24 DE JUNHO DE 2022 - CLTS 15

Foi esse o dia que nunca raiou. Sem explicação prévia, sem profecia. Nos foi tirada uma das únicas certezas que tínhamos em vida. Acordei e demorei o olhar através da janela do sexto andar, esperando pelo amanhecer que nunca mais veio. Os noticiários passavam em urgência a mesma informação em todos os canais: o Sol não iluminava mais onde eu estava e em nenhum outro lugar do mundo. Todos os continentes, hemisférios...a noite simplesmente devorou o planeta Terra e o cobriu com um estranho manto em tons de chumbo, tão opaco que bloqueava qualquer lembrança da luz da Lua ou das estrelas.

Naquela atípica sexta-feira, informei a central que não teria condições de comparecer ao trabalho. Ninguém teria condições naquele dia. Os patrões, tão confusos quanto eu, balbuciaram qualquer expressão de compreensão, mas a verdade é que não havia nenhuma pessoa capaz de se sustentar depois de uma situação como aquela. Já não bastasse os mais de dois anos de pandemia e uma nova tragédia se apresentava para assolar nossas vidas. Não havia qualquer indício de perigo real após a repentina escuridão no céu, mas a sensação de que algo maior estava para acontecer permaneceu forte durante todo o primeiro dia.

A televisão ligada 24 horas por dia, as lâmpadas acessas em todos os cômodos. Enquanto não traziam a população uma explicação plausível quanto ao fenômeno, essa era a maneira de se conseguir o mínimo de conforto. “Fenômeno”. Esse era o termo que usavam para identificar a longa noite. Poucas pessoas se atreviam a sair de suas casas e explorar as ruas naqueles dias iniciais, e novos debates se acirraram para que se tentasse retomar a vida após a sua chegada. Classificação de serviços essenciais, promessas de melhorias na iluminação urbana, o silencioso medo pelo que estava encoberto. Definitivamente, não aprendemos nada.

Pouco a pouco, percebia uma perda quase natural a coragem que antes me acompanhava, sendo soterrada por essa incessante aflição e temor, mesmo não identificando o porquê. Eu queria gritar, mas tudo fica mais quieto a noite. Mais intenso. Queria minha vida de volta, porém o avançar do tempo fazia este meu desejo estar em um lugar mais e mais longe. Alcançava um breve contentamento nas conversas e angústias trocadas com amigos distantes, pelo celular. Escutava o baixar das vozes ao revelarem suas ânsias, o iniciar de um desespero obscuro. Todos se perguntavam e ninguém encontrava a resposta: por que é que estava tão escuro??

No quinto dia, sentia como se a noite também tragasse minha energia e disposição, mesmo com as fagulhas de esperança acendendo pelos eventos que viriam a seguir. Durante as infindáveis horas recostado no sofá, acompanhei atentamente ao primeiro passo em direção ao conhecimento. Os noticiários exibiam a exaustão os nomes “Administração Espacial Nacional da China” e “Guang I”, além de todo o passo a passo sobre como aconteceria o primeiro lançamento de um transporte para obter imagens e, quem sabe, um maior entendimento sobre o Fenômeno.

A hora local mostrava que era madrugada quando a pequena nave seguia ultrapassando as diversas camadas da atmosfera terrestre, sem sinal ainda que apontasse a origem do sinistro breu. Meus olhos cansados seguiam atentos até o momento em que as imagens apenas registraram o vazio e nada mais. Esse nada que seguiu até o momento em que as comunicações entre a agência espacial e a destemida nave Guang I foram encerradas de forma abrupta, desaparecendo em sua ascensão em direção ao negrume. A partir desse grande tropeço que a desolação se instaurou por toda a população.

***

Quando nem a ciência nem as crenças encontram suas respostas, resta a mente humana preencher essas lacunas. No dia seguinte ao desastre da Guang I, minha mente preencheu esses espaços com um horror inconcebível. O sexto dia de escuridão total encontrou-se com o primeiro dia do que eu chamei de “Idade das Trevas”. Televisores, luminárias, disjuntores, nada mais dispunha de energia. Baterias e pilhas totalmente descarregadas, nos tirando o mínimo de evolução que ainda carregávamos como sociedade. Regredimos as eras do fogo, nos comportando como presas retraídas encurraladas por um predador invisível. Do alto de meu apartamento, minha visão permitia perceber apenas a escuridão que inundava o quarteirão. Mesmo com a falta de informações, eu não deixava de acreditar que, assim como a noite, esse curto-circuito também se espalhou por todos os cantos.

Estávamos diante de um plano maior, e em todo o tempo meus pensamentos encontravam nessa sentença a incerteza que nos cercava. Alguma coisa nos forçava a estarmos mergulhados em ignorância e a tentativa de ganharmos o céu nos rebaixou de volta ao nosso lugar. Talvez um ato profano tivesse sido cometido.

Que falta me fazia o chiado da televisão, ou mesmo o leve ruido das lâmpadas! Ou mesmo o brilho quadrangular das janelas vizinhas, que denotavam o mínimo de vida a minha volta. As velas acessas que iluminavam o apartamento trouxeram consigo uma sequência de sombras tremeluzentes e disformes, assim como o medo do que era não-visto. Trouxe também a respiração rápida e inconstante, a transpiração que umedecia meu corpo, os pensamentos paranoicos que me invadiam segundo a segundo. O único som que se escutava ali comigo era o da estranha pulsação de um coração nervoso, esperando por uma salvação que demorava em chegar.

Contentei-me com a sobrevivência vinda do que ainda estava nas dispensas, ou do que lentamente descongelava dentro da inútil geladeira. O estado de alerta me tirava a fome, ou qualquer perspectiva de futuro que fizesse me preocupar com o amanhã — mesmo sem conseguir identificar quando este, de fato, surgia. Como pensar no dia seguinte quando o hoje jamais se encerra? De fato, toda a experiencia pela qual estava passando era enlouquecedora. Se conseguisse sobreviver a tudo aquilo, sairia transformado. Ou transtornado. Viver dias e noites iguais me impulsionavam para uma extrema desconexão comigo mesmo, com minhas essências e virtudes, ou com o que era a vida antes que tudo isso acontecesse. Eu deixara de ser eu mesmo quando as luzes cessaram para me tornar um saco de carne e ossos acuado e mergulhado em pânico.

A falta de vida do lado de fora só era contestada por isolados gritos de sofrimento. Minha mente conspirava contra minha sanidade quando se perguntava se teriam monstros libertos vagando, a procura das pessoas fracas que se escondiam da noite. Pessoas como eu. A maldade já existia antes mesmo do cair da escuridão, e nada a impediria de se manifestar mesmo diante do apocalipse. O sangue congelava a cada passo anônimo que escutava no corredor, por trás da porta. Por qualquer ranger de móveis escutado no andar superior. As ameaças plantadas em minha cabeça fizeram-me nem conseguir mais adormecer. Os olhos que mal piscavam e, sem conseguir se adaptar ao escuro, tentavam manter a atenção a qualquer movimento. A faca de cozinha era então ali uma extensão de minhas mãos, prontas para a lutar pela vida que me restava, mesmo perante o sofrimento que se apossava de minha débil carcaça enquanto era abraçado pela frieza da interminável escuridão.

***

Mesmo com minha fraca percepção de tempo, podia sugerir que a segunda grande transformação do Fenômeno ocorreu no mesmo período entre o início da escuridão e a falta de energia. Outros seis dias depois da condenável Guang sumir nos céus, se tudo indicasse uma ordem padrão.

E nessa fase, para meu assombro e maravilhamento, clareou.

Em direção ao oeste, um grande rombo na casca acinzentada que nos cobria gerava uma iluminação ainda fosca e frágil. Contornos em milhares de cores conhecidas e desconhecidas cintilavam por entre as micro ranhuras e, no interior da colossal abertura, era possível vislumbrar uma anômala forma hexagonal, com meia dúzia de pupilas inquietas e fragmentadas, vigiavam as amedrontadas formas de vida do planeta azul.

Aqueles olhos estranhos, que queimavam em ódio e poder como a combustão de uma estrela, olhavam por mim. Vislumbrar a entidade incandescente me conduziu ao alívio momentâneo de que precisava. Ao enfrentar a escuridão eu estava sozinho, e agora, já não estava mais.

Novamente, como dias atrás, voltei a enxergar pelo alto da janela do sexto andar o aparecimento de homens e mulheres, de todas as idades, etnias, credos, saindo de seu encarceramento de medo para ver esse novo raiar. Sofremos tanto nesses últimos dias e noites que merecíamos olhar mais uma vez para além do que fosse a escuridão.

Nossa raça humana, ou o que restava dela, estava pronta para eclodir. O medo me tornou diminuto e sob o olhar destrutivo que assombrava o céu eu ganhei proteção, finalmente. O desconhecido tomou forma e, mesmo que aterradora, sentia o princípio do desvanecer de nosso suplicio. Diante daquela imagem indistinta, sabia que encontraria a calmaria em minha alma que pela qual orava durante todos esses dias e noites no escuro. Bastasse que eu me submetesse a suas vontades, permitisse que sua luz fosse a única a guiar meu caminho.

Decidi aceitar o que via. Estou plenamente disposto para despertar desse terrível pesadelo. Então, para esta força que se apodera de nosso mundo, que espanta a escuridão e nos esclarece com a sua Luz, eu proclamo: te glorifico e exalto, por todo o restante de minha breve mortalidade.

TEMA: MEDO DO ESCURO

Nunes Pedroso
Enviado por Nunes Pedroso em 15/05/2021
Código do texto: T7256339
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