando a ponte de raízes, assim que chegava no meio dela já dava pra avistar a pequena choupana de sua avó. Tratava-se de uma construção bem simples com telhado de palha que caia até quase o chão. Distraída com a paisagem idílica e surreal da natureza verde ao seu redor, coisa que fazia com frequência, a menina não percebeu de imediato a estranha fumaça negra que escapava do telhado triangular da choupana de cor âmbar.

De repente, um grito agudo vindo de dentro da choupana, tirou a menina de seu torpor meditativo, gelando seus cabelos ante o horror de ver sua avozinha, tão adorada, ser atirada ao chão por um monstro peludo de quatro patas que a sacudia brutalmente com ferocidade e com rosnados de ódio. O enorme lobo, inclemente, parecia não se importar com os gritos de sua avó Anushka!

Correndo em direção da tragédia, esquecendo do perigo que pairava sobre si mesma, gritou com o lobo desesperadamente o mais alto que pôde, balançando a cesta de guloseimas para tentar afugentar a criatura furiosa, que largou sua avó e a encarou com olhos injetados de sangue. Novamente o frio gélido ante a súbita constatação do perigo que corria, a fez disparar de volta para a ponte, o mais rápido que suas pequenas pernas o permitiam.

Maya, a “A Garota do Capuz Vermelho”, corria por sua vida! E, horrorizada, percebeu que o lobo já a aguardava bem no meio da ponte, a encarando com os caninos à mostra e rosnados de fúria. Estacando em meio ao terror do medo da morte, uma luz no fim do túnel de seu cérebro a fez lembrar dos quitutes que carregava consigo. Com calma, lentamente, enfiou a mão pela portinholinha da cesta de bambu e retirou um pedaço de frango tandooli que atirou à frente da criatura. A princípio, o lobo a encarou desconfiado e quase avançou sobre ela. Mas aos poucos, o cheiro delicioso do tandooli, fez o animal titubear e se aproximar do quitute, e, quando ia dar a primeira mordida, o barulho de explosão de espingarda reverberou pela floresta e um projétil atingiu o lobo feroz, que soltando gritos agudos, cambaleou alguns metros, indo cair por sobre a ponte.

Surpresa e assustada ante a inesperada situação, com o coração batendo descompassado, olhou para a sua direita e viu um homem grande, feio e de barbas longas e sujas sair de trás das moitas próximas à ponte, dando gritos de satisfação ante a caça bem sucedida. Estacando ante o lobo dormente, soltou outro grito satisfeito e esticando os braços para cima, começou a cantar alegremente uma canção de caçador. Ela sabia ser uma das canções de caçador por já ter ouvido as pessoas cantarem na vila e também por ter ouvido os amigos de seu pai cantarolando a mesma canção.

- Finalmente! Lobo desgraçado! – dando um pequeno chute no corpo do animal e cuspindo na testa peluda do mesmo, o caçador prosseguiu – Já faz muito tempo que venho tentando pegar esse bicho nojento, mas todas as vezes ele sempre me escapava. Mas agora te peguei, desgraçado! – gritando as últimas palavras e soltando outro urro de satisfação, esqueceu momentaneamente da menininha que estava ao seu lado.

- Vovó! Não! Vovó Anushka! Oh! Meu Ganesha, não! – ela já havia corrido em direção à choupana e chorando ante o cadáver dilacerado da avó, que ainda usava o vestido de cetim e o xale que ela tanto adorava, agora mergulhados em um mar de carne e sangue, Maya gemia desesperada pela dor da perda – Se eu tivesse chegado um pouco antes poderia tê-la ajudado. Talvez conseguiria espantar o lobo com a garrucha do vovô. Oh! Meu Ganesha!

- Eu sinto muito, criança. – disse o caçador colocando gentilmente a mão pesada e calejada por sobre o ombro esquerdo de Maya, visivelmente penalizado ante o sofrimento da jovem – Não se culpe por não estar aqui. Se estivesse, acredite, você não teria chance de fazer coisa alguma. E me desculpe pelo mau jeito. Fiquei tão contente com a caçada que não me dei conta de que havia uma senhora morta aqui. E nem poderia imaginar se tratar de sua avó, menina. Sinto muito!

- Porquê? Porquê esse lobo atacou minha avó desse jeito? – perguntou com lágrimas escorrendo dos olhos – Foi tudo muito rápido mas quando cheguei a ver o que ocorria, deu pra perceber que ele a havia atacado dentro de casa. Lobos fazem isso? – agora que a menina tinha uma expressão de dúvida misturada ao semblante de tristeza em seu rosto, o caçador notou que ela parecia alguns anos mais velha do que ele havia pensado a princípio.

- Não, criança. Esse não é um lobo comum. Essa criatura já matou mais de cem pessoas!. Pelo menos segundo os boatos das vilas por onde andei. Me disseram isso na taberna do Havi, próxima a aldeia de Mawsynram. – esticou um pouco o corpanzil de quase dois metros de altura dando um suspiro de cansaço e prosseguiu – Esse lobo é o maior que já vi em toda a minha vida, e olha que já vi muita coisa por aí. E de acordo com os boatos, ele também é mais inteligente que a maioria desses cachorros do mato. Dizem que ele sempre é visto em noites de Lua cheia e nunca em outras noites, mas, como você bem pode ver estamos em pleno dia e mesmo assim esse desgraçado fez mais uma vítima.

Ela ia dizer algo quando notou, com o canto do olho esquerdo, uma sombra humanoide se levantando lentamente bem por detrás do caçador e, soltando um grito de alerta e horror, ficou em choque ante a constatação de que o lobo agora assumira uma forma humanoide horrenda que, num relâmpago de fúria, cortou o pescoço do seu novo amigo abrutalhado , fazendo esguichar grande quantidade de sangue em várias direções! O coitado nem teve tempo de reagir!

Muda e trêmula ante o desespero e à percepção de que seria a próxima vítima, começou instintivamente a se arrastar de quatro o mais rápido que podia para dentro da choupana da sua avó, inutilmente tentando achar algum lugar onde pudesse se esconder. A única coisa que ela conseguiu pensar e que superou o próprio medo, foi a lembrança da garrucha de seu avô Manu, que ficava bem em cima do armário da cozinha ao lado do fogão a lenha, que tantos quitutes maravilhosos sua avó sempre preparava com muito carinho.

Mas a criatura disforme, meio homem meio lobo, lançou o focinho pra cima num uivo estridente e, ao mesmo tempo em que erguia suas garras ensanguentadas, saltou para dentro da janela da choupana feita de vidro e madeira, que se partiram num estardalhaço de cacos cortantes e ainda sujos com o sangue do caçador e de sua bondosa avó.

Ante a entrada da furiosa criatura, ela se pôs de pé e correu na direção do armário, subindo sofregamente em cima da cadeira e logo depois pulando pra cima da mesa feita de madeira maciça, alcançou o topo do armário, onde meteu a mão e retirou o objeto metálico que poderia representar seu único meio de salvação. Seu avô sempre deixava a arma com munição, pois dizia que não haveria muito tempo para carrega-la, caso houvesse uma emergência.

Mas, ao virar-se para apontar a arma e atirar na maldita besta, deu de cara com o focinho e a bocarra de dentes afiados do lobo que, agora que tinha assumido uma forma humanoide, tinha se tornado ainda mais bestial. Ele a encarava apenas a alguns centímetros de distância, fazendo-a sentir o mau cheiro horroroso do bafo que a criatura exalava no seu rosto e que movimentava seus cabelos devido à sua respiração tremendamente forte. Num lance de loucura, lhe veio a mente que, quando a criatura ainda tinha corpo apenas de lobo, ia atacá-la, mas estacou ante o cheiro do frango tandooli, dando-lhe agora a ideia louca de repetir a mesma tática. Apoiando uma das mãos na parte de trás do corpo e, aproveitando a hesitação prolongada da criatura, esticou lentamente o braço direito em direção à panela de barro que, pelo cheiro delicioso que emanava da vasilha, sabia se tratar do famoso guisado de coelho selvagem de sua avó, que era conhecido por todos no povoado.

Sem tirar os olhos da cara do agora homem-lobo, destampou lentamente a panela e retirou com as mãos um bom pedaço suculento de coelho e o levou lentamente à sua frente, fazendo um leve gesto de oferenda para a criatura dantesca, colocando-o, por fim, na beirada da mesa bem próxima do homem-lobo. Ele a acompanhou atentamente durante todo o processo, com as garras preparadas para matá-la. E, num gesto rapidíssimo e inesperado, bateu com as costas da mão esquerda no rosto da “Garota do Capuz Vermelho”, atirando-a a um metro de distância e avançando para a carne de coelho, devorando sofregamente os pedaços da carne cozida.

Ela se levantou gemendo de dor, percebendo que deveria ter quebrado alguma coisa em suas costas e, soltando algumas lágrimas, conseguiu, lentamente, assentar no assoalho de madeira. E olhando á sua direita com o canto dos olhos, percebeu a garrucha velha de seu avô a uns três metros de distância, mas não tinha certeza se conseguiria alcançá-la antes do homem-lobo. Assustada, colocou as mãos na frente do rosto, quando a criatura numa velocidade furiosa, derrubou a panela de barro, derramando todo o guisado no assoalho e saltando pra cima da comida, passou a devorar com extrema gulodice o guisado de coelho que sua avó deveria ter preparado com tanto amor e carinho.

Aproveitando a distração do inimigo, se arrastou o mais rápido que pôde em direção à garrucha, tentando não fazer muito estardalhaço, mas, quando já havia avançado uns dois metros, ouviu uma voz rouca e sobrenatural atrás dela:

-Pode pegar sua arma. Não vai adiantar nada!

Um soco gélido de medo parecia esmagar seu estômago ante a percepção de que aquela voz vinha da criatura sobrenatural, cujo som rouco e medonho a fez tremer dos pés à cabeça! Olhando para ele com os olhos arregalados e injetados de sangue pela adrenalina dos últimos acontecimentos, percebeu que ele havia assumido uma forma um pouco mais humana, não sendo tão animalesca quanto antes. Criando coragem, respirando o mais profundamente que conseguiu, decidiu arriscar a dirigir a palavra ao monstro.

- Você fala? – disse num misto de incredulidade e terror – Consegue me entender também?

- Sim! – respondeu o homem-lobo – Por um breve momento consigo entende-la perfeitamente e até falar contigo. Quando me alimento, seja de sangue, de carne crua ou cozida, a maldição enfraquece e a mente do homem pode prevalecer por breves instantes.

- Sangue de Ganesha! – exclamou ela espantada.

- Nunca provei. Deve ser bom. – a criatura lobo riu e seu riso soou como uma cascata sobrenatural de um som grave e horripilante.

Ela pensava agora, com uma certa esperança, e de forma febril, numa maneira de escapar daquela situação. Ela parecia apenas uma menininha do campo sem muita instrução, mas seus avós e agora mais recentemente, sua madrasta, ensinaram –na a ler e escrever. E a leitura se tornou um vício na vida de Maya, a filha mais nova de camponeses indianos do século 19. Teve então a ideia de tentar distrair a criatura o mais que pudesse, para ganhar tempo, até que conseguisse pegar novamente a arma que acreditava ser a sua única salvação. Então, a única coisa que pensou em perguntar na atual circunstância foi:

-Nossa! Você tem olhos muito grandes e vermelhos, não? – se arrastando lentamente em direção à arma, a jovem menina tentava colocar seu ingênuo plano em prática.

- Meus olhos são adaptados para enxergar perfeitamente na mais profunda escuridão. À noite enxergo melhor que de dia.

-Entendi – disse a menina, indo lentamente em direção à arma – e tem um focinho e uma boca muito lindos também. Além disso, você parecia com muita fome. Já devorou todo o guisado.

- Faz tempo que estou nesta situação, criança. – disse o lobo, terminando de lamber as patas sujas do caldo gorduroso do guisado – E sei muito bem quando tentam me distrair. – levantou-se de um salto, assustando a menina que caiu pra trás, indo parar bem perto da garrucha salvadora. – Vá em frente! Pegue a arma e atire! – gritou o homem-lobo com sua voz gravíssima e sobrenatural – Só vai me deixar ainda mais furioso. E quanto mais furioso fico, mais bestial me torno. Então, farei com você o mesmo que fiz com sua avó e com aquele caçador estúpido. – deu um passo em direção à Maya que, num ímpeto de bravura e determinação, pulou na direção da arma e apontou para o homem-lobo numa atitude o mais ameaçadora que conseguiu.

- Não se aproxime mais! Vou puxar o gatilho! Eu juro! Não tô brincando! – a gargalhada do homem-lobo fez estremecer as paredes frágeis da pequena choupana.

-Eu já te disse. - falou o homem-lobo - Vá em frente! Atire bem na minha cabeça. E não erre! Você só terá uma chance. A maldição me obriga a ser como sou. É mais forte do que eu. Já faz séculos que tento me matar para me livrar desse sofrimento. Acha que não tentei? – esbravejou choramingando de ódio – Em breves momentos de lucidez como esse eu já tentei de tudo. Me esfaqueei! Atirei em minha própria cabeça! Me joguei de grandes penhascos. Nada resolveu! Sempre ressuscito!

A garota então atira! Mas erra! O tiro passou zunindo perto do ouvido direito da criatura, indo espatifar a caixa de porcelanas que sua avó guardava em cima do armário de madeira e atingiu a cerâmica onde ficavam os talheres de prata. A criatura soltou um grito assustado quando viu o brilho dos talheres de prata e, pela primeira vez em muitos anos, sentiu medo! Essa distração momentânea foi o suficiente para a menina ter tempo de recarregar a arma de seu avô e atirar novamente. Desta vez o tiro acertou em cheio o peito de criatura que percebeu, surpreendida , que desta vez a vida se esvaia de si. Cambaleou pra frente e seu enorme corpanzil desabou em cima da garota.

Mas ao cair em cima dela, o homem lobo teve ainda força para fincar uma de suas garras na perna direita da garotinha que gritou de dor. Tentando, com muito esforço, empurrar o corpanzil peludo e fedorento para longe de si, a muito custo, a “Garota do Capuz Vermelho” conseguiu sair de baixo daquela montanha de pelos e se pôr de pé, ofegante.

- Agradeço ao meu amado Ganesha por meu avozinho Manu ter me ensinado a usar isso, mesmo contra minha vontade. – disse a garota aliviada e ao mesmo tempo, exausta, pelas emoções da aventura horripilante que acabara de vivenciar. Olhando a munição que ainda restava na garrucha, percebeu que havia outras balas na arma. Mais tarde, ficou sabendo pelo seu pai e madrasta que eram balas feitas de prata.

Elizabeth acorda suando frio! – Graças a Deus! Era só um pesadelo! – falou para si mesma, pois notou que estava sozinha no quarto. Seu marido deveria ter saído a algum tempo. Talvez para preparar o desjejum da manhã.

Ao pensar em café da manhã, seu estômago parecia se revoltar violentamente ante essa lembrança, quase lhe provocando um vômito espontâneo. –“Como pode isso?” – pensou apavorada – “-Ainda me lembro perfeitamente do sonho. Sinto até os cheiros da floresta, a umidade do clima do lugar e até me lembro perfeitamente da choupana da vovó e do caminho que sempre fazia através da ponte de raízes. Foi como se não tivesse sido apenas um pesadelo, mas algo real.” – pensando assim meio confusa ante a força do pesadelo que lhe imprimiu uma sensação de pura realidade, achou ter ouvido uma voz grave e sobrenatural, mas familiar, ecoar no fundo de sua mente, mas decidiu ignorar e se levantar para enfrentar mais um novo dia. Pegou-se rindo levemente com o canto da boca ao pensar: “Será essa a verdadeira origem da história da Chapeuzinho Vermelho? Que bobagem. Isso é besteira!”.

Ao sair do quarto, um cheiro horrível da almíscar, sangue e suor se espalhou pelo ambiente do recinto e uma presença maligna soltou um leve uivo de puro ódio.

Fim.