IRINEU VOLTA PARA CASA

O dia estava quase amanhecendo quando ele recobrou a consciência, ou melhor, quando retomou o controle sobre o próprio corpo, uma vez que a lucidez nunca o abandonara, apenas o direito de exercer suas vontades. Caído no chão, com o rosto marcado pela poeira, ele tentava buscar consolo nos primeiros raios de sol que se esgueiravam por entre os galhos mais altos das árvores que rodeavam aquela parte do bosque urbano. Um familiar e recorrente gosto amargo dominava sua boca. Apoiando as duas mãos na mureta da fonte ao seu lado, ele projetou a metade do corpo para dentro do cercado e começou a chicotear a água com a língua, tentando amenizar a terrível sensação no paladar. Mas, o ato reflexo e animalesco lhe trouxe uma imediata ojeriza e, com ódio da própria condição, começou a socar a espelho d'água, como se o chafariz fosse o responsável por suas mazelas.

Um jovem, que iniciava a manhã correndo pela trilha no lado oposto à sua posição, olhou para ele com reprovação e pena na expressão. O que o rapaz não sabia era que se estivesse adiantado uns vinte minutos no exercício diário, talvez tivesse outros motivos pelos quais se lamentar.

Irineu, esse era o seu nome, apenas acompanhou com o olhar o jovem corredor se distanciar e sumir por entre as curvas do caminho. Com muito esforço, ele conseguiu se colocar de pé. Com frequência, as pessoas o tratavam com repulsa por conta de sua aparência. Extremamente pálido, magro ao ponto das clavículas e costelas se projetarem de forma agressiva, com os cabelos ralos e profundas olheiras à mostra sobre as pontudas maçãs do rosto, ele era uma mostra ambulante de uma evidente subnutrição, ou uma doença terminal. O que os desconhecidos ignoravam era que o mal que o afligia não dependia do quanto ele comesse, afinal devorara há pouco mais de oitenta quilos de carne fresca, mas, ainda assim, sua esqualidez não regredia, tampouco sua fome cessava. Seu semblante carregava uma idade incompatível com os poucos vinte e três anos de idade que ostentava.

Nu, ele caminhou da melhor maneira que pôde até o local onde escondera tudo o que tinha na vida. Do tronco oco, ele retirou e vestiu as peças de roupas providencialmente retiradas na noite anterior, não podia se dar ao luxo de estragá-las. Conferiu a mochila, seu bem mais preciso estava lá. Algo o incomodava. Com os dedos tateou os dentes e, em seguida, cuspiu um pedaço de jeans antes de seguir seu caminho.

Com a sua companheira de sempre, a fome, perambulou pelo centro da cidade. Decidido, entrou numa lanchonete em busca da caridade de alguém para lhe pagar um pão com manteiga ou algo do tipo. Mas tudo o que conseguiu foi ser enxotado do lugar por um segurança de rua que o colocou para fora a base de pontapés. Estava perturbando os clientes, ele disse.

Com o gosto acre novamente na boca, dessa vez causado pelo próprio sangue, ele se lembrou de um lugar no qual sempre era bem recebido. A biblioteca municipal. A senhora que trabalhava lá, a única funcionária, sempre lhe oferecia um copo de café com leite e alguns biscoitos para acompanhar. Com o advento da tecnologia, o movimento no local diminuíra consideravelmente nos últimos anos, ela sempre dizia. E ter alguém com quem conversar sempre alegrava o seu coração.

– Bom dia, Irineu! Como você está? Não o vejo há quase um mês. Venha, eu tenho torradas, frutas e um pouco de refresco de maracujá.

Eles caminharam pelo longo corredor de tacos no assoalho produzindo eco com os passos. Chegaram até uma espécie de copa, Irineu já estava familiarizado com o ambiente. Ele frequentava a biblioteca com regularidade, sempre interessado em livros sobre lendas, sobrenatural, ocultismo e principalmente…

– Licantropia. Aqui, Irineu. Eu havia separado esse exemplar sobre o seu tema preferido. Veja, tenho aqui o primeiro registro acerca da maldição do demônio da lua cheia, bem, uma cópia, evidentemente, não o original.

Irineu largou as torradas que devorava sofregamente e tomou o exemplar de capa dura das mãos de Ivone, esse era o nome da bibliotecária.

– Talvez se você me dissesse exatamente o que procura nesses escritos, Irineu, eu consiga ajudar de maneira mais efetiva. Há muito que eu entendi que o seu interesse vai além da curiosidade ou apreço pelo tema. Vejo que os motivos que o movem são mais urgentes, eu diria.

Irineu tirou os olhos do livro direcionando-os para a mulher.

– Olhe, não precisa ficar receoso. Há muito mais na vida, na natureza, do que os nossos olhos podem ver e estou plenamente ciente e convicta disso. Sabe, aqui mesmo, à noite, esses corredores carregam vozes e imagens de outras épocas...não julgo a sua desconfiança. Pode confiar em mim.

– Uma cura, Dona Ivone. Eu procuro uma cura. Eu já tentei de tudo. Mas a única salvação seria enterrar um bom punhado de prata no cérebro. Mas isso não seria uma cura, e sim um fim. Não apenas para o outro que vive em mim, mas para a minha existência.

A velha senhora olhou, estática, para o rapaz e, sem duvidar de suas palavras, disse com a calma de uma professora.

– Você precisa dar um fim em quem lhe passou essa situação. Desse jeito você colocará um ponto final a essa danação. Mas, para isso, você não pode ter aceitado essa maldição ou dom, não sei como definir.

– Maldição. A pior que pode existir. E eu nunca aceitei...nunca quis passar por tudo isso. Olhe para mim, Dona Ivone. Olhe. Eu sou um arremedo de ser humano. Me escondo, me arrasto pelas ruas. Todos me evitam. Não consigo sequer um emprego para manter minha dignidade.

– Então, basta acabar com a origem do seu sofrimento. Assim diz esse livro aí. Eu o li todo. Esse e todos os outros que você já leu. Você sabe a origem de sua dor? Sabe quem o mordeu?

Irineu suspirou com profundo pesar.

– Sim. Eu sei sim.

O rapaz deixou o prédio histórico decidido a retornar a um passado para o qual jurara para si mesmo jamais voltar. Ele sabia quem lhe transmitira o mal que o atormentava, mas não fora através de mordida, mas sim por herança. A origem de sua danação era o próprio pai.

Ele era praticamente um recém-nascido quando a mãe morrera, e, por mais estranho que isso possa parecer, ele se lembrava dela, do seu rosto, do episódio, de tudo, a despeito da tenra idade. Ele atribuía à sua condição tal fenômeno. Desde então, fora criado pelo pai na cidadezinha do interior para a qual rumava naquele momento. Na medida do possível, teve uma infância normal, mas tudo viria a mudar com a primeira lua cheia do seu décimo terceiro aniversário. A partir daí fugira de casa, com ódio do pai, para perambular pela cidade grande, com suas dores e tormentos.

Agora estava de volta. Prometera à Dona Ivone devolver o dinheiro obtido por empréstimo para a passagem. Ele torcia com afinco para poder saldar a dívida, o que significaria também a sua salvação. Mas caso não pagasse, uma promessa não cumprida lhe soava melhor do que ter de roubar para cumprir seu destino. Sim, ele matava, mas o fazia sem o domínio de suas ações. Tomar algo de alguém de modo intencional era algo bem diferente.

A tarde já insinuava seus últimos suspiros quando desceu do ônibus. Uma sensação de torpor e melancolia o dominava. Dez anos. Um longo período de tempo transcorrera desde a última vez que pisara naquele lugar maldito. No entanto, parecia que tudo estava absolutamente igual.

Ele sabia para onde seguir, e assim o fez. Pelo horário, seu pai deveria estar na varanda nos fundos da casa tomando café na mesma e velha caneca de alumínio. Era um homem de rotina inabalável. Com cautela, Irineu percorreu a cerca de madeira e no local que julgou ideal, saltou para dentro do quintal. Pé ante pé ladeou a pequena casa até chegar à varanda.

– Pai!

Espantado, o homem de traços rudes e marcados pelo tempo olhou para aquele rapaz debilitado diante de seus olhos. Mas não teve tempo de esboçar qualquer outra reação, pois Irineu, de posse de seu bem mais precioso, um punhal cuja lâmina era constituída de prata pura, instrumento que por vezes pensou eu usar contra o próprio pescoço, e em outras pensou em vender para custear a sobrevivência, o atacou com um golpe certeiro no peito.

– Morra, maldito! Morra e me deixe em paz. Morra e leve consigo esse mal que me atormenta. Você fez isso comigo. Por sua causa a mamãe está morta.

O homem, mortalmente ferido, começou a gargalhar, espirrando sangue pela boca com o ato.

– Por minha, causa? Por minha causa, Irineu. Não seja ridículo. Sua...sua mãe morreu por conta de suas escolhas. Saiba, garoto, que eu amei e ainda amo a sua mãe. Mas ela escolheu outro amor. E esse suposto amor transformou você nisso que é hoje. Mesmo com ela engravidando de outro eu a perdoei. Quis que ela ficasse ao meu lado. Criei você como se fosse meu filho. Porém, nem tudo depende de nossas vontades. A escolha errada de sua mãe causou a ela própria um destino tão ou mais cruel do que o seu.

– Assim que você veio ao mundo, uma maldição a possuiu e a mesma lua cheia que o transforma em fera a devorar seus semelhantes, também a tornou numa besta. Mas essa, sem face, galoparia pela noite incinerando quem se pudesse em seu caminho fazendo uso do fogo do inferno expelido por suas entranhas.

– Você está mentindo.

– Quisera eu, garoto. Quisera eu poder tê-la aqui comigo. Mas, a ira do povo dessa...dessa cidade, sabendo do pecado que seus pais cometeram, decidiram acabar com a vida dela. Ela não foi embora, ou se matou por desgosto, como você sempre quis acreditar. Ela foi linchada até a morte quando assumiu a forma humana na manhã seguinte.

– Me desculpe se por alguns momentos fui duro com você. Mas desejava prepará-lo para a vida difícil que teria pela frente, como hoje em dia você deve ter. Essa...essa lâmina de prata enterrada em mim vai me matar...logo estarei com a minha amada no inferno. Mas quanto a você, continuará a ser esse demônio devorador de carne humana. A não ser que…

– A não ser que o quê?

– A não ser que você mate o seu verdadeiro pai. Sabe, o pessoal da cidade foi bem cruel com a sua mãe, mas não quiseram matar um padre. Ficaram com medo de ir para o inferno, mesmo o sujeito sendo um pecador.

– Onde ele está? Diga! Onde?

– Na...na casa de repouso...ele...ele...foi aposentado, por assim dizer...você...você...Irineu...eu…

Aquele que Irineu conhecia como pai não conseguiu terminar de dizer o que pretendia. A morte o abraçou sem que ele pudesse terminar o raciocínio. Logo veria a quem amava, não importando onde ela estivesse.

Olhando para o céu cada vez mais escuro, Irineu correu o mais rápido que pôde para o local que conhecia bem. Ele sempre se considerou um ser temente a Deus até ser envolvido pelos braços do inferno.

Chegando na casa de repouso, ele foi direto para os aposentos. Na única cama ocupada, ele viu os contornos daquele que seria seu pai, afinal. Abatido, com o corpo marcado por feridas que pela aparência deveriam estar ali há tempos, o homem moldado pela dureza do tempo o encarou. Irineu trazia nas mãos o punhal de prata ainda lavado pelo sangue de sua vítima.

– Irineu, meu pequeno Irineu. Sim, é você. Está crescido, não diria bem ou melhor, mas virou um homem, afinal. Pelo menos por enquanto – disse deixando escapar uma gargalhada cínica em meio a uma tosse seca.

– Escute, rapaz, essa prata em sua mão terá mais efeito em você do que em mim. Não sou um demônio como você. O meu castigo foi outro. Sofro com dores. Febre. Com toda sorte de moléstias. Meu corpo exala podridão. Sou praticamente um cadáver vivo. Veja. Olhe para o meu corpo. Tudo isso por culpa de sua mãe. Aquela maldita! Por que ela teve de engravidar? Por quê? Todas as outras, e foram muitas, muitas fiéis, foram mais submissas e obedientes. A única que me trouxe problemas foi ela. Somente ela. Por isso, por conta daquele amor idiota eu me transformei nisso. E ela naquela besta decapitada a galopar. E o fruto de tudo isso, você. Mas, pelo menos ela teve no fim o que mereceu.

– Mas você ainda é meu pai. E, até onde sei, foi o causador de minha maldição. Logo, acabar com você trará a minha redenção, de qualquer modo.

Um ódio que Irineu jamais julgou ser capaz de nutrir o tomava pouco a pouco. Em seu peito crescia a vontade de estraçalhar a traqueia daquele infeliz. Pela primeira vez na vida ele sentia vontade de matar. Não era como fazia com suas vítimas, nem mesmo há pouco como fizera com seu pai, pois ali ele só queria se livrar do fardo. Agora, naquele momento, ele queria fazer por prazer.

Mas ele não precisaria da lâmina para isso. Uma dor familiar lhe atingiu a nuca e tudo o que era humano começou a ser tragado por aquilo que ansiava sair. Ele gritou, e sua voz humana obteve uma resposta mais primitiva e gutural. Logo, não havia mais Irineu, apenas a sua consciência que a tudo assistia sem poder ao menos controlar um único músculo.

A criatura se aproximou do padre calmamente, como se quisesse arrancar cada gota de medo dele. O homem, mesmo que quisesse fugir, não teria forças para isso. Mas ele não queira fugir, talvez sempre tivesse esperado por esse momento, a hora de pagar por tudo o que fizera.

A fera, com uma só investida da mandíbula, separou corpo e cabeça de sua vítima. No entanto, não quis devorar sua carne, deixaria o infeliz para os vermes.

Com o fim da vida do verdadeiro pai, a lucidez dentro do monstro teve a certeza de que a reversão logo teria início para nunca mais retornar. Mas, com a sucessão dos minutos, uma triste verdade começou a se formar na mente nublada de Irineu. As palavras de Dona Ivone, a bibliotecária haviam sido claras, para o fim da maldição era preciso matar a origem sem nunca ter aceitado de fato a sina. Porém, Irineu fizera apenas uma parte do que precisava, afinal, há pouco, desejara de todo o coração possuir as garras e os dentes necessários para estraçalhar o maldito que arruinara a vida de sua mãe e que ainda por cima pisara em sua memória.

Irineu, o rapaz-fera, deixou escapar um grito de choro e desilusão, pois seria para sempre um demônio, mas tudo o que a cidadezinha ouviu fora um uivo aterrador proferido pelas profundezas do inferno. Já que ele não teria salvação, pelo menos se vingaria do povo que assassinara sua mãe. Irineu voltava para casa.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 04/06/2021
Código do texto: T7271432
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.