INTRODUÇÃO
 
        Samhaim é o Ano Novo na antiga religião dos celtas, época em que a natureza suspende o véu entre o mundo dos mortos e dos vivos. Essa palavra, na verdade, designa o fim do verão, pois é formada por dois vocábulos (samh), que significa verão  e (fuin) que quer dizer fim. Por isso, na Irlanda, de onde vem a tradição do Samhaim, o mês de Novembro é chamado de “La Samnha”, pois é nesse mês que, segundo a tradição celta, a natureza completa o seu ciclo anual.
Na verdade, praticamente todos os mitos que tratam da vida e da morte, giram em torno dos ciclos da natureza.  Inverno, primavera, verão e outono são as formas que a natureza utiliza para representar o nascimento, o crescimento, a decadência e a morte numa roda que gira eternamente, sempre se renovando a partir de si mesma.
Samhain é o festival realizado em 31 de outubro no hemisfério norte e em 1º de maio no hemisfério Sul. Também é conhecido como o Ano-Novo das Bruxas. Como virou tradição em praticamente todas as culturas ocidentais, esse dia consagrado às forças da natureza recebeu muito nomes. O mais conhecido é Halloween. Cá para nós, no Brasil, essa tradição conecta-se com o Dia dos Finados, embora, desde algum tempo, aqui também o Halloween já tenha se tornado popular, muito mais por influência dos filmes de Hollywood, do que por qualquer conexão mais estreita com o inconsciente coletivo do povo brasileiro, ou com suas origens culturais mais remotas.
 
Os celtas acreditavam que o “outro mundo”, aquele para onde vão as nossas almas quando desencarnamos era uma mistura de paraíso e inferno. Tanto podíamos encontrar lá prazeres infinitos como eternos tormentos. Algo próximo da visão católica que Dante descreveu em sua Divina Comédia. Porém, com sensíveis diferenças em sua intenção dogmática, já que, no mundo do além, descrito pela tradição desse antigo povo, não havia a conotação que o poeta florentino colocou na sua magistral obra, que na verdade foi escrita com claras intenções ideológicas de defender a crença católica e lançar anátemas sobre inimigos políticos pessoais e da própria Igreja.
Na verdade, todas essas representações do sobrenatural nada mais são que viagens feitas ao inconsciente do ser humano, em busca de respostas para perguntas que a nossa razão lógica não consegue responder. O que acontece conosco depois da morte? Por mais que essa pergunta possa parecer inócua, não há um povo na terra, ontem ou hoje, que não tenha se preocupado com essa questão e desenvolvido mitos e tradições  ligadas a esse tema. A própria religião, que na sua raiz mais profunda, está estreitamente ligada aos ciclos da natureza, como bem destaca James Frazer em sua obra, (O Ramo de Ouro, Zahar Editores- 1982), tem nesse assunto um dos seus mais importantes questionamentos, e as crenças que elas desenvolvem a respeito acabam se tornando elementos de pedagogia para seus adeptos, no sentido de fixar a sua ética e o seu comportamento em face da própria vida.
Para os celtas o Samhain era o mais importante de todos os Festivais, pois, dentro do círculo da vida da natureza, marcava tanto o fim quanto o início de um novo ano. Nessa noite memorável, o véu entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos se tornava mais tênue, e a possibilidade de comunicação com os espíritos que já partiram deste mundo se tornava mais fácil. Isso porque o poder de magia podia ser sentido no ar, nessa noite. Era o momento em que o “outro mundo” fazia intercessão com o nosso, já que, nessa oportunidade, a luz do sol, no seu crepúsculo se encontra num abraço com a luz da lua, que começa a cobrir a terra.
Era nesse instante de intensa vibração cósmica que as dimensões do universo conhecido, que é o nosso, se enlaçava com o desconhecido e desse abraço avultava o sobrenatural.    
Destarte, essa é uma conexão que acontece no inconsciente da pessoa que consegue, por treinamento ou por dote natural da sua sensibilidade, abrir um canal entre essas duas dimensões. Então, o que antes se revelava apenas à imaginação criadora do artista, ou à sensibilidade mediúnica do vidente, torna-se realidade para o homem comum.
O Samhaim é celebrado desde tempos imemoriais, e na sua essência, nada de mal, ou de satânico, seja o que for o significado que esse vocábulo concentre, existe nele. Na sua origem, eram apenas rituais de fertilidade, onde se realizavam banquetes, danças e outras teatralidades, inclusive de natureza sexual, às vezes nem tão simbólicas, mas explícitas mesmas, que a fé cristã abominava e condenava.
 
Aqui temos uma reunião de contos sobre o que chamamos de sobrenatural. Vampiros, lobisomens, demônios, visões fantasmagóricas e outras bizarrices que avultam desse outro mundo que se conecta com o nosso inconsciente e surgem em momentos em que a nossa consciência não exerce controle sobre os nossos pensamentos, são os personagens que dão vida a essas estórias. Demos o nome de Crônicas de Samhain porque é isso mesmo que elas são. Estórias vinculadas á tradição de todos os povos, extraídas desse manancial infinito de arquétipos que habitam o inconsciente coletivo da humanidade. No fundo todos esses personagens nada mais são que símbolos que o nosso inconsciente arquiteta para figurar os nossos temores, medos, inconsistências e desejos mais ocultos, que a mente racional mitiga em nome do seu próprio bem estar.
Conviver com eles em imaginação é, no mínimo, uma forma de catarse. Este é o propósito deste livro.


(Introdução ao livro "Contos de Samnhaim, no prelo para publicação)