ÓDIO POR SANGUE

Ela corre em meio à floresta densa.

Espinhos espetam seus braços e pernas, mas, mesmo assim, continua seu caminho desenfreado em direção à sua presa.

Sem ter controle total sobre seus movimentos e sobre seus pensamentos, ela ergue a cabeça para cima e um uivo alto, agudo e sinistro escapa de sua garganta, trazendo à mulher-lobo uma mistura de perplexidade e satisfação.

Ela sabe que sua presa foi nessa direção. Reconhece seu cheiro. Não perderia o rastro desse cheiro por nada nesse mundo. Ela precisa caçar! A fome e o ódio crescendo a cada batida de seu coração; um dínamo louco bombeando sangue de ódio em seu peito.

Ela para de repente em frente ao riacho que surgiu à sua frente e seus pensamentos conseguem, por um pequeno instante, superar seu desejo por sangue, trazendo-lhe a recordação de que acordara se sentindo muito mal naquela manhã de sábado, na primavera de Outubro do ano de 2020. E um flash de lembrança daquela manhã brilha novamente em sua mente, trazendo uma rápida recordação de como tudo começou..

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Seu marido parecia tão carinhoso e solícito naquela manhã de Outubro em plena primavera de Mato Grosso, estado do Brasil famoso pelo Pantanal e por sua natureza exuberante de incrível biodiversidade.

“- Deveria ir no hospital, querida. - disse seu marido tirando a mão de sua testa ensopada de suor – Você está tão pálida e parece com um pouco de febre também. Vou pegar minhas coisas e vou leva-la ao médico antes de ir para o trabalho.

-Não, Bryan, não é necessário. – disse ela, segurando o braço magro de seu marido e amigo com as mãos frias. Tinha acabado de ter um pesadelo horrível, onde ela era uma garotinha lutando por sua vida contra um “lobsomen” horrendo e asqueroso e de olhos frios e vermelhos de puro ódio. Ela tentou sair do quarto quando tudo começou a girar ao seu redor, o que a fez voltar para cama– Já passei por isso antes. (O ÓDIO CRESCENDO).Devo ter comido algo no jantar que está me fazendo mal. ( O ÓDIO NÃO PODE SER DETIDO). Não se preocupe. Vou tomar um remédio para o estômago e logo, logo estarei bem melhor – (O ÓDIO CRESCENDO! O ÓDIO ESPALHANDO EM INTENSIDADE!) – Pode ir para o trabalho. Você já está atrasado. (ÓDIO, ÓDIO).

- Tudo bem. Eu vou. Mas me prometa que vai me informar de seu estado sempre que se sentir pior ou melhor. Liguei para sua irmã, a Janete. Ela virá te fazer companhia até na hora do almoço.

- Não, amor. Não precisava incomodar a Janete. (ÓDIO AUMENTANDO, ARDENDO, ARRANHANDO). Tenho certeza de que é só um mal estar mesmo. (ÓDIO, ÓDIO).

- Sinto muito, Beth, mas eu não me sentiria nada seguro sabendo que você ficará aqui sozinha nesse estado. Janete se mostrou bastante solícita quando liguei. Tenho certeza que não é incômodo algum para ela. Além do mais, vocês se dão muito bem desde crianças. – soltando um suspiro conformado, se levantou da cama pegando o blazer azul anil do seu uniforme de trabalho. - Bem, amor, como você mesma disse, já estou atrasado. Tenho de ir. Mas prometa que vai me ligar sempre, ok? – Beijando sua testa com carinho ele sai do quarto com semblante preocupado, abatido.

- Tchau – ela disse com um sorriso forçado enquanto ele sai pela porta. (ÓDIO! NÃO! NÃO DEIXE MINHA PRESA ESCAPAR! ÓDIO!)

“O que está acontecendo?” – pensa, assustada – “Que pensamentos são esses? – e faz a pergunta que não deveria ter feito – “Quem é você?”.

(EU SOU ÓDIO! EU SOU VOCÊ FEITA DE ÓDIO! E QUERO BEBER O SANGUE DO SEU ESTÚPIDO MARIDO! AGORA! ÓDIO!).

- Nãoo! (ÓDIO! ÓDIO QUE CONSOME!) – o grito agudo que saiu de sua garganta mais se assemelhava a um uivo de um lobo do que a voz de uma mulher – Porquê está fazendo isso comigo? Porquê? Me deixa em paz! – disse se levantando e correndo desesperada do quarto com a intenção de alcançar seu marido, Bryan, (ÓDIO QUE NÃO PODE SER APLACADO!) na tentativa de impedir que o que quer que fosse aquela voz terrível em sua cabeça, não chegasse perto do seu amado. (UM SÉCULO INTEIRO DE PURO ÓDIO! ÓDIO POR SANGUE!)

Mas a voz continuava implacável, retumbando em seu crânio feito marteladas de ódio e fúria frenética.

(ÓDIO!! ÓDIO POR SANGUE! SINTO O CHEIRO DO MEDO! ÓDIO POR SEU MARIDO IDIOTA! ÓDIO! FINALMENTE A VITÓRIA DO ÓDIO!!)

Ela mobiliza todas as suas forças para lutar contra os pensamentos de ódio que tentam com fúria intempestiva dominar sua mente, mas sem sucesso.

Saindo correndo pela casa em direção à porta da sala, conseguiu chegar até a varanda no exato momento em que seu marido estava prestes a entrar no carro, indo para o trabalho. Olhando para ele com uma expressão misturada de ódio e medo, ela vomita abundantemente uma gosma vermelha e marrom, inundando o assoalho da varanda com esse vômito grudento e fétido.

- Elizabeth!! – Grita seu marido largando a porta do carro aberta, correndo em direção à casa e subindo rapidamente as escadas de dois em dois degraus até alcançar sua esposa e pegá-la nos braços – Querida, meu Deus! O que está acontecendo com você, amor?

- Unngghh! – Soltando um gemido gutural estranho, ela o empurra, na direção da pilastra próxima às escadas ostentando uma força terrível e sobrenatural, se levantando de repente e erguendo sua cabeça para cima como se tivesse vontade de soltar um intenso grito de dor. É nesse momento que Bryan Mendes, o marido, sente um medo que ele não saberia ser possível! Elizabeth, sua mulher, o amor de sua vida, com a cabeça erguida para o alto de um jeito estranho, arreganha sua boca cada vez mais, até que, duas mão horrendas e peludas cheias de garras afiadas saem de dentro da garganta da sua mulher, seguidas logo depois por um horrendo focinho de lobo, surgindo depois o resto do corpanzil da criatura terrivelmente humanoide que “despe” a pele, cabelos e rosto de sua mulher como se fossem trapos de roupa suja. E a transformação se torna completa!

-Q-Querida ?!? - Gaguejando ante o susto e surpresa, o marido, pela primeira vez e com uma rapidez de pensamento que sempre o caracterizou, percebe que o cheiro que emana do vômito no assoalho é o mesmo cheiro fétido que exalava do sangue de sua mulher, quando ela estava “naqueles dias”; que o hálito que emanava da boca de Elizabeth, ás vezes lhe parecia repulsivo; e que, agora, sabe com toda a certeza, quem esteve olhando para ele através dos olhos de sua mulher esse tempo todo!

Correndo desesperadamente em direção à mata próxima da linda casa de campo que adquiriram em Mato Grosso e impulsionado pelo terror e desespero que tomavam conta de seu ser, Bryan Mendes corria por sua vida!

Elizabeth, agora na forma da mulher-lobo, joga a cabeça meio lobo meio mulher para o alto, e um uivo estridente e sobrenatural toma conta da paisagem. Ela salta a cerca branca da varanda da casa como se fosse um simples obstáculo e parte em busca de sua presa!

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É quando suas memórias chegam ao riacho que murmurejava próximo à residência dos Mendes, que suas lembranças terminam e ela volta novamente sua intenção para a caçada, estacando de repente ao sentir o cheiro do seu marido e recomeçando a correr desabaladamente em direção ao mesmo. Brayan continuava correndo feito louco pela mata, não se importando em se enfiar em meio á vegetação de galhos crespos e espinhos pontiagudos, sofrendo, sem perceber, vários arranhões e ferimentos no processo, sentindo a respiração ofegante da morte cada vez mais próxima.

Viu então uma bifurcação de várias árvores e pensou, em desespero, que ali poderia ser um bom esconderijo. Se jogando em meio a vegetação, permaneceu o mais imóvel que podia devido às circunstâncias, não se atrevendo nem em respirar direito. E, em determinado momento, quando olhou para sua direita, deu de cara com a bocarra do monstro, que se arreganhou mostrando os caninos gigantes e afiados, parecendo um sorriso vermelho de puro ódio! Então, isso foi demais para ele! Seus pensamentos escureceram, seu corpo perdeu todas as suas forças, e Bryan Mendes caiu desmaiado de puro terror!

A criatura se aproxima dele, o cheira e, quando está prestes a desferir o golpe mortal na jugular do homem, algo acontece em sua mente. Elizabeth, numa tentativa desesperada de assumir o controle, consegue, por um breve instante, superar o ódio desvairado da Maldição do Lobo e um grito estranho, altíssimo e sobrenatural toma conta da floresta. E todos os pássaros num raio de cinco quilômetros alçam voo. Cães e lobos de todo o condado uivam como loucos. Todas as crianças das cercanias urinam nas suas roupas sem causa aparente. Os peixes de riachos e lagos do Oeste de Mato Grosso morrem! De repente e sem aviso, a Lua cheia tinge-se com o brilho de uma cor vermelho sangue, deixando astrônomos em todo o mundo perplexos! É a maldição do Lobisomen causando seus efeitos nefastos!

Momentaneamente “expulsa” pelo amor verdadeiro de Elizabeth por seu marido, o ódio da maldição reverbera seus efeitos pelo mundo a fora! Num submarino nuclear russo, próximo à Cuba, um tenente, ainda em treinamento, luta contra um desejo repentino de apertar o botão vermelho, que deflagraria uma hecatombe sem precedentes. Em fazendas de gado por todo o estado, vacas grávidas dão a luz de forma repentina e alguma coisa disforme nasce, chora como uma mulher e depois morre! O ódio se espalhando, inclemente!

Correndo desesperadamente pela floresta densa, ela se lembra repentinamente do que deve fazer e pra onde e em que direção deve correr. Saindo com grande velocidade de dentro da floresta, se viu em meio à uma rodovia estadual onde quase provocou um terrível acidente, atravessando a pista e correndo em disparada na direção do Pantanal Shopping.

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O segurança chefe do Shopping, Marlon David de Souza, não estava satisfeito. Depois de ver aquele garoto ladrão vagabundo afanar mais um item enlatado da seção de laticínios e introduzi-lo num bolso falso em seu enorme jaleco de couro, não teve dúvidas! Soou o alarme para os outros seguranças e foram imediatamente atrás do jovem larápio. Depois de muita correria e perseguição, Marlon teve a sorte grande! Encurralou o meliante entre duas prateleiras que não tinham nenhuma saída, pois desembocavam numa parede de materiais de ginástica, não dando ao pequeno pestinha chance alguma de escapar.

- Pare! Você não tem pra onde fugir! – disse quase gritando para o rapaz magro e franzino á sua frente, tirando o cassetete que sempre carregava pendurado à cintura e tentando se mostrar o mais ameaçador que podia – Devolva tudo o que você roubou da loja e, talvez, você possa diminuir sua pena. - Marlon, um afro-brasileiro de 42 anos, nascido nos subúrbios do Rio de Janeiro, ficava indignado que esses jovens tentassem se dar bem com o crime, uma vez que ele mesmo teria todos os motivos do mundo para abraçar a vida criminosa, mas, mesmo vivendo na penúria nos seus dias de juventude, nunca roubou coisa alguma. – Calma! Não vá fazer nada estúpido! A polícia já foi chamada! É melhor se entregar de boa ou vai ser bem pior pra você, rapaz! – notando que o jovem meliante parecia conformado com a derrota, Marlon se aproximou ainda mais dele e notou que o mesmo começava a retirar todos os itens que havia roubado da seção de laticínios de dentro do casaco. Então, de repente, o ladrão esboça uma reação inesperada! Olhando pra alguma coisa por detrás de Marlon, arregalou os olhos em pânico, começando a tremer todo e a respirar ofegantemente. O pânico era tal que parecia não conseguir se mexer e nem falar! – O que foi? Calma! Não precisa ficar com tanto medo, ok? É só se entregar de boa que nada de mal vai te acontecer, cara! – Disse Marlon tentando acalmar o ladrão, sem sucesso. O rapaz então, lentamente, levantou o braço esquerdo para ele, apontando para acima de seu ombro esquerdo. Pôde então notar o terror que se espalhava por todo o corpo do rapaz, pois suas mãos tremiam de forma incontrolável. Percebeu que uma sombra enorme escureceu a luz do shopping logo atrás de si e, assustado, virando-se lentamente para ver o que se passava atrás dele, arregalou os olhos numa expressão de horror e incredulidade!

Ao ver a monstruosidade que o olhava com olhos vermelhos e injetados de sangue e ódio que o encarava, soltou um grito estridente de susto, fazendo a mulher-lobo atingi-lo com as garras da mão direita, arremessando-o para uma prateleira cheia de roupas de ginástica e de produtos fitness, onde ele atravessou a madeira maciça indo parar no outro corredor, ficando depois inerte e com sangue abundante escorrendo de sua jugular. Estava morto!

A criatura olha então para Pedro Elias Rodrigues, o ladrão, que num ímpeto de desespero, salta por sobre a prateleira de fitness que fora parcialmente tombada, e corre desabaladamente para o primeiro corredor que viu. Não sabia pra onde estava indo, só sabia que tinha que fugir daquilo! Notando que a criatura vinha com sofreguidão destrutiva pra cima dele, destruindo e derrubando um monte de coisas pelo caminho, e o barulho e estardalhaço provocados pelos dois causando pânico nas pessoas que ainda estavam por perto, virou agilmente pelo corredor dos produtos de açougue, onde, de repente, teve uma ideia! Se jogou por sobre um freezer de carnes e caiu atrás dele ficando imóvel, na esperança de que aquela criatura grotesca não sentisse mais seu cheiro, graças aos muitos cadáveres de animais que por ali ficavam dependurados. Com o coração pulsando de forma acelerada e a respiração quase ofegante, tentou ficar o mais imóvel e silencioso que podia. Mas, notou que os passos da criatura se aproximaram e, logo depois, foram de afastando. Criando coragem, levantou-se um pouco para dar uma espiada por sobre o freezer, e notou que o bicho havia parado na seção de facas. Foi então que o pânico tomou conta de vez de Pedro Elias!

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(ÓDIO! ÓDIO POR SANG...) - NÃAO!! – uivou a mulher-lobo quando os pensamentos de fúria quase dominaram sua psique novamente. Ela não queria ter matado aquele homem! Mas ele se pôs bem no seu caminho!. Porquê não saiu da frente? “– Sinto muito! Não queria ferir ninguém! Só quero acabar com isso.” – pensou ela , aflita e arrependida de ter perdido o controle por um curto período de tempo. Agora que reassumiu o controle novamente, correu decidida para o único jeito de que se lembrava de acabar com a maldição do lobisomem. Um rapaz baixinho e franzino a sua frente saiu correndo feito louco e ela partiu atrás dele, mas não tinha a intenção de fazer qualquer mal àquela criatura patética. (ÓDIO... ME DEIXE... VIVER... MEU ÓDIO!) Os pensamentos da fúria amaldiçoada continuavam tentando estabelecer o controle de sua psique, mas, num último esforço ela conseguiu chegar ao corredor dos talheres, onde procurava alguns deles feitos com um material especial, diferente.

Olhando à sua esquerda, ela viu uma prateleira ostentando diversas facas de prata de todos os tipos e tamanhos, onde se podia ler as instruções para cada uma e para qual finalidade se destinavam. E ela sabia exatamente qual era a finalidade que daria para elas! Tomou apenas uma distância de um único passo e, num ímpeto de desespero e coragem, se jogou no meio daquele mar de lâminas, indo cair com os braços entendidos sobre elas, sendo perfurada em dezenas de lugares diferentes do seu corpanzil peludo e disforme. A Maldição do Lobo finalmente, estava terminada! O rapaz franzino se aproximou olhando, apavorado, enquanto a pele de lobo da estranha lobisomen, descamava e soltava da sua pele de mulher, desintegrando e se esfarelando num pó fino e indistinguível.

- Calma - disse o rapaz se aproximando do corpo ensanguentado e nu de Elizabeth – já chamei a ambulância. Aguenta firme, moça! Ou seja lá o que você for. – ele então percebeu que a mulher tentava esboçar algumas palavras. Se aproximando ainda mais da moça estranha, agora toda ensanguentada e nua e colocando os seus ouvidos o mais próximo que pode dos lábios encharcados de sangue, ouviu suas últimas palavras:

- Diga a meu marido que o amo! Prometa! – disse num tom de voz que mais parecia um diminuto murmúrio – A maldição agora acabou. Não tinha outro jeito! – e Elizabeth, habitante do Pantanal Mato-Grossense, uma mulher até recentemente casada e feliz, termina com a maldição que a perseguia durante várias reencarnações.

- Sim. Eu prometo. – Disse Pedro Elias, com respiração ofegante e tremendo feito vara verde ante os últimos acontecimentos.

Se apoiando numa prateleira próxima, levantou exausto e, ao mesmo tempo em que se sentia aliviado por ter terminado o pesadelo dos últimos minutos, recostou-se no apoio da prateleira para fumar um cigarro e tentar se acalmar. Foi quando ouviu um estranho barulho no seu lado esquerdo. E então se lembrou do segurança que o havia perseguido por todo o Shopping.

Seus cabelos se arrepiaram diante da cena que se desenrolava diante de seus olhos estarrecidos! O segurança havia se levantado! De um jeito esquisito e cambaleando muito, o “cadáver” arreganhou sua mandíbula com a cabeça virada para cima e a mesma cena de transformação de Elizabeth se repetiu diante do olhar horrorizado de Pedro Elias. O lobisomen se ergueu e olhou diretamente para ele! Num ímpeto louco de sair correndo para o outro lado do corredor, virou-se repentinamente para a direita dando de cara com mais três criaturas horripilantes que, com os olhos vermelhos e cheios de ódio, terminavam de se despir de sua “roupa de pele” olhando para ele com olhos famintos.

Sentiu então, um baque surdo no seu flanco esquerdo e sua visão se tingiu de vermelho do sangue que escorria pela sua testa e tudo o que conseguiu ver dali em diante foi... escuridão!!

FIM