O HOMEM QUE QUERIA MATAR O DIABO
Parte 2
Parte 2
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Quando lá cheguei, o beato já tava brigado com o governo da Bahia. Tinha inté quebrado a espinha de duas tropas de soldados despachadas pra acabar com as obras dele em Canudos. Rapaiz, nunca dei muita sorte nesta minha vida, visse? No terceiro ataque da soldadesca, levei um tiro na perna que me deixou arriado por uns tempos, coxo, sem muita serventia pra mode de cair na briga.
Depois de uns três meses, foi uma gastura sem tamanho quando fiquei sabendo de algo maior ainda pra cima do povo de Canudos, coisa de sustância pra arroxear cabra valente. Em 27 de julho de 1897, depois de um arranca-rabo medonho com a armada do general Cláudio Amaral Savaget, em Cocorobó, uma leva de uns tantos mil soldados, não dava nem pra contar porque nunca vi tantos na minha vida, fizeram um cerco nas proximidades de Canudos, montaram base e iniciaram os ataques.
O cerco durou mais de dois meses. Rapaiz, a coisa ficou feia... e mais feia ficou quando no meio daquele desespero de bala de canhão e gente morta de todos os lados o Santo veio a morrer por causa de uma disenteria braba que lhe golpeou o corpo fraco de sede e fome. Um pecado, visse?
Então, com a morte do Mestre de Belo Monte, caiu um abatimento por riba do povo de Canudos, só que ninguém queria se entregar não. A gente tinha que honrar as calças que tava vestindo em nome do Santo. Defender o que ainda restava de dignidade daquele povo sofrido.
Os chefes jagunços decidiram resistir inté o último homem. Acharam por bem poupar a vida dos velhos, das mulheres, alguns feridos, as crianças. Por isso, pediram a Antônio Beatinho que intercedesse uma rendição por aquela gente.
Depois que o governo aprometeu garantir a vida de todos, muito do contra, fui enviado como peso morto com os velhos, mulheres e crianças em rendição, decerto umas trezentas pessoas. Os soldados jogaram a gente num cercado grande, tudo amontoado que nem porco na lama. Ficamos ali alguns dias sob a mira da soldadesca, com pouca água, sem comida, enquanto ainda se podia ouvir os barulhos do combate lá pro meio da praça central de Canudos.
Não gosto de me alembrar das mortes de uns quantos que vi caídos naquele chão empoeirado, a maioria de boca aberta rezando pra nosso senhor Jesus Cristo e Antônio Conselheiro. Vixe, foi desperdício de gente dos dois lados.
Mas o pior ainda estou pra te contar, seu moço, escrevinha aí no teu caderninho porque essa é muito da séria. No terceiro ou quarto dia, nem me alembro mais, eu tava matutando um jeito de fugir daquele cercado, mas não tinha jeito não. Ficava observando o movimento das tropas no acampamento, um pouco mais arretirado, inté que, de repente, minhas vistas deram com uma figura já conhecida vagando no meio da soldadesca.
Vosmecê não vai nem acreditar. Pois sim, era o maldito enfezado de branco, puxando o jumento naquela calmaria enervante. Ô meu pai, o que é que aquela criatura tava fazendo ali, pensei cá comigo. Coisa boa é que não devia de ser, né?
O desgramado, cabra safado, parecia sentir a minha presença também porque, acredite, ele ficou cheirando o ar assim como faz os bichos quando procura comida, num sabe? E cheira daqui e cheira dali, foi virando aquela cara maligna inté botar os olhos de carvão por riba de mim. Daí, levou a mão no chapéu, botou a língua de cobra no canto da boca e me cumprimentou. Eita, eu fiquei danado comigo mesmo porque não conseguia desviar os olhos do maldito, visse?
Foi a partir daí que se deu a maior desgraceira naquela guerra maldita. Escute só o que o Excomungado fez. Ele começou a puxar conversa com o general Artur Oscar. E eu, de bobo não tenho nada, só fiquei de olho neles, lá de longe. Conversa vai, conversa vem, inté que os dois entraram na tenda do oficial. O jumento ficou fazendo cena pros soldados que brincavam com ele. De repente, de dentro da tenda saiu apenas o general. E cadê o Enfezado? Cadê? Rapaiz, quando vi o general vindo na nossa direção é que percebi que ele não era ele não! Ora, era o demônio encalacrado no corpo dele!
O endemonhado general Arthur Oscar chamou mais de 100 soldados pra perto do cercado dos rendidos indefesos de Canudos e gritou assim pra todo mundo ouvir:
“Soldados, não vamos deixar nenhum monarquista vivo nesta terra. Nós vamos fazer aqui como se costuma fazer com gente revoltosa lá no sul, quero a degola de todos estes porcos. Seja velho, seja mulher ou criança, passa o facão nestes monarquistas dos infernos”.
Ai, ai, meu Deus, foi um massacre, uma sangria desatada!
Vixe, me dá ainda um engasgo no falar e o meu peito bate mais acelerado. Moço, eles foram arrastando os desesperados pra um canto e... meu Deus... meu Deus... só se via grito lamentoso da mãe de um lado e a cabeça do filho pequeno saltando na terra do outro. Os velhos apenas se ajoelhavam, nem precisava forçá-los. Os pobres levantavam os olhos pro céu enquanto o facão jogava a cabeça deles por sobre a terra encharcada de um vermelho vivo. Foi um desespero sem tamanho que nunca vi igual. Não tem uma noite que eu não acorde encharcado de suor com a imagem daquele desespero.
Quando chegou a minha vez, não resisti, fui mancando pro canto que eles faziam o serviço e, pra surpresa de todos, o Enfezado, encalacrado no corpo do general Arthur Oscar, disse:
“Este aleijado aí deixa vivo. Quero pelo menos uma testemunha pra contar a história. É preciso meter medo em qualquer monarquista metido a besta que se criar por este sertão. Tenente Mourão, você bota este merda naquele jumento ali e manda ele pra bem longe, mas antes disso, quero falar a sós com o desenfeliz”.
Ele me arrastou pra fora do cercado da matança. Eu não sabia o que fazer, só conseguia olhar pro chão de tanta vergonha, de medo. O desgraçado me levantou o queixo e, não sei como, arranjei um tico de coragem e encararei aqueles olhos de carvão, aquela língua de cobra nojenta. O cão me falou uma verdade que não gostei nem um pouco de ouvir, visse?
"Eu fiquei sabendo que tu abandonou o Coronel João Pereira porque ele fez um trato comigo e que tu vive por aí arrotando que teu pai lhe ensinou que não se deve cair nas artimanhas do Diabo. Pois fique então sabendo que se eu te deixo viver hoje é porque fiz um trato com teu pai também. Trato é trato. Quando tu eras miúdo, também caiu doente. Dei uma garrafa a ele pra tu viver. Se algum dia tu abrir a boca sobre o que aconteceu aqui, vou quebrar o trato e venho acertar as nossas contas”.
Pronto. É isso que eu tinha pra te contar!
Agora, moço, por favor, vá embora escrevinhá esta estória no teu jornal. O Bode Preto logo vai bater as fuças por aqui porque lhe contei o que se passou no massacre dos rendidos de Canudos, mas quando ele aparecer... ahn, eu vou matar ele. Ah, se não vou! Eu vou matar o Enfezado! Moço, me dê licença que eu tenho mais o que fazer, boa noite.
Um mês depois, o Coronel Ernesto Emerenciano da Fonseca encontra seu amigo João Pereira caminhando nas ruas de Juazeiro, e lhe fala no particular:
— João, vosmecê se alembra do Bento Eleutério de Zulmira? Aquele que era teu empregado lá na tua fazenda? Fiquei sabendo que ele endoideceu de vez depois de matar um cabra que vendia garrafadas. Esse tal foi vender remédio na casa dele e dizem que o Bento furou o cabra de punhal dos pés à cabeça, picou o pobre todo e se escafedeu no mundo.
“Pois é, dizem que o Bento, agora, anda fugido lá pras bandas de Pernambuco, seco igual um pau de virá tripa, todo vestido de branco, puxando um jumento e vendendo garrafadas também. Tornou-se figura conhecida e temida pra’quelas bandas. Há quem afirme que já viram ele jogando sorrisos de malícia, com língua de cobra no canto da boca, pros sertanejos que vagam sem rumo pela caatinga.”
“Arre égua, vosmecê acredita nisso?”