Não podiam me tirar mais nada...
Um jaguar atacando e comendo a lua era o que os antigos viam quando a Lua de Sangue, carregada de superstições demoníacas, brilhava no espaço. Gritavam e faziam os cães uivarem, esperando fazer barulho suficiente para afastar o jaguar, temendo que ele voltasse sua atenção para a Terra.
Dizem que o fenômeno apareceu pouco antes da Devasta. Seria, agora, quarenta e oito anos depois, o sinal de outro colapso mundial?
Precisava ocupar o corpo e caminhei no sentido em que a vontade me guiou. Nunca me havia afastado tanto e só percebi que já escurecera, quando vi a lua sangrenta e ouvi grunhidos.
Disparando em minha direção, vinha uma criatura corcunda com uma metade do rosto caída e a outra metade envolvida em uma bola de sangue — um deformado pela radiação que buscava comida: eu.
Uma náusea me preencheu. Atrás, mais dois, não menos feios que o primeiro: pele grossa, aqui e ali escamosa, entremeada de pústulas e feridas, lábios que se estendiam para além do contorno natural, rasgados como uma esponja deixavam entrever as falhas nos dentes. Levou menos de um segundo para dar conta de que estava ferrada. Então corri...
— Adaliah!? — tentando me desvencilhar da perseguição, atendi o transceptor. E, senti a testa franzir: a mãe nunca me chamava pelo nome inteiro. O tom era frio, mais parecido com um alerta.
— O pai chegou? — perguntei, já avistando a nave, que caía aos pedaços, parecendo um fóssil de dinossauro em uma caverna escurecida. Meu pai negociava combustível e sempre houve quem o odiasse por isso. O mercado dos malditos: traficantes, ladrões, exploradores. A Mineradora quis dar-lhe um aviso e mandou explodir a nossa nave. Agora, naquela velharia, era onde discutíamos por coisas novas, porque não havia mais coisas velhas para serem discutidas.
— Sim. Venha! — As palavras me ricochetearam. Esse não era o jeito que ela falava comigo.
A entrada dos fundos era do lado oposto do corredor. Procurei nos vidros embaçados algum reflexo que pudesse explicar o que acontecia. Num impulso, peguei uma alavanca pesada na caixa de ferramentas e segurei-a nas costas enquanto andava pelo deque até a ponte-de-comando. A cada passo, eu me perguntava se deveria me preocupar.
Ouvi uma tosse, profunda. Talvez da mãe, porque ela tossia daquela forma ultimamente, como se a radiação tivesse encontrado caminho até seus pulmões. O pai não, sem sintomas.
Outra tosse.
Reconheci o uniforme de dois batedores da Mineradora e fixei-me nas armas apontadas diretamente para a cabeça de meus pais.
— Está tudo bem — o pai dizia, com os braços levantados.
— Não, não está, traidor — voz sibilante como um chocalho de cobra. — Quem mais está na casa?
A mulher balançou a cabeça:
— Ninguém — e se moveu devagar para o assento que o intruso indicava:
— Aqui. Não minta, cadela.
O cabo da alavanca fez um barulho quando me choquei na parede.
— O que é isso? — todos viraram em direção à entrada.
— Desculpa. Fui eu. Bati na mesa — a mãe havia me avistado pela fresta da porta. — Desculpa-desculpa-desculpa!
— Digam o que querem — disse meu pai. — Entregamos e vocês podem ir embora.
— E se eu quiser sua filha?
— Por favor — implorou a mãe. — Faço o que quiserem.
— Qualquer coisa? — um dos agressores disse aquilo de um jeito que todos entenderam o que estava sendo barganhado.
— Onde ela está? — Perguntou o outro, com timbre nervoso.
— Por que não vamos para a galé? Conversamos. Podem comer. — a mãe disfarçava a raiva.
Vi quando uma mão se esticou e, em movimento brusco, obrigou a boca da mãe envolver o cano da arma. Um clique quase imperceptível. Talvez eu o tenha ouvido ou talvez tenha intuído o som...
E uma explosão de névoa vermelha no ar: jato de sangue no teto, outro esguichado no chão, um emaranhado quente de tentáculos jogados pelo topo da cabeça do pai, espalhados por um lado do pescoço e do rosto. Gotas pequenas se fixaram nos vidros da nave.
Em seguida, mais dois disparos...
Foi minha chance. Abri a porta e deixei os deformados entrarem no corredor. Os batedores se ocuparam com eles; e eu, com uma mistura de preocupação e medo, pude encarar meu pai que gravemente ferido, chorava pela mulher morta:
— Vá para o Leste, Liah. Pegue aquela mochila ali.
— Por que me querem? — havia conversado isso com ele muitas vezes. Parecia esconder um segredo e toda vez que eu perguntava, ele se afastava ou me mandava fazer alguma coisa.
— Não temos tempo. Fuja. Reni, meu... — o que quer que meu pai fosse falar foi interrompido por um gemido agonizante.
Confirmar com a cabeça foi tudo que fiz. Saí pelos dutos de ar, segui pela margem do rio, passando rente pela fronteira da Vila, e sem entender por quê, me escondendo nos arbustos. Se parasse apenas um segundo, desabaria.
Infiltrei-me mais a fundo na mata, despistando... Ouvi estalos de galhos, olhei para trás e dei de cara com um batedor. Um sopro me dizia para correr na outra direção, mas o ignorei e caminhei direto para ele — queria me vingar, fazê-lo sentir a mesma dor que eu. A tristeza foi substituída por ódio. Não exercia mais controle sobre membros ou decisões. Apenas fúria. Não podiam me tirar mais nada.
O soldado disparou. Ele gritava palavras que eu não entendia, eu estava em outra realidade. Nada mais fazia sentido. Só havia uma coisa clara: alguém tinha que pagar minhas perdas.
Com um golpe, tirei a arma da mão dele e, antes que tivesse tempo de se defender, cravei-lhe minha faca no peito. Não parei enquanto não lhe varei o tórax, observando o corpo mole caindo sem vida; era uma jiboia contemplando a presa cair após o abraço mortal.
Arranquei a faca limpando freneticamente o sangue que escorria dela e dos meus braços, mas só fazia espalhar mais. O que foi que fiz? Havia tirado uma vida sem sequer saber se aquele soldado era realmente culpado...
Então, um cansaço me atingiu e tudo começou a girar. Lutei para manter os olhos abertos, mas não me obedeciam. Um buraco negro ia tomando conta de mim — era o túmulo para cada cadáver que eu não pude enterrar: a mãe e toda a dor; o pai e todos os segredos; e agora o maldito soldado...
Blackout total.
A luz voltava, debochando de meu momento de escuridão... Examinei meu corpo: alguns estragos na jaqueta e pequenas marcas na pele. Sempre tive muita saúde, desde criança; os machucados se curavam num piscar de olhos. Mas... tiros? Que estranho!
Continuei na fuga por mais três dias. Para descansar, subi em uma árvore, onde acreditava ter mais segurança. Do alto, avistei uma das cidades antigas. Sem pensar nos perigos que os escombros pudessem significar, simplesmente segui para o prédio menos danificado e mais próximo.
Examinei a entrada, o lugar era um labirinto... Eu não conseguia afastar a sensação de que alguma coisa estava errada. Subi um lance de escada e fui empurrando portas... todas trancadas. No final do corredor, consegui entrar por uma, no exato momento em que rosnados vinham do primeiro pavimento.
Antes que pudesse raciocinar, moscas obrigaram a me virar para espantá-las; fiquei de frente para um machado e uma serra comprida jogados no chão. Os dois ensanguentados, ao lado de uma poça que mais parecia uma capa cor de rubi e, à frente, uma banheira com visão perfeita do conteúdo: partes de animais e de pessoas se amontoavam, pretas e podres ou com sangue fresco. O cheiro de carne morta era insuportável.
O ar sufocante fez as roupas grudarem na minha pele e o estômago revirou. Tinha que sair dali. Ia direto para a porta, mas, por precaução, estiquei o pescoço para a rachadura na parede: pernas... pernas mancando — um monte de deformados. Lembrei de boatos sobre a Mineradora confinar deformados e usá-los a seu favor.
Esconda-se, foi tudo que consegui pensar. Alguns pegavam o que podiam na banheira e voltavam para o corredor e outros começaram a brigar por um pedaço maior. Se me encontrassem, eu seria pasto também... Notei que um deles me farejava. Não podia me arriscar mais. Expirei e inspirei até o oxigênio se espalhar no cérebro e me joguei pela janela em posição fetal, desejando que lá embaixo estivesse vazio.
Barulho de ossos, dor aguda. Caía de novo a cada vez que tentava me levantar. Passadas irregulares mais próximas, cães latindo. Deformados e animais famintos... e o mundo entrando e saindo de foco. Quando...
Um cão enorme avançou para mim, mas... ao invés de me estraçalhar, arrastou-me para dentro do mato. Eu via tudo através de remelas. Olhos, cabeça, pernas latejavam. Fatigada demais para avaliar o que acontecia.
O que faço? Perguntei-me, passado o perigo maior. A perna não tinha como se cicatrizar com o osso para fora.
Engoli a seco, mordi meu cachecol para mascarar a dor que me atingiu como um soco, quando empurrei o osso como pude. Com ele no lugar, a perna começou a se curar. Apoiada em uma bengala improvisada e o cão por guia pensei em procurar segurança.
Mas antes que me afastasse: CABUM! O horror estampou em meu rosto, no exato momento em que uma nuvem de poeira me cobria. Na cidade, podia avistar vários pontos de fogo. Preciso ir rápido!
Bem, eu não sabia lutar, lutei. Posso me curar com rapidez. E, mais estranho, sinto como se me comunicasse com o cão... raciocinava assim, caminhando por mais dois dias. De repente, fui encurralada. Lancei minhas facas e acertei em cheio dois dos soldados. Parti para o corpo-a-corpo, com a parceria do cão. Golpes rápidos e certeiros enquanto desviava de socos e tiros. Sangue por todo lado, o meu bicho jogado sob uma pedra, a confusão de preto e vermelho me deixando tonta, quando fui atingida com um Taser.
Sabia o que isso significava: paralisada. Semiconsciente, estava sendo arrastada para um veículo. Movi os olhos na órbita desesperadamente imaginando que a mata poderia me socorrer. Daí...
Galhos e raízes surgiram do chão, atravessaram os corpos dos soldados que me seguravam. Três dos inimigos balançavam no ar com várias raízes grossas ao redor; um emaranhado de galhos circulava o veículo. Eu, na verdade, não fazia ideia do que era aquilo. Fui me recobrando dos eletrochoques e já suava em meio à galharia, quando pensei em me testar: um movimento com as mãos, de dentro para fora. Se os galhos se mexerem...
Funcionou! Mas como? — Pensei em quanto estava irritada... As estranhezas estavam ligadas às minhas emoções?
Fiz outro teste. Lembrei, com carinho, dos meus pais e lírios brotaram aos meus pés. Peguei um deles para ver se era real... me belisquei. Maravilhada!
Tinha que sair dali antes que mandassem mais uniformes negros. Voltei até o rio e o segui por quilômetros. Parei exatamente onde o X do mapa indicava: uma caverna fechada pela vegetação.
De chofre, um vão se abriu na rocha, revelando outra abertura adiante, por onde dois mascarados surgiram e um ponto vermelho começou a flutuar em meu peito:
— Procuro Reni.
— Como saber se você é confiável? — perguntou um terceiro cara, por trás dos outros.
— Guido, meu pai, pediu-me que viesse. Ele e a mãe estão mortos. — O homem conversou pelo rádio, fez sinal para que abaixassem as armas, agarrou meu punho e me conduziu para dentro do subterrâneo.
— Quem vive aqui? — arrisquei.
— Refugiados que contrariaram a Mineradora e mutantes — ele respondeu.
— Mutantes? — eu tentava organizar a lógica.
— É... A radiação os criou. Claro que animais e deformados têm patas a mais, dentes no lugar dos olhos e coisas assim. Já, os transumanos...
— Você, com certeza, é uma TH, caso contrário não teria sobrevivido a sua jornada — outro mascarado interveio, com ironia e abrindo uma porta — O chefe a aguarda aqui.
— Sou Reni — pareceu-me emocionado.
— Por que meu pai me mandou para você?
— Porque somos sua melhor chance de continuar viva. E livre — fez uma pausa. — Veja, como conseguiu se curar dos disparos?
— Do que está falando? Sabe o que me aconteceu? — corri a mão pelo corpo.
— Não. Estou deduzindo pelo estrago em sua roupa.
— Qual a ligação de tudo isso com meus pais, a Mineradora, a vida na Vila...?
Ele indicou-me a cadeira, sentei e o encarei:
— Alguns TH podem desenvolver habilidades e aprender a controlá-las com eficácia. E, existem os supras que além dos poderes, tiveram o DNA modificado... Não consigo nem imaginar o estrago que não seria um desses em mãos erradas.
— Continue — pedi de maus modos. Percebia que ele escondia segredos. Isso incomodava.
— Os superpoderosos são poucos e a maioria é fruto de experiências com o objetivo de criar uma arma humana. Você é uma STH, por isso a Mineradora a caça. Tudo o que eles sempre quiseram está no seu DNA — fez uma pausa e continuou:
— Há trinta anos, eu, meu irmão e uma amiga fomos capturados. Na última fuga, achamos uma antiga base militar que foi abandonada pouco antes da Devasta. Essa amiga era o que chamamos de STH, você compreende o que isso significa, Adaliah?
— Diversas habilidades, controle sobre elas e DNA especial, é isso?
— Pois bem. E era muito inteligente. Estava grávida quando sofremos um ataque, na mata. Foi baleada na cabeça. Conseguimos salvá-la, mas quando voltou do coma, estava sem memórias e se esquecera dos poderes. Meu irmão se mudou com ela. Outros TH e eu nos juntamos aos rebeldes.
Intrigada com a história e com o cérebro quase em colapso, acabei interrompendo a explanação:
— Eu sou essa criança?
— Bem... Meu irmão não era seu pai biológico. Fizemos assim para proteção de vocês.
Liguei os fatos: Reni era o meu pai. Meu estômago se prendeu em um nó apertado e me assombrei de uma vez só. Não conseguia decidir se o abraçava, ou se o culpava por todas as coisas ruins que aconteceram.
— Minha mãe... lembrava de você?
— Tentamos fazê-la se lembrar, ser a antiga STH. Ela recuperou parte da memória com o tempo, mas coisas como suas habilidades e... continuaram perdidas. Não podia ficar aqui. Dois STH, poderosos demais para ficar juntos, outros pagariam pelos seus erros. — As palavras me atingiram feito um soco. Confirmava que era meu pai.
— Posso controlar a energia e me conectar a mentes, a computadores. — Então era assim que ele sabia exatamente o que cada um pensava, brincando com as mentes e induzindo as pessoas a pensarem como ele queria, deduzi. No entanto, a sinceridade dele acabou me tocando. Senti que poderíamos recomeçar. Não houve tempo...
∆∆∆
O chão todo chacoalhou e os alarmes soaram. Reni correu para os monitores das câmeras e vimos um general-minerador mostrando o dedo do meio para ele logo na entrada; atrás dele filas de soldados apontando armas, que nunca havia visto ou lido sobre.
Outro estrondo e a energia acabou, gritos vieram das passagens nos subterrâneos. Os inimigos invadiam, atirando no que viam pela frente, enquanto um deles passava o dedo indicador de cada pessoa caída por um aparelho.
Eu, com certeza, fui seguida! Culpar-me não os afastaria, mesmo assim eu sabia que a culpa continuaria morando dentro de mim. Infelizmente, tudo o que restava era certificar de que venceríamos a luta.
Uma confusão seguia no fim do corredor, sem que ninguém desistisse de brigar. Juntos, Reni e eu derrubamos todos os soldados que encontramos, mesmo assim mais e mais reapareciam. Eu desferia golpes rápidos e certeiros, enquanto desviava de socos e tiros. Desligara a mente de tal modo que parei de curtir o sentimento de culpa, sobre quem era inocente ou culpado. Até que...
Um raio de choque me deixou zonza e com as pernas dormentes. De joelhos, vi um tiro acertar entre os olhos de Reni e ele ir ao chão. Lancei uma faca no peito do atirador, mas era tarde e outro soldado passou-lhe o dedo pelo aparelho e o carregou para fora. Vou perdê-lo.
Mais inimigos chegavam a cada instante. Busquei forças em todos os cantos do corpo, mas acabei levando uma coronhada na cabeça, seguida de eletrochoques e uma injeção.
∆∆∆
Quanto tempo havia se passado. Não sei, talvez uma hora, talvez um ano, não sei. Memória e personalidade permaneciam intactas, apesar do atordoamento, levantei o olhar e...
— Não! — Um grito ecoou do fundo de minha garganta. Não havia nada além de câmeras de vidro em um laboratório, iluminado apenas por duas luzes azuladas e alguns raios que pulavam de computadores. Naquelas caixas transparentes, engaiolados, como eu, nus, conectados a eletrodos e cateteres, alguns sangrando pelo nariz, alguns pelos ouvidos, outros convulsionando.
Os minutos se alongavam por uma eternidade; a estranha imobilidade do ambiente influía em minha capacidade de calcular direções.
— Respire, número 6 — ouvi uma voz artificial dentro da câmera; e mais distante, vozes frias que discursavam sobre poder e a evolução da espécie humana preparada para a destruição.
Uma coisa estranha sobre descobertas é que, nunca se sabe qual o efeito que terão. Agora eu entendia porque ser super não era bom. Muito poder. E desejado por outros. E usado à revelia.
Tudo confuso mais uma vez. Era eu ali, ou uma cópia? A raiva crescia dentro de mim... Sabia o que fazer: primeiro, liberei membros e pescoço de amarras. Segurei o jelco que se prendia nos aparelhos do teto da câmera, deslizei a mão até o braço e saquei o scalp. Uma gota de sangue manchou-me a pele pálida. As mãos livres puderam sacar a touca de eletrodos conectados ao equipamento por cabos e arranquei o bipap do nariz. Depois, foi a vez da sonda de alimentação fixada ao ponto médio da cicatriz umbilical. E dor... Soquei os vidros com força. Nada se quebrou.
Mais uma vez eu sentia medo. Medo do presente. Medo do futuro. Medo de não conseguir respostas para minhas perguntas. Medo das respostas...
E já podia ouvir o quebrar de galhos de árvores vindos do outro lado do laboratório. Uma presença sobrenatural, como se fosse uma aparição...
TEMA: DISTOPIA