Insepulto. Uma ontologia da mudança. CLTS 15

Tema: distopia

"Está morto, podemos elogiá-lo a vontade"

(Machado de Assis)

Ser-me-ia intestina falha não lhos avisar que nada, absolutamente, foge aos planos da indiferença. A Fortuna não cose nossos destinos. Antes, ela, asseguro, com a cátedra dos que lamberam a borda açucarada da ignorância, usa a trama para limpar a bunda. E que apetecível bunda, forçoso sublinhar.

Agora, sede atento. Comigo, há de penetrar no arabesco ordinário que transborda no tecido vulgar que constitui toda dor, e todo gáudio, daquilo que evitaríamos, se houvesse essa opção.

Quando a pedra atingiu a vidraça, errando seu endereço, o crânio afunilado de Armando, tonitruando, histérico, o drama da janela em pedaços teatrais, o autor da agressão congelou entre temores menores e dúvidas não muito claras. Bastou este átimo para que a vítima vomitasse a mais insultosa gargalhada já registrada na História destas, garantiram as testemunhas que, como todos sabem, não servem para nada que não seja o recrudescimento da confusão.

Plotino muniu-se daquele raiva figadal, capaz de espargir na periferia de nossa existência úlceras hemorrágicas, que demitem, justa causa, qualquer hipoteca ao bom senso e às leis.

Um pedaço inda maior de rocha, agora, na mão direita, insuflada pelo braço mais robusto, servia de martelo furibundo contra a pobre cabeça de Armando. Pobre e desfigurada. Um amálgama de tecidos, duros e moles, perdiam-se naquele vermelho negro que espirrava a cada golpe! Golpes de um rigor espartano.

O falecido Armando agonizava a agonia que só quem já faleceu tem competência para, quando Plotino levantou de sobre o moribundo, triunfante!

A polícia chegou, e levou . O xadrez era o único abrigo possível aquele homem envolto em volutas de contradições tão humanas quanto o sangue que não havia deixado a cabeça destruída de Armando.

"Diante da necessidade, todo idealismo é inútil " (Nietzsche)

Plotino passara bastos anos no cárcere que se cumpre após ofender a moral que usa as leis para garantir sua pia integridade. Plotino saiu era um dia claro. Mas, claro não estava era Plotino. Um ranger de dentes que só o fazem em grandes ocasiões avisou o infeliz do nada que estava a espera-lo. Escorraçado pelo império das circunstâncias, deixou o endereço e, sem embargo, se colocou a correr.

Parou, cansado, numa bodega próxima. Com sede, pediu uma cerveja. Estupidamente!

Já ia o crepúsculo e avolumavam-se as garrafas sobre a mesa. E Plotino ébrio. Como nunca um foi competente para sê-lo. Mas, porque só o mas constrói a edícula que dá guarida as aflições involuntárias de nossa natureza, ainda que nos seja imperscrutável, não estava satisfeito. Mais! Gritava Plotino! Ainda sinto regatos que, dentro de mim, precisam ser inundados! Então mais, sem escrúpulos! Muito mais!

Assim, o bodegueiro, que considerou saber qual, e o que é, o limite alcoólico de um bêbado, negou-se. E, algo, mandou, enfaticamente, como costumam os que mais ignoram tudo: Vai-te daqui, vadio!! Um termo às consequências que se avizinham!

Plotino queimou. E ardeu. Sentiu a urticária do ódio alastrar-se, progressiva, e virulenta, em cada pedacinho que, juntando, dava naquele homenzarrão.

Eviscerado, tentando colocar as tripas em seu devido lugar, sem sucesso, o bodegueiro olhava para Plotino e para as lacerações régias em sua pança. E, Plotino, olhar vidrado, também encarava sua obra. Que coisa!! Pensava. Que coisa!

As sirenes barafustaram rápido. Os outros bebuns não eram o suficiente para ignorar a peça que se lhes apresentou. Chamaram a força policial.

Nem saiu, voltou. Plotino era da cela. Bem vindo, Plotino!

"Há sempre esquimós para dizer aos congoleses como se deve proceder" (Stanislaw Jerry Lem)

O arcabouço de possiblidades num catre frio e cinza é de uma aquarela só intuída pelos medíocres. E, Plotino havia sido diplomado na arte de sê-lo. Pela vida, este império sempiterno de circunstâncias, como já comentado.

Estando encerrado há alguns anos, sem que o horizonte lhe mostrasse o aparelho ortodôntico das mentiras que a liberdade nos conta, passou ao exercício de fatos, dados objetivos de uma realidade circunscrita nas veleidades que pavimentam o que somos. Sabendo, ou não, o que é que somos, afinal.

Forçoso dizer que tal compromisso cingiu qualquer chance de Plotino arguir, inclusive, por uma dessorada na rigidez de sua sentença. E, tal qual as contradições que forneceram a argamassa de nossa feitura, Plotino explodiu em projetos. De, dali, escafeder-se.

Foi avisado da insurreição que se tramava para logo mais. Tratou de usá-la como ensejo à fuga. Estava decidido. Colheu alguma experiência com os fracassados de outrora tentativas, e aguardou.

"As vezes basta uma mudança na direção do olhar, para vermos com mais clareza" (Saint Exupéry)

Arrastava-ae pela lama da tapeçaria do exíguo túnel, que garantia a Plotino as garantias que ninguém, nem nada, pode dar. Avançava sôfrego como é permitido aos ansiosos, todos nós bem sabemos. A luz bruxuleva já, anunciando o fim de toda existência: a felicidade! Ah, que dulcíssimas emoções já experimento ao saber logo ali meu bilhete para a liberdade! Que não existe, bem o sei. Mas, que fulgura solar em todas as nossas infantis certezas!

Assim filosofava Plotino ao avançar rumo ao cabo do buraco que lhe permitia ter, logo, mais escolhas que não as meia dúzia da prisão.

Ao emergir a cabeça à luz, sentiu o raspar causticante do projétil lhe lamber, urente, o cocoruto que pensava. Em reflexo encolheu-se, como o verme pisado com competência é capaz. Atravessado pelo caos que nos toma nos instantes de plena consciência cosmológica da ordem natural, grega, das coisas, Plotino verbalizou, com douta retórica:

Puta que o pariu!

"Se buscas a verdade, antes de tudo, duvida" (Descartes)

Os céticos, filósofos que viam nos dogmas uma barreira intransponível à busca pela diminuição de nossas incertezas sobre a vida e seus fenômenos, tentaram deixar, pelo menos, uma certeza, ao arrepio da contradição com aquilo que defendiam intestinamente. Uma vez que a ignorância é a regra, só o emprego empírico é capaz de nos fornecer alguma ideia do porvir.

É desta maneira que Plotino pautou sua decisão e insurgiu-se, et caterva, para fora do buraco. Ao som dos silvos céleres, das balas, da gritaria de ordem para uma formação que queria tampar os fugitivos sob a terra, por força de fogo cruzado onde o cruzamento só era justo aos guardas, já que os prisioneiros de arma alguma dispunham, Plotino corria aleatoriamente, como só a coincidência tem o direito de publicizar, em socorro de seu couro que não estava valendo um tostão. Furado.

Pois entra no palco, outra vez (faz bem desconfiarmos que dele nunca saiu), a Fortuna e, num ímpeto excitatório, como aquela vulva entumescida pela possibilidade de ser uma Bovary a meter uns chifres no insípido farmacêutico marido seu, mostra os dentes brancos para Plotino, num esgar que quer mesmo dizer sorte auspiciosa (cediço que nem toda é, a História ensina)!

Lá foi Plotino por uma vicinal erguida em trilha logo ali, na densa mata, matagal, que na periferia da prisão ornava em verde os muros broxantes do cárcere.

"Não me peça para permanecer o mesmo" (Foucault)

As figadais sinfonias que exasperavam das entranhas, redundante observação, da mata chegavam aos ouvidos de Plotino como o murro no crânio proposto por Kafka ao termos com um livro que devia receber uma atenção sequer. Sons guturais amalgamaram-se em silvos perfunctórios, matizando o medo ao terror, transmutando o horror em bile fervente a lamber sua garganta.

Lucubrou um inferno no imperativo de possibilidades seviciantes que aquele edredom verdejante avizinhava. Plotino cagou-se ao peristaltar-se em reflexo às garantias de espólio. De sua carne. De sua alma.

Opugnou-o o manto espesso, pesado, da vilania. Ao pisar na clareira que se lhe apresentou de chofre, nosso infeliz foi assaltado por agressões rudes, como só estas são doutas para. Sentiu alguns ossos sendo quebrados, outros esmagados. Experimentou o romper de tecidos moles. O êxtase do impacto lhe negou, naquele átimo costumeiro, a dor excruciante. Mas, correu logo, na avidez de lhe encenar o espetáculo.

Plotino rugiu o rugido dos condenados. Plotino caiu em genuflexão, sobre joelhos esfacelados. Caiu-lhe a escuridão. Solapou-lhe os sentidos. Obnubilou a consciência.

***

Ergueu-se robusto. Uma energia sem jurisprudência se lhe corria nos gânglios!

Uma explosão solar de fúria lho afundou no cérebro primitivo.

Berrou o trovão que anuncia a hecatombe.

O arauto do fim havia nascido.

***

"Cuidado! Cortar nossos defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual sustenta nosso edifício inteiro " (Clarice Lispector)

Quando o arquétipo iníciou seu expurgo, atestam aqueles que de testemunha serviram, o mundo já estava em ruínas, há muito. A corrupção havia imiscuído nas entranhas da sociedade, todas. Ocidente e Oriente. Grassava sem resistência no seio de toda cultura. Os estudiosos afirmavam que estava amparada em nossa biologia. Um determinismo que urgia, beligerante, por seus direitos. Toda a História, já com rudimentos na Pré, o provava.

O arauto da morte, em suas biliosas cenas de destruição inexorável, somente traduzia um desejo já nosso. Aliás, corrigiam os especialistas em comportamento humano: o monstro ainda não dava conta da suma avidez por tudo dar cabo, que se manifestava em nossa espécie.

***

As ruínas emprestavam um ar bucólico à melancolia que vicejava tenaz no cenário. Para onde a vista resolvia, era o mesmo. Temperado pelos miasmas em volutas que chegavam ao nariz de quem ainda existia. Viver se havia traduzido para todos os conceitos que filósofos, em sua pompas, sem nenhuma circunstância, garantiam nas dúvidas que deixavam.

O mundo, enfim, encontrara sua função. A de ser, sem lacunas para alternativas. Sujo. Feio. Indigente. Como uma bunda que não foi limpa com as condições catedráticas dos higienistas.

"O coração humano, tal qual modelado pela sociedade, está mais inclinado ao ódio, do que para a fraternidade " (Bertrand Russell)

Ser um filho da puta é questão de oportunidade e talento. A primeira está em cada esquina. O segundo pede rigor em treinamento para afiar-se. Não basta a condição inata.

No momento em que Plotino errou a pedrada, a filhadaputice arregalou os olhos e viu os dois! Construiu o edifício necessário para instalar-se com conforto e, em Plotino, bateu a punheta sine qua non para o caos que, todos sabemos, espirra no gozo. E, A tudo meleca. Assim, mesmo. Pegajoso, e indeturpável na sua vontade.