RATOS - parte I
ESSE CONTO ESTÁ, NA SUA ÍNTEGRA, NA SESSÃO E-LIVROS. BOA LEITURA!
Sempre tive o desejo de variar os tipos de experiências que, há anos vinha fazendo em meu laboratório. Já ganhava um bom dinheiro como jovem cientista, enviando amostras das substâncias que eu manipulava para grandes laboratórios. Mesmo no anonimato, era responsável por importantes descobertas da medicina. Muitas vidas foram salvas e muitas doenças controladas somente pelo fato de, à partir de mim, terem surgido cálculos que resultaram em fabulosas combinações. Profundo conhecedor das substâncias e suas aplicações, criei inúmeras fórmulas e não foram poucas que chegaram aos especialistas químicos que as aplicaram em seus trabalhos, indo daí para os testes e aprovação final. Poderiam me chamar de ‘o pioneiro desconhecido’ das drogas que se tornaram, ao contrário de mim, famosas a valorizadas.
Minha intenção era sair da rotina de criar fórmulas para medicamentos; isto eu vinha fazendo há anos e estava cansado. Precisava de uma mudança de reino, isto é, queria passar do mineral para o animal e isto me levou a trabalhar com ratos. A preferência por lugares ermos e solitários era minha característica em se tratando de pesquisas cientificas. Dispensei o casal de jovens que vinha me auxiliando e me senti senhor no meu próprio ambiente. Cheio de entusiasmo e de renovada expectativa entreguei-me ao trabalho. Aqui, cercado pela natureza, punha em prática o que já no papel era uma realidade. Os ratos aos quais me referi obtinha-os de fontes fidedignas que eu já vinha contatando de longa data. Esses criadores, digamos assim, estavam pondo de lado suas tentativas. Foi nas entrelinhas de suas conversas repletas de frustrações que eu decidi abraçar a ideia que eles deixariam de lado.
Pois bem, eu tinha agora, a preencher um cômodo inteiro do meu laboratório, gaiolas e gaiolas abarrotadas desses seres desprezados por razões óbvias, mas que, para mim, era tudo que eu vislumbrava; um sonho aparentemente amadurecido, mas era o meu sonho de cientista visionário. Por isso eu me dedicava tanto àquele projeto.
Despertei numa manhã, carregado de energia, uma vitalidade incomum, como se algo me impulsionasse a trabalhar avidamente em busca da minha realização. O laboratório ficava na parte elevada da estradinha de terra com muito pouco acesso a automóveis. Nenhum barulho me incomodava. O ar, naquele dia, era ameno. Um frescor prevalecia sobre todo o ambiente e eu tinha vontade de compartilhar com a natureza um pouco de suas dádivas; por isso saí para me espreguiçar, espantar o sono, cumprimentar o dia e esperar a visita do apetite. Os animais para a experiência estavam atrás da casa, no último cômodo ao lado da cozinha. Sentei-me à varanda e, nesse ato vi correr a minha frente um rato. Aquilo me assustou à princípio, pois não era comum ocorrer. Por outro lado, como há tempos não visitava o local, dei como desleixo da vizinhança largar lixo em locais não apropriados, favorecendo a proliferação desses seres.
Minutos se passaram e eu, já esquecido do fato fui para a cozinha. Enquanto preparava a refeição ouvi ruídos no compartimento ao lado, onde se encontravam os ratos. Fui verificar e me deixou atônito um buraco em uma das gaiolas, como se alguém a houvesse arrebentado e libertado os seres que ali estavam. Como poderiam aqueles roedores, aparentemente inofensivos terem feito aquilo? Ou quem, além mim poderia se encontrar na casa, já que o estrago só poderia ser uma obra humana?
Deixei transcorrer o resto das horas daquele dia e me envolvi de todo em minhas atividades, fazendo cálculos, misturando fórmulas. A organização nunca foi o meu forte. Era forçoso ter que me dedicar à arrumação dos instrumentos de trabalho, à lavagem de todos os frascos e à limpeza dos líquidos coloridos, quando a minha falta de cuidado os fazia entornarem-se por sobre a pia, no chão, em meu jaleco que iniciava-se alvo pela manhã e cravado de manchas no fim do dia.
Ao fim de duas semanas de trabalho intenso e de pesquisas meticulosas tinha eu a fórmula que se transformaria na vacina mais esperada pela ciência e, lógico por todos que vinham ou que viriam a sofrer da Zica e da Chicungunha, males advindos do Aeds Egyptus, o mosquito transmissor; mas o que mais me incomodava eram as crianças que já estavam vindo ao mundo vítimas da microcefalia que poderia estar ligada a esse mosquito. Meu objetivo era, através de um só medicamento, imunizar as pessoas contra esses problemas na sua totalidade, incluindo a dengue. Restava a aplicação e ali estavam as minhas cobaias para me trazerem uma resposta. Dormi naquela noite me sentindo um vencedor, tamanha era a intuição de que tudo daria certo. Todavia, aos que me leem, sou hoje o retrato da frustração e da revolta ao ter que relatar o que aconteceu comigo e em minha vizinhança depois que trouxe aqueles ratos para o meu laboratório.
Acordei no meio da noite assustado com o barulho. Meti, por cima do pijama o casaco para suportar o frio da madrugada. Senti o ranger e estalar de vidros de experimento. Alguns estavam quebrados; haviam caído do alto da bancada por algum movimento incomum, de algo ou de alguém, pois que não havia vento. 'Os ratos'! Pensei estarrecido e me dirigi para o compartimento ao lado. Aqui, meu espirito era de espanto e incredulidade. Sangue, sangue por toda parte. Todas as gaiolas derribadas, fazendo do assoalho um mar de puro terror. Dos mais de quarenta animais que totalizavam minhas encomendas nenhum mais ali se encontrava. O que teria havido com aqueles ratos? Que ou quem seriam os responsáveis por aquela carnificina? Estava acima da minha compreensão e por mais que eu procurasse racionalizar, nada de coerente me vinha à mente. O mais estranho era o fato de todos os meus mantimentos continuarem inalterados. Havia restos de sanduíches que eu consumira naquele dia. A cozinha era um cômodo à frente e ali tudo estava em ordem. Igualmente, frutas, biscoitos e alguns bolinhos sobre o fogão seriam presas fáceis e acessíveis.
‘Ratos carnívoros´, pensei. Meu espirito se via conturbado ante àquela visão estarrecedora. Como não é de minha natureza perder tempo com conjeturas, pus-me em ação no sentido de ordenar meu ambiente de trabalho. Lavei o chão, coloquei em ordem os instrumentos, após lavá-los e cuidar de sua assepsia. Ordenei as gaiolas. Em meio a essa lida não me abandonava o pensamento no ocorrido nem o desejo de descobrir suas causas. Pensei no destino daquelas criaturas; no que estariam aprontando nos arredores, já que, após a matança que deixaram para trás tornou-se para mim a evidência de sua periculosidade.