SATÃ BRASIL Capítulo I
Capítulo I
"—Onde o Coisa Ruim se apresenta e dá uma pequena amostra de sua maldade—"
“Tua boca voraz se farta e ceva
na carne e espalhas o terror maldito,
o grito humano, o doloroso grito
que um vento estranho para os limbos leva”.
Cruz e Souza
“Fogo! Quero que minhas confissões comecem por esta palavra. Espero que sintam que não pode haver palavra mais forte para nomear meu ódio do que a palavra Fogo! Pensem na quentura, pensem na destruição, pensem no descontrole de um grande e amarelo incêndio açoitado pelo vento. Se conseguirem imaginar isto, conseguirão saber o que tenho por dentro.
Eu sou todo fogo e o meu corpo queima e o escoadouro do meu ódio são meus olhos, por isso quase sempre uso óculos escuros, minha pele treme e tenho estremecimentos que me percorrem da unha do pé ao último fio de cabelo. Ando muito, não descanso, preciso dar vazão à minha natureza. Tenho que queimar, dispersar e destruir. Para isso eu existo.
Nunca me mostro por completo, no entanto alguns clarividentes conseguem ter um vislumbre de mim, e após a visão se tornam loucos ou santos, jamais voltam a seu estado normal.
Para a imensa maioria da humanidade eu sou simplesmente um homem comum: um comerciante, um cientista, um latifundiário, um soldado, um padre ou um ator de cinema. Nada em meu exterior me distingue dos outros. É por dentro que repousa a radical diferença.
Eu não sou gente, nem quero ser. Quero marcar minha diferença a ferro e fogo contra tudo o que é humano. E para isso eu preciso de tempo, tudo o que os seres humanos não têm.
Por falar em humanos devo esclarecer que tenho com eles uma relação antiga e problemática. Não gosto nem um pouco deles, mas não os abandonarei mesmo que eu queira. Fui despejado aqui na Terra, na casa deles, no entanto diferentemente de grande parcela da humanidade não preciso pagar aluguel.
Alguns humanos tem a possibilidade de jamais me ver, outros – os que mantêm comigo algum tipo de afinidade – têm a chance, se quiserem, de me abandonar. Eles estão quase sempre na iminência de fazê-lo, porém a Luz do outro lado é forte e pode cegá-los. Resta saber se eles preferem ser cegos e santos ou ser iguais a mim que não quero ver nada que não seja Eu.
É bom que se diga que não tenho controle sobre a referida Luz. Ela clareia onde quer e é tão forte que quase nos pega desprevenidos aos humanos e a mim. Explico:
Num dia qualquer eu caminhava sob as árvores floridas do parque quando ouvi miados intermitentes vindo da copa de um arbusto alaranjado. Lá estava um filhote de gato que subira e não conseguia descer - essa é uma cena das mais corriqueiras que, inclusive, pode ser vista em qualquer filme ou livro romântico - então, me aproximei e levantando um pouco o braço recolhi o animal e o coloquei no chão.
Depois de olhar para um lado e para outro pisei sobre sua cabeça com meu Detestoni Dress Shoes. Os olhos do gato saltaram para fora como dois caroços de jabuticaba. Fiquei inebriado com o sangue que saia dos olhos dele e encharcava o couro de jacaré do meu sapato.
Agachei-me e continuei a brincar com os olhos sangrentos do animal. Enfiei um palito de dentes em cada um e já pensava em deliciar-me com aquela iguaria quando ouvi um grito de uma mocinha ao longe e o som dos seus passos correndo em minha direção.
Ela gritava agradecimentos por eu haver retirado o gato de cima do arbusto. Ela não sabia o que estava acontecendo, nem nunca saberá, pois enquanto me virei para encarar o seu rosto redondo e rosado, senti como se uma claridade líquida se formasse sob meus pés e vi desconsolado o gato se mexendo.
Quando a mocinha chegou perto o gato já estava de pé e eu também. Fiquei tomado de medo e nojo. Medo porque eu sabia que foi a Luz que fizera aquilo e nojo porque a jovem me abraçou de forma tão inocente e me disse obrigada com tanta ternura que senti como se tivesse perdido uma batalha de mil anos. Retirei-me rápido e rasteiro como uma velha serpente que sou.
Haverá milhões de outras maldades para realizar e milhões de outros animais a pisotear, estripar, queimar, enforcar, atropelar e afogar. Aquele maldito gato tinha se livrado dessa vez, mas nem mesmo a Luz pode estar ao mesmo tempo em todos os lugares. Chegará o dia em que Ela terá de escolher entre os animais e os homens. Nesse dia ainda estarei por aqui. Pois o aqui e o ali é uma só coisa para quem vive em movimento.
Eu percorro todo o planeta como uma doença do sangue percorre o corpo. Estou diluído e esparramado, circulando de alto a baixo em todas as classes sociais, mas meu paradeiro e objetivo é o coração do mundo. O coração dos Homens.
Hoje, amanhã e depois, aqui, ali e além. O meu tempo não é o tempo dos relógios. O meu tempo é infinito como todo tempo é.
Eu sou o acorde dissonante da viola de Deus. Por isso utilizo uma linguagem convencional para que possam compreender que o acorde musical, uma vez executado, não pertence ao músico que o executou nem ao instrumento, pertence aos ouvidos de quem escuta.
Continua...