ENQUANTO EU DORMIA – CLTS 15

Conheço apenas uma coisa maior do que a herança que recebi de meu tio avô Eduardo: a minha falta de habilidade para gerir o dinheiro. Assim foi que, indo morar na imensa casa que lhe pertencia e que ficava em sua plantação café, não tardei em cessar com todos os negócios da indústria cafeeira, vendendo, ou mesmo cortando, todos os pés de café que lá havia.

Dispensei os trabalhadores, e como não tenho ninguém para quem eu possa deixar sustento ou saudade após minha morte, passei a me dedicar ao agradável esporte de gastar a minha fortuna. Empreendi viagens pelo mundo. Conheci lugares de alto luxo e outros tremendamente inóspitos. Conheci palácios e florestas, príncipes europeus e chefes tribais, plantas raras e animais exóticos. Enfim, todo o tipo de lugar ou criatura que a minha curiosidade me orientava a procurar.

E mesmo tendo ido tão longe, foi aqui, bem mais perto de mim que encontrei o vivente mais espantoso que já habitou nosso planeta.

Foi numa expedição à grande floresta amazônica que encontrei um tipo de trepadeira enroscada no tronco de uma grande árvore, daquelas típicas da floresta amazônica que dez homens de braços dados não conseguem rodear totalmente. Impressionado pela cor, roxa quase iridescente, exibida por aquele cipó, cortei um pedaço e guardei em um vidro colocado em minha algibeira.

Minha intenção era levá-lo para casa e cultivá-lo fazendo com que aderisse às árvores da minha propriedade. Estávamos no coração da mata e eu havia me distanciado bastante dos demais exploradores. Percebendo minha ausência, e preocupando-se com minha demora, o chefe da expedição, um jovem e promissor militar chamado Cândido, tocou o berrante que usava para reunir grupo no meio da mata. Sem causar muito estranhamento aos animais, o que poderia acontecer, por exemplo, se ele gritasse o nome de um de nós, o som gerado pelo instrumento tinha muito mais alcance que uma voz humana.

Constatando que eu estava bem, Cândido tranquilizou-se e nos dirigimos de volta à aldeia próxima, que nos havia recebido pacificamente devido ao conhecimento linguístico de Cândido, que além de tudo, era neto de uma mulher indígena. Dada a pressa com que retornamos à aldeia, nenhum outro membro da expedição pisou na área em que eu havia encontrado aquele cipó.

De nada adiantou descrever a beleza da cor ou a complexidade do emaranhado novelo que tal cipó desenvolveu ao redor da árvore que havia parasitado. Inexplicavelmente, as pessoas da tribo também não tinham conhecimento do que seria aquele vegetal. Nenhum daqueles a quem eu mostrei a muda retirada da árvore sabia dizer o que era ou já tinha visto aquilo na vida.

Voltei para São Paulo levando meu novo objeto de curiosidade. Toda a minha concentração estava focalizada agora no que eu conseguiria fazer com aquele pequeno fragmento de trepadeira. Tive o cuidado de, ao retirá-lo da árvore, envolvê-lo em um pouco de terra umedecida para minimizar o estrago que poderia ser causado pela falta de nutrição durante a viagem de volta. Meu interesse era tão grande que,mesmo exausto do tempo que passei na floresta, tratei de enterrar o fragmento embaixo da raiz de uma das grandes mangueiras próximas à janela de meu estúdio de leitura. Assim, se ele se desenvolvesse e se enrolasse naquela mangueira da mesma forma como fez com a árvore da floresta, eu teria um lindo objeto de observação para apreciar durante minhas leituras. Um belíssimo adereço para ser apreciado por mim e por minhas visitas quando comparecessem a minha casa.

O ambiente amazônico, extremamente quente e úmido, nos impunha um desgaste físico fenomenal e, ao voltar para casa, tudo o que eu queria era descansar, pois meu corpo parecia ter passado por um longo espancamento. Os dias se passavam e minha recuperação mostrava-se veloz graças ao descanso, às conversas com meu irmão Aderbal e aos cuidados de minha cozinheira, Dona Anastácia. Estou desconfiado de que seu caldo de peixe é uma receita dos deuses do Olimpo para recuperar semideuses extenuados por suas fantásticas tarefas. A comida de Dona Anastácia recuperou minha debilitada compleição física, e naqueles poucos dias, eu já tinha recuperado o meu aspecto normal, em substituição à aparência maltratada com que voltei da floresta.

O cipó-trepadeira também se recuperou de forma impressionante e, em questão de uma semana, já havia se enroscado no tronco da mangueira que lhe servia de suporte. Aderbal e Dona Anastácia ficaram maravilhados com a beleza da cor brilhante que ele exibia. A cor variava e agora ia do verde mais vivo a um roxo vítreo que, se eu não soubesse se tratar de um vegetal, poderia pensar que era algum tipo de escultura feita em um cristal ou em alguma pedra preciosa.

Além da beleza de suas cores, o cipó também passou a exalar um delicioso perfume todas as noites. À semelhança daquela rosa que chamamos de dama da noite, que só libera seu perfume após o anoitecer, o cipó passou a inundar o ambiente com um cheiro agradável, e ao mesmo tempo tranquilizante, sempre que a noite caía.

Não sei foi resultado do cansaço da expedição, mas percebi que fui desenvolvendo alguns episódios de lapsos de memória. Estava se tornando comum que eu levantasse de uma leitura, para tomar água, por exemplo, e ao me levantar esquecer do que estava indo fazer. Também passou a ser frequente, o esquecimento do que havia acontecido na noite anterior, como naquelas amnésias que se seguem às grandes bebedeiras.

Fui até a casa de Aderbal para propor que organizássemos uma festa em minha casa. A ideia principal era mostrar aos amigos de nossa família, a beleza do novo habitante daquela casa. Meu irmão gostou muito da ideia, entretanto pediu para que fosse adiada para dali a dois meses quando ele voltaria de uma viagem de negócios que faria a Pernambuco. Ao contrario de mim, Aderbal sabia administrar e multiplicar sua parte da herança. E também tinha uma bela família, enquanto eu só tinha meu dinheiro e minha solidão.

Concordamos que nesse meio tempo eu faria os preparativos e combinaria com Dona Anastácia, um reforço para apoiá-la no trabalho, pois há muitos anos não havia festa naquela casa e ela certamente não daria conta de cozinhar sozinha para muitas pessoas.

Transferi minha cadeira de leitura para a janela ao lado de onde estava a mangueira e o cipó. A leitura, a visão das cores da trepadeira iluminadas por um tênue luar e o perfume que dominava o ambiente fizeram-me adormecer. Dormi a noite inteira naquela cadeira e pela manhã quando acordei sentia-me um pouco indisposto e percebi também que minha pele estava ralada na altura do pulso direito. Mesmo com todo o esforço de memória que fiz não consegui me lembrar de ter levantado da cadeira e feito qualquer coisa durante a noite que pudesse justificar aquelas marcas. Na verdade não me lembrei de nada. Apenas tive a sensação de que dormi um sono profundo durante toda a noite.

O dia foi passando e resolvi sair para iniciar os preparativos para a festa. Poderia ter deixado essa missão a cargo da cozinheira, mas não estou acostumado a dar ordens ou a me portar como um burguês quatrocentão. E assim, fui eu mesmo aos mercados fazer as encomendas dos ingredientes para as comidas, das frutas e dos adereços para a festa.

No centro da cidade, onde estavam quase todos os grandes mercados que nos abasteciam, havia também um prédio de três andares que outrora fora uma alfaiataria famosa em nossa cidade. A alfaiataria do senhor Walter Abraão. Ela foi destruída por um incêndio há vinte e três anos. Toda a família do senhor Abraão pereceu naquela noite. Ele, sua esposa e sua filha Elizabeth, que era para mim o que de mais amado existia no mundo.

Eu a amava em segredo eu tinha fortes suspeitas de que ela me amava também. Tínhamos estudado na mesma escola e era muito comum que ao nos cruzar pelos corredores, Elizabeth me olhasse com um sorriso e com os olhos cor de mel exibindo um brilho diferente do habitual. Em minha inexperiência de adolescente, eu apenas sorria de volta.

Mas, como a sina de todo o amor é se transformar em dor, acordei numa manhã de novembro com um burburinho em casa e uma terrível notícia: Elizabeth estava morta, assim como toda sua família. O desespero que tomou conta de mim naquela manhã causa-me dor e tristeza até hoje. Uma dor tão assombrosa que nunca mais me apaixonei por mulher alguma, permanecendo solteiro até hoje e possivelmente até o fim de meus dias. As ruínas enegrecidas do prédio permanecem intocadas até hoje. Mas como o rito da vida é sempre prosseguir, desvio minha vista e prossigo no objetivo que me trouxe à cidade.

À noite, de volta para casa, rendi-me mais uma vez à paz que me dava o perfume exalado pela planta colorida e fui sentar-me na cadeira próxima janela. Percebi que o cipó agora se estendia pelo chão e alcançava também a janela atrás da cadeira. Estava se expandindo pela parede e parecia querer entrar na casa.

Aquele tornou-se meu ritual de cada noite. Fazer minhas leituras habituais na cadeira ao pé da janela. O adormecimento durante a leitura também já havia se tornado um hábito. Eu acordava na madrugada ou mesmo ao amanhecer sentado na cadeira. Já nos primeiros dias passei a ter sonhos maravilhosos com a minha infância.

Eu me via brincando com as outras crianças da vizinhança e passeando no colo de meu pai e minha mãe. Era incrível, a nitidez desses sonhos. Era como se eu realmente estivesse na presença deles. Os cabelos de minha mãe e seu sorriso. O bigode de meu pai e sua voz, ao mesmo tempo áspera e carinhosa. Tudo isso surgia com grande detalhe durante esses sonhos e era uma grande frustração acordar para o mundo real e ser confrontado com suas ausências. E com a certeza de que suas existências estavam terminadas.

Entretanto, nessa noite em que voltei da cidade após as compra, tive um sonho diferente. Tão vivo quanto os outros, porém diferente no seu enredo. Sonhei que era novamente um adolescente e que alguém batia à porta de minha casa. Mas no sonho não era a casa em que eu havia crescido, mas esta nova casa, rica e ampla, que hoje habito.

Eu me apressava em abrir a porta e via diante de mim o senhor Walter Abraão, que pedia para falar com meu pai e , ao entrar, eu descobria que ele estava acompanhado de Elizabeth. A sensação de estar novamente diante dela era como se estivesse matando uma saudade que eu nem sabia que existia. O meu eu do sonho era mais corajoso e tomando suas mãos, dizia: eu quero me casar com você.

Nessa altura do sonho fui acordado pelo barulho de uma trovoada que se iniciava. A maldita trovoada interrompeu um momento maravilhoso, mesmo que apenas em sonho. Se eu pudesse, voltaria para aquele sonho e jamais retornaria à realidade.

Quando me apoiei nos braços da cadeira para me levantar, senti um pequeno incômodo nos pulsos. Percebi que estavam um pouco mais feridos do que anteriormente. Ferimentos como aqueles causados pelo atrito de uma corda. Não entendia porque aquilo estava acontecendo. Achei que eu estava desenvolvendo algum tipo de sonambulismo e que, de alguma forma, estava machucando meus pulsos. A pouca gravidade das feridas não despertava nenhuma preocupação além do enigma de sua origem.

Anastácia fez um comentário sobre o fato de eu estar emagrecendo rapidamente e, segundo a sua percepção, estou me tornando distraído e alheio às coisas da casa, visto que nunca mais a procurei para dizer qual comida eu queria que fosse feita a cada dia. Na verdade, eu não estava sentindo fome ultimamente, me sentia enfastiado nos últimos dias e realmente sem vontade de comer. Tenho apenas ansiedade pelo anoitecer e pela minha hora de leitura e sonho em minha biblioteca perfumada.

Dispensei a cozinheira temporariamente. Eu a convocaria novamente quando Aderbal retornasse e voltássemos a nos preocupar com os preparativos da festa. Pensei que seria triste ficar ainda mais solitário naquela casa. Mas tal pensamento foi uma faísca apenas. Eu não estava mais sozinho. Eu tinha Elizabeth em meus sonhos.

Às seis da tarde daquele dia, o perfume da planta começou novamente a invadir a atmosfera da casa. Mais que depressa, me veio a profunda necessidade de inalar aquele aroma bem perto de sua fonte. Peguei meu exemplar de “Guerra dos Mundos” e fui sentar-me junto à janela. A trepadeira a havia se enroscado nas grades da janela e alguns ramos se prolongavam para dentro de casa.

Mas eu seria capaz de jurar que hoje estavam numa posição diferente daquela em que estavam durante o dia. E a cor... Estava ficando mais bonita na medida em que os ramos se tornavam mais robustos. Na verdade, era agora uma cor indescritível, não era como nenhuma cor que eu já tivesse visto antes.

Tive a impressão de que a cor dos ramos enroscados na árvore oscilou lenta e repetidamente. Mas isso não devia ser mais do que uma ilusão causada pelo meu estado de euforia mental e fraqueza corporal. Enquanto acompanhava o personagem do livro de Wells, maravilhado com a queda do meteoro, que mais tarde se revelaria um veiculo tripulado por ameaçadores criaturas, inteligentes e cheias de tentáculos, novamente adormeci e sonhei.

No sonho, Elizabeth me aparecia mais sedutora que nunca.

Os cabelos longos e ondulados espalhavam-se sobre seus ombros e seios semi-cobertos. Enquanto sorria e me olhava com maliciosa ternura, ela ofegava fazendo seu corpo estremecer de desejo. Com minhas duas mãos, afastei os lados de sua camisola e segurei-a pelos ombros, terminando por envolvê-la em um ardente abraço.

Seguindo a lógica impenetrável dos sonhos, vi-me, em seguida, rodeado por nossos filhos. Um lindo casal de crianças que corriam fazendo barulho pela casa sob o atento olhar de Elizabeth. Minha felicidade era completa. Eu era finalmente um homem que tinha tudo.

Tapas em meu rosto. Frio. Arrepios. Alguém me sacudindo pelos ombros. A voz de meu irmão gritando meu nome. Acordei como se estivesse saindo do fundo uma lagoa escura. Minha visão turva ia se clareando e recuperando a nitidez. Vi os rostos assombrados de Aderbal e Dona Anastácia. Estavam apavorados. O meu despertar levou uma expressão de alívio às suas faces. Tentei perguntar o que aconteceu, mas minha voz não saía. Meu peito ardia horrivelmente. Meu corpo estava tomado por um misto de torpor e fadiga.

Com dificuldade ergui minha mão direita diante de meu rosto.

Ela estava em pele e ossos. E havia ataduras nos meus pulsos. Meu olhar inquiridor foi suficiente para que eles entendessem que eu estava consciente e desejava saber o que havia acontecido.

Dona Anastácia falou primeiro. Disse que estranhou que ao fim do prazo de dois meses, eu não a havia procurado para combinar sua volta ao trabalho. Assim, no dia da chegada de Aderbal, ela foi esperá-lo na estação de trem para transmitir-lhe seus receios. Temia que minha desnutrição e esquecimentos pudessem ter acarretado alguma consequência nefasta.

Aderbal, então, continuou a narrativa a partir dali. Disse que saiu da estação junto com Anastácia, sem ao menos passar em sua casa, e correu para minha residência. Chegando a minha casa e depois de muito chamar sem ser atendido, resolveu arrombar a porta. Disse que o interior da casa estava empoeirado, como se ninguém vivesse ali, e depois de procurar nos quartos sem sucesso, resolveu ir ao estúdio de leitura.

O que viu ao entrar fez com que seu coração desse um salto de pavor e surpresa enquanto Dona Anastácia, de olhos arregalados, fazia o sinal da cruz: eu estava sentado em minha cadeira preferida junto à janela da mangueira. Totalmente enrolado no cipó iridescente e entumescido que ramificou-se ao redor de meu corpo e concentrou suas extremidades em meu peito e meus pulsos, sugando minha energia vital.

Meu irmão disse que foi necessário que tapassem os narizes para que continuassem acordados e tentassem me retirar daquele abraço macabro. Dona Anastácia por sua vez, contou que as cores do cipó viajavam em lentas ondas ao logo de seus filamentos, passando do vermelho sanguíneo ao roxo brilhante. Fazendo mais uma vez o sinal da cruz, disse que temeu que eu já estivesse morto naquela hora, mas que mesmo assim, correu à cozinha para pegar uma faca afiada para que cortassem os ramos e pudessem me tirar dali.

No rodízio que era aquela narrativa, Aderbal tomou novamente a palavra para dizer que quando cortaram os ramos, eles se agitaram como se sentissem dor e despejaram seu conteúdo pelo chão. Estavam cheios do meu sangue. E era esse o motivo da coloração vermelha que foi acrescentada ao seu aspecto camaleônico.

Aderbal contou que queimou a mangueira e o parasita tendo sucesso em exterminar aquela aberração.

Hoje, passado algum tempo desde aquele amargo despertar, eu ainda me recupero do ataque que sofri. E, de volta a minha habitual solidão, chego a pensar se não teria sido melhor continuar imerso nos sonhos que aquele ser me proporcionava. De certa forma ele foi clemente comigo. Uma clemência negra que me destruiria lentamente, mas que também me daria tudo o que nunca tive.

FIM

Sedução mortal