Quietude
[Terceiro lugar na décima quinta edição do Concurso Literário de Terror e Suspense - CLTS15]
“Só deixarei de te amar quando
O véu da morte cobrir minha face”.
(Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”)
You may run for a long time
Run on for a long time
(Johnny Cash)
Faz pouco mais de um ano desde que tudo começou. Olho o que restou da antiga Cidade Maravilhosa pela janela desse apartamento residencial. Uma família deve ter morado aqui, a julgar pelo que restou. Brinquedos, fotos felizes no móvel da sala. Tudo coberto de poeira.
Um ano. Mas parece que foram décadas.
Olho para Vivian, digo alguma coisa romântica reafirmando que ainda temos um ao outro. Ao contrário do mundo, eu ainda não passei. Ela não responde, tem estado cada vez mais reservada. O tempo lhe roubara os sorrisos e sepultara suas emoções em algum lugar secreto, inacessível a mim. Há dias não diz uma só palavra. Sua alma é um abismo.
Estamos aqui há duas noites, continuaremos nossa andança hoje. Olho em busca de sobreviventes através da janela. O cheiro aqui dentro é horrível, um cheiro de morte, de carne podre que se junta ao suspiro que vem dos esgotos. Não chove há muitos dias, acho que mais de um mês. Está muito calor, certamente é verão.
Não quero imaginar o que se esconde apodrecendo atrás das portas entreabertas desses apartamentos ou nos corredores dos outros andares. Portas arrombadas e vidraças estilhaçadas denunciam a violência dos últimos dias. No segundo andar uma família inteira permanece ao redor da mesa de sua última refeição, mas só as moscas se alimentam lá, enquanto seus ossos já aparecem debaixo da carne que se vai. Terminaram presos em algum pesadelo do qual não conseguiram retornar, provavelmente. Os corpos sucumbiram. E eles continuam lá, olhando uns para os outros até hoje, com a mesa farta diante de si, como se tivessem sido desligados. Mas quanta ironia! As muitas máquinas e aparelhos de nosso mundo permacem ligados enquanto os humanos não. Há muitas casas e apartamentos com cenas assim. O gordão que assistia televisão segurando a latinha de refrigerante naquele dia, hoje é um amontoado de coisas misturadas ao tecido da poltrona. A empregada doméstica que descascava legumes na mesa da cozinha, o garoto com os fones de ouvido que, com a era das baterias de luz solar, continua ouvindo a mesma setlist num repeat infinito. Às vezes me pergunto, de onde me veio tanta sorte para conseguir sobreviver à catástrofe. Quem dera fôssemos robôs! Pelo menos não apodreceríamos.
Mas não, nós não somos robôs. Nem ciborgues, nem androides, nada dessas coisas de ficção científica antiga.
Eu sei, são cenas feias. E falar sobre elas é uma indelicadeza. Mas estas são as cores do mundo que restou, o mundo onde Vivian e eu sobrevivemos.
Pego o binóculo para olhar ao longe. Alguém se aproxima. É uma mulher. Puxa uma corrente, provavelmente traz seu cãozinho de estimação. Conto a novidade para Vivian, ela apenas observa indiferente a minha empolgação. Vou para a janela, pego outra vez a luneta e ajusto o foco na direção da sobrevivente que se aproxima.
Mas o que... Oh, meu Deus! Aquilo na corrente... não é... não é um cachorro.
***
Engulo seco e respiro fundo, não quero que Vivian veja o que estou vendo.
- Descanse um pouco, meu amor, a viagem será longa – digo com um sorriso amarelo, disfarçando o horror que me assola. Ela não se opõe, deve ter virado para o canto e dormido outra vez.
Na rua, as roupas da mulher são farrapos imundos. O cabelo parece uma moita desgrenhada e a pele tem aquele tom cinzento de quem vive entre a fuligem e os escombros. É visivelmente uma sobrevivente. Tal como eu.
Engulo seco, meu olhar tenta fugir para qualquer outra parte da paisagem, mas a cena diante de mim é forte o suficiente para eu não conseguir ignorar. Já posso ouvir o barulho das correntes. Elas se arrastam pelo chão e quando ela se aproxima percebo que o horror é maior do que eu imaginava. Ela não segura uma corrente. Ela não tem a mão. A corrente está fundida ao osso do antebraço. Um nível de loucura inimaginável, temo pela minha sanidade ao ver aquilo.
Certamente ama o que arrasta. Faço um esforço para entender a miséria abissal diante de mim. Nem sempre estamos prontos para nos despedir do que amamos. Fica pior quando não se trata do que, mas de quem.
A mulher estaca, olhando para o nada, o vento levantando a poeira da rua. Retoma a caminhada claudicante na direção do prédio em frente.
Passam-se alguns minutos e ela está na janela do sexto andar. Aceno, quem sabe me vê e deseja contato. Mas sou ignorado. Senta-se na janela, já sei o que vem agora. Fica de pé no beiral e puxa a corrente que não tem um cachorro no fim.... Ela se joga, como infelizmente eu não queria, mas no fundo, esperava. Seu corpo cai como um saco de vísceras, puxando a carga, fundida a sua alma. Antes de chegar ao chão como um pacote de carne e ossos, a corrente se enrosca nos cabos de transmissão da rua. Por um momento, aquilo interrompe sua queda, mas seu peso faz a corrente rasgar a carne do antebraço e ela atinge de vez o chão.
Pendurado no fio, o que ela tinha na outra ponta da corrente permanece como um pêndulo sinistro por alguns segundos. Depois vem ao chão. E cai ao lado da mulher, os olhos arregalados, os lábios entreabertos próximos aos dela, como se ambos os cadáveres fossem dar um último beijo. Era a parte superior do corpo de alguém que certamente lhe era tão especial a ponto de, em sua loucura, a mulher fundi-lo ao próprio corpo. Também não escapou do chão. Tombou ali, do lado de sua antiga companheira.
A cena é perturbadora, mas preciso prosseguir. Ainda tenho a mim. E a Vivian.
***
Volto para o interior daquela ruína, bebo um pouco de água, o gosto é ruim e o cheiro também. Preparo a bolsa para seguir viagem. Olho uma última vez pela janela. O que sobrou do casal está no mesmo lugar. Um cachorro come alguma coisa que acabou de revirar na lata do lixo, enquanto alguns gatos parecem fazer morada na carcaça de um carro. Não os ouço, estão distantes. Tudo é silêncio por aqui, a quietude mórbida do que sobrou do mundo. Ao longe o colosso do que um dia foi o Maracanã, a grande arena das multidões, lembra as velhas fotografias das ruínas do Coliseu. Vozes explodiam em alegria na época dos grandes campeonatos. Há dois dias passamos pela avenida do porto e os barracões das escolas de samba ainda estavam lá, os grandes esqueletos das alegorias sorrindo sadicamente para os vagantes insanos que perambulavam pelas ruas. Sem bateria, sem escola de samba, sem carnaval. Um Rio de silêncio. Naquele dia senti vontade de chorar. Vivian também.
Ao longe, no céu azul, vejo alguns pássaros voarem em círculos. “Espreitadores de carniça”, penso. Nunca tiveram tanta fartura.
Me chamo David e sou nanotecnólogo, ou nanotech, como se tornou linguagem comum. Trabalhava na Nanocorps, uma grande empresa, com um grande propósito, mas que infelizmente foi quem começou tudo isso. Eu tinha uma pesquisa promissora, do tipo que te faz virar um astro da ciência. Até que sobreveio toda a desgraça. Olho ao longe o Cristo Redentor com seus braços abertos sobre a Guanabara, o olhar sereno petrificado indiferente ao que restou de nós. Às vezes penso em castigo divino. Mas só às vezes. Quando só existe silêncio inventamos vozes para culpar (ou para nos culpar). Afasto esses pensamentos, preciso seguir em frente.
Mantenho a esperança. Não buguei totalmente. Ainda.
E lembrar que eu mesmo fui um dos que tanto defendi os melhoramentos. O projeto parecia bom. Tudo começou com uma tecnologia para desobstruir artérias comprometidas por acúmulo de colesterol. Nanites controlados por um médico nanotech, como eu, olhava através de um monitor e manipulava as ínfimas estruturas de modo a desobstruir as artérias do paciente.
Um mundo de novos avanços científicos se descortinou. O passo seguinte foi a cura para Alzheimer através de nanobots. Um de nossos cientistas descobriu que era possível reconstruir caminhos neurais comprometidos reconstituindo sinapses nervosas. Houve gente que chorou de emoção quando viu um renomado cantor, à época com 90 anos, falando com a vivacidade dos 40. Esperança, até aí era isso que a nanotecnologia nos oferecia, uma promessa de solução para males que nos assolaram por séculos.
O próximo passo parecia óbvio. Se sinapses nervosas poderiam ser reconstituídas então também poderiam ser construídas. Houve muito debate ético, mas a discussão facilmente descambou para um tribalismo político maluco onde ao invés de discutir ciência as pessoas começaram a falar sobre uma suposta conspiração diabólica em curso para escravizar almas. Falavam em fim dos tempos.
Do outro lado, defensores dos novos avanços reagiam expondo escândalos da vida pessoal dos líderes reacionários antimelhoramentos. Conspirações, discurso de ódio, fofocas e mentiras, uma maré de baixarias afogou o debate, ninguém mais falava em ciência.
Então, como sempre acontece, alguém em algum lugar remoto, muito necessitado de ganhar competitividade, tentou. E funcionou. Em um dia os cidadãos da pequena nação no Pacífico conseguiam criar sinapses que lhes conferiam domínio sobre máquinas industriais, tutoriais de aplicativos e até novos idiomas. Foi um espetáculo da inventividade humana. Eu mesmo visitei a ilha naqueles dias gloriosos, tudo pago pela empresa. Me lembro de Vivian pulando ondas naquela praia maravilhosa e depois se deitando na areia fazendo aqueles trejeitos com os óculos que ela sabia me deixarem apaixonado.
Uma era de maravilhas se anunciava.
Em pouco tempo, dado o progresso econômico que era o mais próximo de bênção e milagre que as pessoas podiam imaginar, os discursos dos moralistas foram sendo deixados de lado e grandes nações foram aceitando a nova revolução.
“Aprender informações técnicas não nos define como humanos, qual a diferença entre o ‘procedimento nanolearning’ e fazer um longo e extenuante curso técnico, se não a economia de tempo e esforço?” – dizia o discurso presidencial otimista – “Teremos cidadãos mais bem remunerados e com mais horas para produzir arte ou dedicar mais tempo a suas famílias, coisas que realmente nos fazem humanos”.
Era um belo discurso e ele estava realmente certo até aí. A promessa era boa, mas comprar os melhoramentos era algo muito caro, não era para qualquer um. Houve investimento público para modernizar a força de trabalho. Somas vultosas, mas o retorno compensou. Em uma década o Brasil estava no rol das grandes economias do mundo e com elevado índice de bem-estar social. Um sonho antigo finalmente realizado. Financiados por empresas ou pelo Estado, trabalhadores faziam o download de aprimoramentos de última geração através das “Fábricas de Saberes”, lugares onde você poderia ir e se submeter a uma sessão de nanolearning, onde um especialista injetaria uma solução nas suas veias e a partir dali manipulariam as diligentes criaturinhas tecnológicas até o seu cérebro a fim de criarem as sinapses que você acabara de comprar.
Os preços variavam a partir do conhecimento que você desejava. Um pacote de “trabalhos manuais” – acredite, isto se tornou moda em grupos neoprimitivistas – poderia custar umas trezentas pratas. Milhares de pessoas decididas a adotarem um modo de vida mais rústico compraram este pacote e depois se mudaram para lugarejos bucólicos. Não faço ideia do que aconteceu a esses aí, devem ter sido devorados por alguma onça mais primitivista que eles.
Por outro lado, pacotes como “Neurociência”, “Astronáutica Avançada” e “Mercado Financeiro em Detalhes” poderiam custar mais que uma fábrica ou uma fazenda altamente produtiva. Tempo, era o que as pessoas estavam comprando. E por um tempo, isto foi bom. Muito bom!
Outro ponto polêmico, mas que não demorou a ser resolvido foi a coisa da edição de memórias. “Os traumas são meus, eles serviram para construir quem sou”, gritava o ativista raivoso na Presidente Vargas naquele domingo ensolarado em que tudo acabou em pancadaria. Nem todos, porém, gostavam tanto de traumas e quando o policial, que toda noite era visitado por fantasmas de favelados assassinados, editou suas memórias e passou a levar uma vida de paz plantando tomates na serra, choveu gente querendo se livrar de traumas de infância e até de amores não correspondidos. É claro que as coisas não foram tão fáceis, porém no fim, como diz o ditado popular apesar dos cães latirem, a caravana não parou.
Mas foi aí que tudo mudou. Quando a nano-edição neural estava bem integrada ao nosso cotidiano, alguém fez uma coisa terrível. Hackers neuroterroristas pertencentes ao grupo reacionário “Almas Livres”, desejosos pelo retorno ao que eles chamavam de “o tempo do livre-arbítrio”, invadiram os sistemas da Nanocorps e começaram a incutir dezenas de informações falsas na cabeça dos cidadãos. De repente as pessoas acordaram no meio da noite, acreditando estarem vivendo um terrível pesadelo onde ideias estapafúrdias pareciam bastante plausíveis. Os criminosos foram cinicamente cruéis nas paranoias que editaram. Coisas como transmorfos alienígenas elaborando uma trama sombria para escravizar seres humanos e uma história bizarra de que a morte era uma ilusão criada por nanobots na cabeça da humanidade, a fim de nos fazer esquecer nossa imortalidade. Dentre a enxurrada de pensamentos aberrantes houve até a ideia de uma conspiração onde a Nanocorps estaria trabalhando na construção de um grande ralo no fundo do oceano da terra plana a fim de possibilitar que seus patrões reptilianos roubassem a água da Terra em grandes naves-tanques. O mundo simplesmente sofreu uma esclerose relâmpago e fulminante.
Às vezes me pego pensando em como alguém do passado veria tudo isso. “Que história absurda!– diria o intelectual em sua casaca de pinguim ou o crítico de arte atrás de seu pedantismo – Tal narrativa não tem sentido algum, como alguém num mundo de ciência avançadíssima iria acreditar em coisas que hoje nem uma criança acreditaria? Isto é pior que folhetins piadísticos, joguem essa porcaria fora, por favor!” Mas essa porcaria, caro erudito... é o meu mundo real. E, tudo bem, eu sei o quanto a história é absurda, mas é um erro inocente acreditar que a humanidade se guia por ideias sofisticadas. Absolutamente qualquer bobagem poderia ser transformada em verdade pelos bots.
Os dias que se seguiram foram de caos absoluto. Os neurohackers adolescentes que causaram a pane não pensaram no fato óbvio de que eles, cada um a seu modo, também usavam nanobots, não havia mais ser humano no planeta que não precisasse de pelo menos um melhoramento para viver naquela sociedade altamente competitiva. E logo o Almas Livres também enlouqueceu perdendo o controle de sua brincadeira revolucionária de mau gosto. Estávamos à deriva num oceano de realidade aumentada completamente insana.
Para a maioria das pessoas o fim dos tempos chegara. Houve tiro, guerra, matança e crueldade, as pessoas libertaram seus demônios. Religiosos saíram pelas ruas orgulhosos de constatarem suas profecias. A humanidade era uma espécie que estava dando tão errado que não foi preciso um asteroide, um novo ciclo vulcânico ou uma desordem climática para trazer o tão temido apocalipse. Bastou a nossa própria loucura induzida.
Você deve estar se perguntando como eu escapei de tudo isso. Bem, na verdade, não fiquei completamente imune. Meus bots também falham e vez por outra vejo fantasmas, fragmentos de informações desconexos que estão onde não deviam estar. Uma hora é uma bela loira desfilando de biquíni na rua fazendo propaganda de um shampoo, outra hora são coelhinhos falantes anunciando a estreia de um desenho animado. O problema é quando a informação reminiscente foi corrompida e eu vejo uma cidade flutuando nas nuvens ou uma pessoa me chamando de uma janela – “Ei, David!” – eu olho e a pessoa tem a cabeça separada do corpo, flutuando do lado de fora com um sorriso pixelado e torto anunciando gentilmente um clube de férias, “sua vida nunca mais será a mesma”. Haja sanidade!
Contudo, tenho o controle do meu problema. Eu era cientista, tinha minhas incertezas sobre aquilo tudo e meus próprios recursos para cuidar dos meus nanobots. Busquei o caminho mais seguro sobre a verdade das coisas: editei alguns nanobots que me eram imprescindíveis, criei sistemas particulares de firewall e desativei a maioria que não me faria falta. Pelo menos até aqui tudo parece sob controle.
Eu acho.
***
De volta ao presente. Vamos lá, tenho um longo caminho pela frente. O destino? Os laboratórios da Nanocorps sediados no Rio de Janeiro trabalhavam em algo e é para lá que sigo. Vou levando tudo que me importa para o veículo abandonado lá embaixo. Vivian não dormiu, não pregou os olhos momento algum. Mas está cansada e eu a levo no colo. O tempo está esfriando, ponho meu casaco envolvendo seu frágil corpo. Ela é mais importante que eu.
Ainda resta alguma energia na bateria do carro. Nas últimas semanas já abandonamos uns quatro por falta de energia e fiz uns bons quilômetros a pé. Foi estranho, mas ao mesmo tempo espetacular atravessar a Ponte Rio-Niterói andando, o mar lá embaixo num movimento síncrono e silencioso; as nuvens lá longe nas alturas, flocos de algodão num céu tão azul que chegava a parecer uma joia. Vivian pediu que eu a carregasse nos ombros, “quero ver tudo de cima” – me disse. Achei engraçado, ela tinha essa alma um tanto infantil, sempre conseguia extrair o melhor de cada experiência terrível que temos vivido nos últimos tempos. Foi difícil carregá-la, mas consegui. O sorriso dela era a única coisa que importava naquele mundo terrivelmente quieto. Nunca foi um problema carregá-la nas costas.
Não sei o que seria de mim sem Vivian, talvez já tivesse enlouquecido.
***
Ligo o automóvel. O painel de controle acende imediatamente – que sorte! – A barra de energia, contudo, não promete muito. Acho que consigo chegar até lá. Tudo funciona bem, inclusive o volante parece bem calibrado. Poderia colocar no piloto automático, mas nestes tempos convém não confiar demais em qualquer coisa artificial que se arrogue inteligente. Ligo o som, há uma lista de mais de mil músicas.
“Música de estrada”, ordeno. Mas a IA da máquina não reconhece meu comando de voz. Vou com os dedos e jogo no aleatório. Uma música em inglês começa a tocar, é uma música antiga, do distante século XX. É incrível como a maior parte das músicas cantadas por voz humana são daquela época, estamos há uns bons cinquenta anos apenas fazendo montagens digitais e vozes cibernéticas com sons frenéticos. O antigo dono deste carro devia gostar de coisa velha. “Living on a Prayer”, diz o nome no painel, o ritmo é mais lento, porém mais constante, mais orgânico do que os que tocavam nas boates dos últimos dias. “She says: we’ve got to hold on to what we’ve got/ cause it doesn’t make a difference if we make it or not/ we’ve got each other and that’s a lot”, diz a música e ela parece falar de mim e de Vivian. Não sei quem canta, mas a voz e os arranjos me inspiram uma gostosa sensação de liberdade enquanto dirijo. Comento com Vivian, ela parece apaixonada pela estrada. Sentada no banco do carona, o olhar perdido no horizonte, o sol tocando sua face delicada.
Me concentro na música e na estrada. Um ou outro carro parado com as portas abertas, aqui e ali. Há corpos pela pista, alternando de lugar com alguns buracos que o tempo salpicou no asfalto e encheu de mato. Aves se banqueteiam com restos mortais de pessoas e animais. O cheiro de cadáver está em toda parte, é tão onipresente que às vezes fede sem eu ver nenhum morto por perto. Queria que Vivian não visse essas coisas, tenho certeza que foi isto que lhe roubou a alegria de viver.
Fim de tarde. Chego na porta do laboratório. É um prédio grande e eu sei que lá atrás há um pátio para entrega de cargas. O portão foi derrubado e eu passo por cima com as rodas altas do veículo. O carro passa trotando por sobre a chapa de metal, me dizendo ter alguma coisa embaixo que o peso do carro esmagou.
Paro o carro. Desço. “Fique aqui, Vivian” – digo.
A cabine do segurança está com o vidro estilhaçado, do lado de dentro uma coisa indistinta repleta de moscas e emanando um cheiro de morte pavoroso me dá boas vindas. Tem marcas de bala e de destruição por toda parte, toda minha esperança de que exista alguma solução por ali quase se dissipa completamente.
Subo os degraus e tem caco de vidro por toda parte, um extintor de incêndio manchado de sangue parece ter sido usado como arma. Há um formigueiro enorme subindo e descendo às escadas, indiferentes à desgraça da humanidade.
Então, depois de três lances de escadas me deparo com a porta que se coloca fechada entre mim e minhas últimas esperanças. Olho pelo visor, é um laboratório de alta tecnologia.
Abro a porta e do lado de dentro, três camas hospitalares estão impecavelmente limpas, alguns aparelhos ainda estão ligados, tirando energia provavelmente de algum gerador solar instalado em cima do prédio. Este tipo de coisa se tornou comum e eu me lembro das propagandas da época da minha infância ironicamente falando ao som de uma batida de música eletrônica “você vai passar, eu vou passar, mas nossas máquinas agora serão eternas, o tempo da energia finita acabou” – Sinistramente profético!
Acesso os arquivos nos computadores, minha ID de funcionário ainda é operacional. O pôr do sol já se aproxima, a luz avermelhada entra por uma janela discreta, emprestando seus raios senis ao ambiente frio do laboratório. Penso em Vivian, será que ela está bem? A verdade é que ela sempre foi muito independente, acho que até hoje precisei muito mais dela que ela de mim.
Depois de várias horas vasculhando os arquivos do laboratório, eis que entendo a solução encontrada pela empresa. E minhas esperanças felizmente se concretizam. Levanto da cadeira num salto e grito qualquer coisa para o silêncio do mundo. Ele me responde com o mesmo desprezo de sempre, ressaltando minha insignificância. Mas agora eu conhecia a cura.
O que eu não entendo é por que encontrei a cura, mas nenhum sobrevivente.
Sento-me na cadeira grande e reclinável do centro de tratamento, parece uma cadeira de dentista e a angústia é a mesma. Coloco o CARENE, capacete de redefinição neural, posiciono os sensores nos lugares certos e começo o procedimento. Com o comando de reconhecimento de voz devidamente programado para que a máquina me obedeça, inicio as instruções:
- Monitorar sinais vitais e atividade cerebral – ordeno.
- Sinais vitais, ok – me responde a máquina depois de alguns segundos – Atividade cerebral medianamente alterada. Prosseguir?
- Sim. Inicie procedimento.
Sinto um sono forte tomar conta de mim, a saliva desaparece de minha boca e o ar torna-se levemente mais frio. Então depois de um tempo que me pareceu uma noite inteira, mas não deve ter passado de alguns minutos, visto que os raios avermelhados do pôr-do-sol ainda entravam pela janela, sou despertado subitamente, provavelmente por uma descarga neural.
- Procedimento encerrado – determinou a voz sem espírito.
Estranhamente não me sinto melhor nem pior, ainda sou o mesmo. Será que isto funcionou de verdade? Fico ali um tempo e não vejo fantasmas.
Tomo o caminho de volta, penso em Vivian, ela deve estar com fome. O caminho é o mesmo, sem nenhuma leve alteração, até o formigueiro ainda se encontra lá. Estou agora na porta da frente do prédio e olho a cabine crivada de balas com aquela coisa cheia de moscas lá dentro, tudo igual. E olho para o veículo que deixei para trás antes de subir em busca da minha cura. A porta está aberta como eu havia deixado e pela primeira vez uma suspeita muito sombria me visita.
Medo.
***
Caminhei até a porta e Vivian estava lá, no banco do carona, como esteve o tempo todo e de repente uma avalanche de memórias reordenadas parecem me estrangular.
Vivian nunca me esperou, nunca sorriu, não me respondeu nada em momento algum, não dormiu, não acordou, não curtiu estrada nem música alguma... Vivian não se tornou quieta porque estava traumatizada.
Vivian nada fizera aquele tempo todo. Por uma simples razão: Vivian estava morta.
A julgar pelo estado, há pelo menos uma semana. Sua vida era somente um fantasma da minha neuro-edição corrompida. Talvez meus bots soubessem que eu não suportaria a vida sem ela.
E então entendi o cheiro de podre que me perseguia onde quer que eu fosse. Entendi a quietude daquela que um dia tanto me amou, entendi sua distância... sua partida derradeira. E me senti em um abismo de desamparo sem fundo.
Em meu desespero, gritei de horror. Olhei em todas as direções desejando intensamente alguém a me ouvir, alguém que me socorresse, mas em toda parte só havia o mesmo monstro de sempre à espreita: a quietude do mundo que se foi.
Gritei alto. Esbravejei. Mas sequer alguém para agredir existia, nem mesmo um deus para acusar pelo absurdo cósmico, como faziam os antigos com seus seres míticos. Ninguém, aquela era a maior solidão, o maior de todos os silêncios.
Pulei para dentro do veículo, precisava de algum barulho e certamente o motor do carro estaria lá para me salvar. Liguei, dei meia volta com o volante e passei à toda pelo portão enferrujado, mais uma vez aos solavancos sobre ele.
Gritei de novo. Na estrada, gritei com toda minha insanidade enquanto Vivian olhava indiferente para o outro lado, a luz do sol morrendo no abismo sem fundo de suas pupilas. Sol que se punha ao longe, se despedindo de nós, prometendo voltar para nos torturar por mais um dia.
Nos abandonando miseráveis à escuridão da noite que se aproximava. E à infinita quietude do fim dos tempos.
TEMA: Distopia