O PÉ DE CABRA
Ele nasceu daquele jeito. Com um pézinho mirrado, sem dedos normais. Tinha, na verdade, três simulacros de dedinhos, encolhidos para dentro do pé mal formado, que constituíam um estranho conjunto. Parecia casco de cabrito. Por isso o apelido que lhe deram: Pé de Cabra. E pouca gente ficou sabendo o verdadeiro nome dele, mas o apelido todo mundo guardou.
Cresceu assim, com aquele pezinho aleijado, mas nunca deixou que esse aleijão se tornasse um motivo de zombaria por parte dos outros moleques, nem jamais permitiu que isso o tirasse das brincadeiras de rua, das peladas do futebol e principalmente, que a aberração física o tornasse uma pessoa frágil e limitada, como geralmente acontece com quem nasce assim.
Com certeza afetou sua personalidade, tornando-o cínico, imoral e rebelde. Mas isso, certamente, aconteceu muito mais por conta do ambiente em que foi criado e talvez da sua herança genética do que por causa do aleijão.
Seu pai, um mulato arruaceiro e beberrão, era servente de pedreiro e tido como marginal. Registre-se que os marginais daquele tempo não eram como os de hoje. Só incidentalmente roubavam ou feriam alguém. A marginalidade era mais por conta da vida que viviam e dos valores que professavam. Se alguém era bom de briga, manipulava bem uma navalha e vez ou outra dava um golpe na praça ou mesmo praticava um ou outro furto, era o bastante para ser cunhado de marginal. Porém o que chumbava com liga mais forte esse título ao sujeito era o fato de ele ser capaz de encarar a polícia e muitas vezes ganhar no tapa dos tiras. Individuo que tinha a coragem de brigar com policia, esse sim era marginal dos bons. Ganhava respeito e consideração. Era o chamado “bamba”.
O pai do Pé de Cabra, dizem, era assim. E ele também. Sua mãe, diziam as más línguas, tinha sido mulher da vida. Ninguém jamais provou isso, mas a “mídia” local dizia que o pai do Pé de Cabra a tirara da Zona e ela fora morar com ele em um barraco lá pelos lados da Vila Natividade, uma região onde a maioria da gente boa da cidade tinha medo de ir. O apelido do lugar bastava para explicar o fato: era conhecido como “Risca-Faca”. Diziam que as brigas de faca eram constantes por lá. Não raro era encontrar, pela manhã, uns caras “furados”, no fundo das ribanceiras que haviam no bairro. Diziam até que aquela famosa música do Noel Rosa, “Quando o Samba Acabou”, tinha sido feita no Risca-Faca. Era brincadeira, naturalmente, porquanto Noel Rosa, nessa famosa canção, conta uma história acontecida no morro da Mangueira, mas dada a semelhança, não custava nada fazer a analogia. Muita gente acreditava e a verdade, os jornalistas que o digam, é aquela em que as pessoas acreditam e não o que realmente acontece.
Assim, o Pé de Cabra cresceu no morro do Risca-Faca e dizem que aprendeu cedo a riscar peixeira e navalha na cara dos seus desafetos. Por isso ninguém folgava com ele. Ninguém tirava sarro daquele pezinho aleijado e assim ele foi vivendo até a juventude sem sofrer o natural bulliyng que pessoas nessa condição costumam sofrer. Aliás, esse termo ainda não existia naquele tempo, mas a gozação, a zombaria, a degradação, que eram os sinônimos dessa perversão natural que os seres humanos têm em relação às pessoas que parecem ser mais fracas do que elas já eram bem conhecidas na época.
Mas havia outra característica no Pé de Cabra que as pessoas comentavam à boca pequena (sem naturalmente dizer abertamente a ele por medo do seu canivete de molas), que era peculiar. Dizem que ele gostava de barranquear cabritas. Até aí, nada de estranho, porquanto isso era comum entre os garotos do bairro. As cabritas do Seu Alceu, se pudessem falar, que o dissessem. Toda noite sempre apareciam uns moleques safados para invadir o aprisco onde o irascível inspetor de quarteirão do bairro costumava guardar a dúzia de cabritas que ele possuia. Então um dos moleques laçava uma das bichinhas e arrastava até um barranco próximo. E ali eles faziam a farra com a pobrezinha. Uma boa parte dos moleques do Risca Faca teve sua iniciação sexual com as cabritas do Seu Alceu. O aprisco dele era o bordel dos moleques safados do bairro.
Era coisa de família. Diziam que foi o pai do Pé de Cabra quem iniciou a tradição de “pegar” cabritas para satisfazer seus desejos sexuais. Era o maior barranqueador de éguas e cabritas do bairro. Divertiu-se dessa forma até o dia em que foi a um bordel de verdade e achou a mulher da sua vida. Então nunca mais se serviu dad bichinhas para obter os seus orgarmos porque então tinha arranjado uma mulher de verdade.
A gente pode até achar graça, ou então ficar indignado com um negócio desses, mas essa é uma perversão natural da criatura humana. Até o Woody Allen já explorou esse tema. Vi um filme em que ele fazia o papel de um psiquiatra que trata de um fazendeiro que havia se apaixonado por uma ovelha. O psiquiatra pediu a ele para trazer a ovelha ao seu consultório para que ele a conhecesse e a partir desse conhecimento pudesse traçar uma estratégia de cura para aquela estranha perversão. Mas o psiquiatra acabou se apaixonando também pela ovelha e iniciou um bizarro romance com ela.
Se até um sujeito como o Woody Allen, tido como intelectual, em plena Manhattan, pode dormir com uma ovelha, porque o pai do Pé de Cabra, no Risca-Faca dos anos sessenta, não podia? Dizia a mídia da época que ele nunca se importou muito com essas falações e jamais teve qualquer problema de consciência por causa disso. O Pé de Cabra também não. Afinal, ninguém era louco de puxar esse assunto com ele. Mas, depois que ele deixava a rodinha todo mundo falava. Principalmente que ele tinha cara e pés de cabrito. E assim era porque de certo era filho de uma cabrita.
E ele, se olhando bem tinha mesmo. Seu rosto era afilado como uma espécie caprina. Não tinha forma de antropoide, como de resto são os rostos das espécies que evoluíram a partir dessa mutação genética que ocorreu há cem mil atrás e que resultou, segundo os antropólogos, na espécie humana. A figura dele, no visual, lembrava o deus Pã das lendas gregas. Um deus Pã negro. E essa analogia era apropriada principalmente quando ele estava jogando futebol. Acreditem ou não, o Pé de Cabra era muito bom de bola. Corria manquitolando que nem um mutilado de guerra. Mas quando pegava na bola ninguém conseguia tomá-la dele. E quando o jogo era para valer, todo mundo queria ele no time.
O fato é que o Pé de Cabra não tinha medo de nada nem
de ninguém. Apesar do físico franzino e do pezinho aleijado, ele encarava qualquer desafeto, sem importar qual fosse o tamanho dele. Nem o Gogão, um negão armário de quase dois metros de altura e mais de cem quilos de músculos não ousava encarar o neguinho do pé de cabrito.
Só havia uma coisa que metia medo no Pé de Cabra. Eram os cachorros. O neguinho tinha uma fobia mortal deles. Qualquer pinchezinho botava ele para correr. Parecia uma coisa entranhada na fisiologia dele. Bastava um cachorro aparecer por perto que ele já se punha em guarda como se tivesse visto uma cobra.
Para encurtar a história, o Pé de Cabra, nos primeiros anos da sua juventude acabou se tornando um marginal de verdade. A última vez que ouvimos falar dele, ali pelos fins dos anos sessenta, dava conta de que ele tinha sido preso por assalto a mão armada. Nesse assalto, a notícia era a de que ele acabou matando alguém. Não se sabe ao certo o que aconteceu com ele, mas a mídia corrente, na época, informou que ele foi assassinado na prisão um ou dois anos depois. Não é difícil acreditar que ele tenha tido, realmente esse fim, porquanto parece bastante normal que um indivíduo como ele terminasse dessa forma. Dizem que ainda não tinha feito trinta anos quando morreu.
O interessante é a lenda urbana que se formou em torno do nome dele. Pois muitos anos depois do seu desaparecimento ainda havia gente que jurava ter visto o Pé de Cabra cercando éguas e cabritas nos sítios existentes ali pelos lados do que é hoje é a Vila Felicidade. E que também não era coincidência o surto de moleques que andaram nascendo com pezinhos atrofiados e cara de cabrito por aquelas bandas. Tanto que as mulheres grávidas daquela região começaram a por debaixo do travesseiro uma foto de cachorro, daqueles com cara de bem bravo. Diziam que era para espantar um demônio que estava fazendo nenenzinhos nascerem com pé atrofiado e cara de cabrito. O bairro hoje foi absorvido pela cidade, que cresceu e engoliu o campinho onde os garotos jogavam bola e a capelinha onde a gente se sentava nos degraus para fofocar, contar mentiras e fazer bravatas.
Hoje também ninguém cria mais cabras e éguas nas redondezas. E a medicina ortopédica evoluiu tanto que dificilmente encontraremos alguém com pés atrofiados daquele jeito. Mas quem tiver um bom sentido visual, não deixará de perceber as feições caprinas que alguns antigos habitantes do bairro parecem ter aos olhos dos estranhos que por ali passam pela primeira vez.
Ele nasceu daquele jeito. Com um pézinho mirrado, sem dedos normais. Tinha, na verdade, três simulacros de dedinhos, encolhidos para dentro do pé mal formado, que constituíam um estranho conjunto. Parecia casco de cabrito. Por isso o apelido que lhe deram: Pé de Cabra. E pouca gente ficou sabendo o verdadeiro nome dele, mas o apelido todo mundo guardou.
Cresceu assim, com aquele pezinho aleijado, mas nunca deixou que esse aleijão se tornasse um motivo de zombaria por parte dos outros moleques, nem jamais permitiu que isso o tirasse das brincadeiras de rua, das peladas do futebol e principalmente, que a aberração física o tornasse uma pessoa frágil e limitada, como geralmente acontece com quem nasce assim.
Com certeza afetou sua personalidade, tornando-o cínico, imoral e rebelde. Mas isso, certamente, aconteceu muito mais por conta do ambiente em que foi criado e talvez da sua herança genética do que por causa do aleijão.
Seu pai, um mulato arruaceiro e beberrão, era servente de pedreiro e tido como marginal. Registre-se que os marginais daquele tempo não eram como os de hoje. Só incidentalmente roubavam ou feriam alguém. A marginalidade era mais por conta da vida que viviam e dos valores que professavam. Se alguém era bom de briga, manipulava bem uma navalha e vez ou outra dava um golpe na praça ou mesmo praticava um ou outro furto, era o bastante para ser cunhado de marginal. Porém o que chumbava com liga mais forte esse título ao sujeito era o fato de ele ser capaz de encarar a polícia e muitas vezes ganhar no tapa dos tiras. Individuo que tinha a coragem de brigar com policia, esse sim era marginal dos bons. Ganhava respeito e consideração. Era o chamado “bamba”.
O pai do Pé de Cabra, dizem, era assim. E ele também. Sua mãe, diziam as más línguas, tinha sido mulher da vida. Ninguém jamais provou isso, mas a “mídia” local dizia que o pai do Pé de Cabra a tirara da Zona e ela fora morar com ele em um barraco lá pelos lados da Vila Natividade, uma região onde a maioria da gente boa da cidade tinha medo de ir. O apelido do lugar bastava para explicar o fato: era conhecido como “Risca-Faca”. Diziam que as brigas de faca eram constantes por lá. Não raro era encontrar, pela manhã, uns caras “furados”, no fundo das ribanceiras que haviam no bairro. Diziam até que aquela famosa música do Noel Rosa, “Quando o Samba Acabou”, tinha sido feita no Risca-Faca. Era brincadeira, naturalmente, porquanto Noel Rosa, nessa famosa canção, conta uma história acontecida no morro da Mangueira, mas dada a semelhança, não custava nada fazer a analogia. Muita gente acreditava e a verdade, os jornalistas que o digam, é aquela em que as pessoas acreditam e não o que realmente acontece.
Assim, o Pé de Cabra cresceu no morro do Risca-Faca e dizem que aprendeu cedo a riscar peixeira e navalha na cara dos seus desafetos. Por isso ninguém folgava com ele. Ninguém tirava sarro daquele pezinho aleijado e assim ele foi vivendo até a juventude sem sofrer o natural bulliyng que pessoas nessa condição costumam sofrer. Aliás, esse termo ainda não existia naquele tempo, mas a gozação, a zombaria, a degradação, que eram os sinônimos dessa perversão natural que os seres humanos têm em relação às pessoas que parecem ser mais fracas do que elas já eram bem conhecidas na época.
Mas havia outra característica no Pé de Cabra que as pessoas comentavam à boca pequena (sem naturalmente dizer abertamente a ele por medo do seu canivete de molas), que era peculiar. Dizem que ele gostava de barranquear cabritas. Até aí, nada de estranho, porquanto isso era comum entre os garotos do bairro. As cabritas do Seu Alceu, se pudessem falar, que o dissessem. Toda noite sempre apareciam uns moleques safados para invadir o aprisco onde o irascível inspetor de quarteirão do bairro costumava guardar a dúzia de cabritas que ele possuia. Então um dos moleques laçava uma das bichinhas e arrastava até um barranco próximo. E ali eles faziam a farra com a pobrezinha. Uma boa parte dos moleques do Risca Faca teve sua iniciação sexual com as cabritas do Seu Alceu. O aprisco dele era o bordel dos moleques safados do bairro.
Era coisa de família. Diziam que foi o pai do Pé de Cabra quem iniciou a tradição de “pegar” cabritas para satisfazer seus desejos sexuais. Era o maior barranqueador de éguas e cabritas do bairro. Divertiu-se dessa forma até o dia em que foi a um bordel de verdade e achou a mulher da sua vida. Então nunca mais se serviu dad bichinhas para obter os seus orgarmos porque então tinha arranjado uma mulher de verdade.
A gente pode até achar graça, ou então ficar indignado com um negócio desses, mas essa é uma perversão natural da criatura humana. Até o Woody Allen já explorou esse tema. Vi um filme em que ele fazia o papel de um psiquiatra que trata de um fazendeiro que havia se apaixonado por uma ovelha. O psiquiatra pediu a ele para trazer a ovelha ao seu consultório para que ele a conhecesse e a partir desse conhecimento pudesse traçar uma estratégia de cura para aquela estranha perversão. Mas o psiquiatra acabou se apaixonando também pela ovelha e iniciou um bizarro romance com ela.
Se até um sujeito como o Woody Allen, tido como intelectual, em plena Manhattan, pode dormir com uma ovelha, porque o pai do Pé de Cabra, no Risca-Faca dos anos sessenta, não podia? Dizia a mídia da época que ele nunca se importou muito com essas falações e jamais teve qualquer problema de consciência por causa disso. O Pé de Cabra também não. Afinal, ninguém era louco de puxar esse assunto com ele. Mas, depois que ele deixava a rodinha todo mundo falava. Principalmente que ele tinha cara e pés de cabrito. E assim era porque de certo era filho de uma cabrita.
E ele, se olhando bem tinha mesmo. Seu rosto era afilado como uma espécie caprina. Não tinha forma de antropoide, como de resto são os rostos das espécies que evoluíram a partir dessa mutação genética que ocorreu há cem mil atrás e que resultou, segundo os antropólogos, na espécie humana. A figura dele, no visual, lembrava o deus Pã das lendas gregas. Um deus Pã negro. E essa analogia era apropriada principalmente quando ele estava jogando futebol. Acreditem ou não, o Pé de Cabra era muito bom de bola. Corria manquitolando que nem um mutilado de guerra. Mas quando pegava na bola ninguém conseguia tomá-la dele. E quando o jogo era para valer, todo mundo queria ele no time.
O fato é que o Pé de Cabra não tinha medo de nada nem
de ninguém. Apesar do físico franzino e do pezinho aleijado, ele encarava qualquer desafeto, sem importar qual fosse o tamanho dele. Nem o Gogão, um negão armário de quase dois metros de altura e mais de cem quilos de músculos não ousava encarar o neguinho do pé de cabrito.
Só havia uma coisa que metia medo no Pé de Cabra. Eram os cachorros. O neguinho tinha uma fobia mortal deles. Qualquer pinchezinho botava ele para correr. Parecia uma coisa entranhada na fisiologia dele. Bastava um cachorro aparecer por perto que ele já se punha em guarda como se tivesse visto uma cobra.
Para encurtar a história, o Pé de Cabra, nos primeiros anos da sua juventude acabou se tornando um marginal de verdade. A última vez que ouvimos falar dele, ali pelos fins dos anos sessenta, dava conta de que ele tinha sido preso por assalto a mão armada. Nesse assalto, a notícia era a de que ele acabou matando alguém. Não se sabe ao certo o que aconteceu com ele, mas a mídia corrente, na época, informou que ele foi assassinado na prisão um ou dois anos depois. Não é difícil acreditar que ele tenha tido, realmente esse fim, porquanto parece bastante normal que um indivíduo como ele terminasse dessa forma. Dizem que ainda não tinha feito trinta anos quando morreu.
O interessante é a lenda urbana que se formou em torno do nome dele. Pois muitos anos depois do seu desaparecimento ainda havia gente que jurava ter visto o Pé de Cabra cercando éguas e cabritas nos sítios existentes ali pelos lados do que é hoje é a Vila Felicidade. E que também não era coincidência o surto de moleques que andaram nascendo com pezinhos atrofiados e cara de cabrito por aquelas bandas. Tanto que as mulheres grávidas daquela região começaram a por debaixo do travesseiro uma foto de cachorro, daqueles com cara de bem bravo. Diziam que era para espantar um demônio que estava fazendo nenenzinhos nascerem com pé atrofiado e cara de cabrito. O bairro hoje foi absorvido pela cidade, que cresceu e engoliu o campinho onde os garotos jogavam bola e a capelinha onde a gente se sentava nos degraus para fofocar, contar mentiras e fazer bravatas.
Hoje também ninguém cria mais cabras e éguas nas redondezas. E a medicina ortopédica evoluiu tanto que dificilmente encontraremos alguém com pés atrofiados daquele jeito. Mas quem tiver um bom sentido visual, não deixará de perceber as feições caprinas que alguns antigos habitantes do bairro parecem ter aos olhos dos estranhos que por ali passam pela primeira vez.