ÓCULOS DO DEMÔNIO
Toda vez que saíamos juntos para passear ou viajar, era sempre Neide, minha mulher, quem dirigia o carro. Eu gostava de tomar umas cervejas, e ela achava melhor eu ir no banco do carona para não causar problemas no trânsito. Naquele ano, resolvemos tirar férias no mês de outubro, pois estávamos em plena primavera, o clima era ameno e, por não ser um período de férias escolares, o trânsito estava menos congestionado. Consequentemente, a região dos lagos, para onde pretendíamos ir, devia estar menos concorrida, com vagas sobrando em hotéis e pousadas.
Não esquecemos as roupas de banho, as sandálias de borracha e os óculos de sol. Como os meus haviam se quebrado, decidi comprar outros em alguma loja no caminho.
Na primeira parada para ônibus, assim que pegamos a rodovia, visitamos as lojas de conveniência para eu escolher os óculos, mas nenhum dos que experimentei me agradou.
– Estão tão bonitos, Roberto – comentou minha mulher – por que não leva?
Argumentei que os óculos que eu gostava não eram daquele tipo.
– E qual é o tipo que você gosta?
– Aquele que eu experimento e me agrada. – brinquei, mas, na realidade, eu não sabia exatamente qual eu queria.
– Está bem, então vamos embora – apressou-me.
Nas duas paradas seguintes foi a mesma coisa: experimentei vários óculos e não gostei de nenhum. Neide, como sempre aguardou pacientemente. Ela era uma pessoa para quem a vida era muito fácil de ser vivida. Não se aborrecia com coisa alguma. Sempre optava pelo que era mais lógico e prático. Se fosse para ela, qualquer par de óculos serviria, desde que cumprisse sua função: proteger os olhos da incidência direta dos raios solares. Porém, eu sempre fui muito vaidoso. Quando precisava comprar alguma roupa, preferia ir sozinho para procurar com bastante calma, e só comprava aquela que me convencesse de que estava vestindo bem. Demorava horas para escolher uma calça, por exemplo. Se minha mulher me acompanhasse, ela esperaria pacientemente e até daria opinião, desde que solicitada.
Seguindo a rodovia, logo após uma curva fechada à direita, ela pisou no freio.
– Acho que vi um par de óculos bem no meio da rodovia – disse Neide.
Olhei para trás e vi, em cima da faixa branca que separava as duas pistas, uma coisinha preta que, da distância em que estávamos, parecia um passarinho preto morto. Ela olhou para ver se não vinha ninguém atrás e deu ré. Uma manobra meio arriscada, pois não dava para ver direito o que vinha antes da curva, apesar de já estarmos a uns trinta metros dela. Se um veículo pesado viesse em alta velocidade, não teria espaço suficiente para desviar. Parou o carro ao lado do objeto, abriu a porta de seu lado e sem sair do veículo, dobrou o corpo para fora, estendeu o braço e pegou-o, passando-o para mim e, rapidamente procurou sair de perto daquela curva da estrada.
Examinei bem o par de óculos e constatei que não tinha qualquer arranhão. Uma coisa estranha, considerando-se que devia ter caído de algum veículo em movimento, ou mesmo que tivesse sido jogado.
– Puxa! – me espantei – Está novinho!
Coloquei-o no rosto e baixei a aba do quebra luz para me olhar no espelho.
– É exatamente o tipo de óculos que queria. – sorri. E completei: – Caiu do céu pra mim.
Era, realmente, o par de óculos perfeito. Exatamente o tipo de óculos que me agrada. Parecia ter sido colocado ali para ser encontrado por nós. Fiquei feliz e não o tirei mais durante o resto da viagem.
Rodamos mais alguns quilômetros e eu me lembrei de uma poesia que eu havia escrito recentemente e guardado o papel dobrado na carteira. Peguei, desdobrei o papel, levantei os óculos para o alto da cabeça, como se fosse um diadema, e pedi para Neide ouvir, pois sabia que ela gostava de ouvir as poesias que eu fazia, e comecei a ler:
NA MEDIDA
A gente se cabe que nem mão e luva.
A gente parece cabeça e chapéu.
Quando fecha o tempo, somos vento e chuva. Eu sou de você, como o vinho é da uva; você cabe em mim, feito dedo no anel.
A gente se ajusta na medida exata.
A gente se encaixa feito pré-moldado.
Nós somos assim: um nó que não desata.
Se a gente se agarra, ninguém nos aparta. Falar em amor é “chover no molhado”.
Nós somos farinha de um mesmo saco; as duas metades da mesma laranja. Na mesa de jogo, somos bola e taco.
Nos mares da vida, somos remo e barco;
“pisou” na avenida, somos renda e franja.
Acabei de ler e perguntei o que ela tinha achado.
– Está bom – disse.
– Só isso? – me surpreendi. – Pensei que você ia gostar muito.
– Mas eu gostei. É meio bobinho como poema – criticou. – Está mais parecendo letra de um samba. Acho que vou gostar mais se eu mesma ler, ao invés de, simplesmente, ouvir.
Quando olhou para mim e viu os óculos na minha cabeça...
– Ponha os óculos direito! – disse, sem paciência. – Assim você está parecendo uma mulherzinha.
Nunca tinha visto, nos nossos dez anos de convivência, ela falar de forma tão grosseira comigo. Nunca tinha ouvido uma expressão áspera da parte dela. Sempre foi muito gentil e tolerante. Perguntei se ela estava zangada com alguma coisa.
– Zangada, eu? – fingiu espanto – Não sei aonde você está vendo isso – debochou. – Eu tenho tido até paciência demais com você – e encerrou o assunto.
Ela estava mesmo parecendo mal humorada. Já tínhamos dez anos de convivência, e, ainda assim, ela estava me surpreendendo. Não acreditei que ela tivesse esperado tanto tempo para se revelar. Depois disso, permanecemos calados até o final da viagem.
* * *
Entrando na cidade de Cabo Frio, seguimos até o hotel onde havíamos feito reserva – o que poderia ter sido dispensado, já que estavam sobrando vagas e o local parecia até meio deserto. O gerente nos entregou as chaves do apartamento 413 e apontou o elevador. “Por que um apartamento no quarto andar, e não em um andar mais baixo, considerando estar, o prédio, quase vazio?” – pensei em perguntar. Porém, calculando que a resposta seria óbvia: que aquele era ao único apartamento que a arrumadeira havia deixado preparado, peguei as chaves e subimos. Achei o elevador mal conservado. Pensei que o hotel fosse um pouco melhor. O apartamento era pequeno e tinha cheiro de mofo, como os motéis baratos.
Deixamos a bagagem no apartamento e descemos. O relógio marcava quinze horas e alguns minutos e estávamos mortos de fome. Depois do almoço fomos andar um pouco na praia. Tiramos os sapatos e caminhamos na areia, olhando o mar. Isso era uma coisa que, em outras ocasiões nos deixava tranqüilos e em paz. Porém, naquele dia parecia apenas uma rotina a ser cumprida. Estávamos quase sem nos falar. Havia uma inexplicável distância entre nós dois. Ao voltarmos, já era quase noite. Estávamos muito cansados da viagem e da caminhada. Tomamos um banho e fomos dormir.
De madrugada acordamos com um estrondo. Parecia um acidente entre dois carros. Ouvimos vozes que pareciam vir da garagem. Fomos até a janela. Lá embaixo, a cobertura de entrada da garagem havia sido totalmente destruída pela queda de um enorme aparelho de ar condicionado. O gerente estava lá, apontando para cima. Começamos a olhar para ver de qual apartamento havia caído e percebemos que tinha sido do nosso. Havia apenas o buraco onde ficava o aparelho, com parte do reboco da parede arrancado na queda. Voltamos para a cama e deixamos para resolver o problema na manhã seguinte.
Às oito horas da manhã, o telefone tocou. Estávamos sendo chamados à portaria, onde nos aguardavam o gerente e dois policiais. Soubemos que estávamos sendo acusados de termos derrubado o aparelho de ar-condicionado depois de uma grande discussão, e que teríamos que comparecer à delegacia para prestar depoimento.
Ao chegarmos na delegacia, já estavam lá mais dois casais de hóspedes, que compareceram, a pedido do gerente do hotel, para servirem de testemunhas a respeito dos acontecimentos da noite anterior. Eles estavam ocupando os apartamentos imediatamente contíguos ao nosso – um à direita e outro, à esquerda – e declararam nos terem ouvido brigar muito.
– Eles davam socos nas paredes e gritavam sem parar – disse uma das mulheres.
– Nós já estávamos decididos a ligar para a portaria pedindo providências – completou o marido dela.
– Quando o aparelho de ar condicionado caiu – falou a outra vizinha, – eles pararam de brigar e ficou um silêncio depois disso.
Concluíram que a queda do objeto havia ocorrido devido aos fortes socos que dávamos nas paredes, ou que devíamos tê-lo empurrado com raiva. Apesar de nossas negativas, e de argumentarmos que eles não podiam nos acusar de termos empurrado o aparelho de ar-condicionado sem provas, não tínhamos argumento contra o depoimento de quatro pessoas, pelo menos em relação à briga e aos socos. Eram dois casais que não se conheciam até aquele momento. Pagamos uma indenização pelos danos e voltamos ao hotel, para fechar a conta e sair dali.
Decidimos então ir para Arraial do Cabo, onde morava um casal de amigos, e nos hospedamos em um ótimo hotel, perto da praia e da casa deles..
– Nós queremos um apartamento sem ar condicionado – pedi ao gerente. – No andar térreo, de preferência – completei.
O gerente riu e nos informou que todos os apartamentos tinham ar-condicionado, mas poderíamos deixá-lo desligado, se quiséssemos. As noites ainda estavam bem frescas e, por isso, esse era um item dispensável em um apartamento naquele momento. Ficamos no andar térreo. À noite, no elegante bar do hotel, com pista para dança, ocorria a apresentação de um quarteto musical especializado em tocar boleros e tangos, com a participação de um cantor de meia idade, desconhecido, porém muito bom. Estávamos apenas nós dois e o casal de amigos. O hotel devia estar com poucos hóspedes ou ainda era cedo, por volta de nove horas da noite. Dançamos muito e bebemos vinho. Neide sempre preferiu refrigerante, mas dessa vez quis uma bebida alcoólica. Beth, nossa amiga de vários anos, estranhou a escolha do vinho e brincou que Neide estava diferente. Outras pessoas começavam a chegar. Convidei Neide para dançar. Sempre gostei muito de dançar com ela, pois era uma pessoa fácil de ser conduzida, e eu inventava uns passos que ela acompanhava com facilidade, porém, dessa vez, ela estava bem mais audaciosa na dança e exagerada na bebida.
Naquela noite ela fez amor comigo de uma forma agressiva e violenta, como nunca tinha feito antes. Sempre foi terna e comedida no sexo. Dessa vez, estava ávida – parecia uma prostituta – com uma expressão satânica no rosto: as sobrancelhas alçadas, os olhos vermelhos e injetados, a boca contraída de uma forma que eu podia ver seus dentes. Parecia outra pessoa. Não estava, particularmente, sensual. Não havia qualquer sensibilidade da parte dela, apenas uma espécie de raiva que estava me assustando e impedindo a minha concentração e participação. Se estava sendo bom para ela, não estava bom pra mim. Arranhou-me tanto as costas que me admirei de não ter lhe quebrado as unhas.
Mais tarde, olhando no espelho, constatei que os arranhões eram horríveis, parecia que tinha sido atacado por uma onça.
Assim que terminamos, ela virou de costas para mim, sem dizer nada, sem dar boa noite, e logo adormeceu – roncava alto, coisa que nunca fez antes. Parecia que havia um homem (ou um animal) ao meu lado. Perdi o sono e fiquei me debatendo e olhando o relógio. Eram três horas da manhã e eu ainda não tinha dormido.
Na manhã seguinte despertei com ela passando a mão de leve no meu peito. Já estava de banho tomado. Os cabelos molhados, que ela sempre penteava para trás, estavam agora desalinhados, caindo sobre os ombros e o rosto. Seus gestos eram teatrais, sem naturalidade, exagerados, como se estivesse representando uma mulher fatal.
– Se alguém lesse o que você escreveu ontem à noite – falou, passando os dedos pelos meus cabelos, exibindo um charme forçado, mais desarrumando do que tentando arrumá-los –, iria pensar que nós não estamos mesmo nos entendendo bem – concluiu, dengosamente, sacudindo uma folha de papel com a minha letra.
Eu disse que não me lembrava de ter escrito coisa alguma antes de dormir.
– Escreveu sim – disse carinhosa –, de uma só vez e sem rasuras. – concluiu com falso espanto.
– Onde estava?
– Estava aqui. – apontou a mesinha de cabeceira, com o dedo indicador, girando a mão charmosamente..
Pedi para ver, e estendi a mão para pegar a folha de papel. Ela deu um tapinha na minha mão, com um falso olhar de zangada, e fez questão de ler em voz alta.
COMO SE UM TANGO BASTASSE
Nem sempre “frio en’el alma”; Às vezes, fogo no peito.
Nem sempre o prazer e a calma; Às vezes, a dor e o amor mal feito.
Nem sempre “lábios calientes” ; Às vezes, dentes cerrados.
Um sibilar de serpente.
Um veneno inesperado.
E, como se um tango bastasse, saímos bailando “por el salon”; como se nada importasse
além dos acordes “del bandonion”
* * *
Levantei. Tomei um banho e saímos. Já estávamos quase na praia, quando lembrei que tinha deixado os óculos no hotel e resolvi voltar para pegá-los. Neide seguiu para me esperar na areia. Quando entrei no apartamento, vi que os óculos não estavam sobre a cômoda, onde os havia deixado. Depois de muito procurar, encontrei-os, inexplicavelmente, jogados dentro da privada. Não podia ter sido a arrumadeira ao limpar o banheiro, pois o apartamento ainda estava desarrumado. Nesse instante alguém bate à porta, era a servente chegando pedindo licença para fazer a limpeza. Quando lhe perguntei se alguém já teria vindo fazer a limpeza, ela respondeu que ninguém havia estado antes no quarto. Lavei os óculos com o sabonete líquido do banheiro e joguei um pouco de álcool que peguei com a arrumadeira.
Voltei à praia com os óculos e não encontrei minha mulher. Pensei que ela podia estar caminhando e esperei quase uma hora. Achei melhor sair procurando por ela e a encontrei sentada em um bar de beira de praia tomado uma cerveja. Comecei até a gostar daquela mudança em seu comportamento, pelo menos em relação à cerveja, e resolvi acompanhá-la. Não tirei a camisa por causa dos horríveis arranhões nas costas, que ainda estavam me incomodando. Ao me sentar e olhar melhor para ela, achei sua expressão diferente do habitual. Seus olhos estavam fundos, com as órbitas escuras, a pele acinzentada. Havia um ar irônico e malicioso no seu modo de me olhar. Suas narinas pareciam estranhamente dilatadas e os cantos da boca sutilmente levantados, mesmo que ela não estivesse querendo rir. Tirei os óculos para olhá-la melhor, e me surpreendi ao ver que devia ter sido impressão minha. Coloquei os óculos novamente, e seu rosto voltou a apresentar aquela aparência estranha. Ela me jogava uns olhares como se estivesse representando uma mulher sensual, jogando charme para um homem desconhecido. Quis fazer o teste com outras pessoas, tirando e recolocando os óculos, enquanto as olhava. Todas elas, aquelas que passavam e as que ocupavam as mesas vizinhas ou a areia da praia, alternavam sua aparência na medida em que eu as olhava com ou sem os óculos. Era uma mudança sutil, porém perceptível e significativa. A expressão facial, o comportamento, a postura, se modificavam, sutilmente é claro. Usando os óculos, eu tinha a sensação de que as pessoas estavam participando de uma orgia, porém sem muitos exageros. Tudo parecia ocorrer a nível dos olhares e do comportamento. O sol e os corpos quase nus, contribuíam para isso.
Resolvi permanecer com os óculos e observar tudo atentamente. Olhando através deles, até as unhas de minha mulher pareciam diferentes. Sujas e arroxeadas. Para minha surpresa, percebi que o mesmo ocorria com as minhas mãos, se eu as olhasse através da lente dos óculos. Comecei a achar tudo aquilo muito esquisito. Fiquei assustado.
Retirei os óculos e pendurei na gola da camiseta. Achei melhor não comentar nada com ela. Ela já estava muito estranha nos últimos dias para se preocupar com isso.
Ficamos na praia até anoitecer, comendo peixe e bebendo cerveja e vinho. Quando chegamos ao hotel, eu estava me sentindo meio embriagado, mas ela parecia estranhamente sóbria, como se já estivesse absorvendo bem o álcool, a exemplo dos grandes alcoólatras.
* * *
Naquela noite demorei mais no banho e fiquei procurando coisas pra fazer, para ver se ela dormia antes que eu fosse para a cama. Depois do que aconteceu na noite anterior, eu estava sentindo medo dela. Os arranhões nas minhas costas ainda doíam. Quando vi que ela virara de lado, com as costas voltadas para o meu lado na cama, e ouvi seus atuais roncos, resolvi me deitar. Naquele momento, senti certa ternura por ela e ajeitei meu corpo para ficar com o peito encostado em suas costas. Envolvi seus ombros com meu braço esquerdo e dei um beijo, de leve, em seu pescoço. Aquilo retirou-a do sono profundo e, ainda sonolenta, ela voltou o rosto na minha direção para retribuir o beijo. Quando me olhou, levou um susto tão grande e deu um grito tão horrível que me assustou também. Pulou e sentou-se na beira da cama, de costas para mim, com o rosto escondido entre as mãos.
– O que foi – perguntei, mas ela não respondeu. Tentei fazê-la me olhar, puxando-a pelo ombro.
– Não quero olhar – ela gritou, sem tirar as mãos do rosto.
Levantei-me, contornei a cama e sentei-me a seu lado, abracei-a e insisti para que ela me contasse o que estava havendo. Ela foi girando a cabeça lentamente e foi me olhando aos poucos.
– Quando eu olhei pra você deitado – começou a falar trêmula – vi, por cima de suas costas, a cabeça de um bode negro, grande como a de uma pessoa, e com chifres enormes e pontudos, olhando pra mim.
Dessa vez ela estava falando sinceramente, como uma pessoa normal como ela sempre foi. Estava mesmo aterrorizada. Comecei a sentir também muito medo e fui acometido de uma tremedeira igual a dela, mas tentei esconder. Fomos preparar uma água com açúcar para nos acalmar.
No dia seguinte, ligamos para o casal de amigos, que morava na cidade. Os dois se diziam versados em coisas do além, e os convidamos a nos visitar no hotel. Era dia ainda, quando nos encontramos no bar do hotel, que, àquela hora, estava vazio e sem música. Contamos a eles a respeito da visão que Neide teve na noite anterior, disseram que eu não precisava me preocupar com aquilo, pois se a entidade estava por trás das minhas costas, era porque eu estava funcionando como uma barreira, impedindo que o ser maligno se aproximasse de nós – principalmente dela. Porém, o fato de ela ter visto aquilo nas minhas costas não me deixava nada tranqüilo.
Na manhã seguinte me preparei para ir à praia, mas Neide disse que não queria ir. Estava com enxaqueca e preferia ficar no quarto. Quando eu já estava longe do hotel, lembrei-me dos óculos. Eu os havia esquecido sobre a cômoda outra vez, mas, dessa vez, resolvi não voltar para pegá-los e fui à praia sem eles.
Fiquei na praia umas três horas. Quando voltei ao hotel, encontrei o apartamento todo desarrumado. Folhas de papel espalhadas sobre a cama – algumas delas escritas com a letra de Neide –, um copo e uma garrafa de vodka vazia, deixados no chão. Almofadas e travesseiros também jogados e a cama totalmente desarrumada, com os lençóis puxados e um deles caído no caminho para o banheiro. Chamei por ela e não obtive resposta. Comecei a pensar que ela tinha saído. O cheiro de bebida alcoólica no ar era bem forte. Percebi que a porta do banheiro estava entreaberta e chamei por ela novamente, e me aproximei depressa pensando que ela podia estar em apuros. Dei duas batidinhas na porta e voltei a chamar seu nome. Quando abri a porta, a primeira coisa que vi foi uma lâmina de barbear suja de sangue, na borda da banheira. Continuei me aproximando já com medo do que iria ver. De início, vi seus joelhos, depois seu corpo nu, deitado em menos de um palmo de água toda tingida de sangue. Havia cortado os pulsos. Seu sangue se misturou com a água da banheira. As mãos estavam repousadas sobre as virilhas, parecendo que tentou esconder a região pubiana antes de morrer. Sua cabeça estava fora da água, encostada na borda da banheira, abaixo da saída de água. Estava usando os óculos escuros. Os meus óculos. Os óculos que ela achou e talvez por isso, tenham feito mais mal a ela do que a mim. Eram os óculos do demônio, agora eu tinha certeza. Depois que os achamos (nem sei se posso dizer que achamos ou se foram enviados para nós), nossa vida se descontrolou completamente. Comecei a me sentir enjoado e vomitei. Estava achando que ia desmaiar. Baixei a tampa do vaso e me sentei sobre ela.
Liguei para a portaria do hotel e pedi que chamassem a polícia. Enquanto aguardava fui olhar os papéis que estavam espalhados no chão, onde ela deixou coisas escritas. Em um deles havia uma poesia. Ela nunca havia escrito nada, muito menos poesia. Não havia rasuras, assim como aquela que ela encontrou com a minha letra e eu não lembrava de ter escrito. Era uma escrita limpa como se tivesse copiado de algum lugar, ou alguém tivesse ditado para ela. Era um poema triste, lúgubre e sombrio.
EXANGUE
Ávidas línguas. Retorcidas bocas.
A guilhotina, o laço, o cadafalso.
O corredor de corroídas portas.
Pontas de vidro sob o pé descalço.
Olhos que cravam flechas na vidraça.
Mórbidas presas – ansiosas veias.
Intensa é a lua transbordando a taça.
Infectas garras. Patéticas ceias.
Na escuridão dos becos lamacentos,
Os corpos pútridos esquartejados, Pano de fundo para meus tormentos,
Fazem meu sangue lavar meus pecados.
Pouco tempo depois, chegaram dois policiais, acompanhados de três peritos. Fotografaram tudo e recolheram, com luvas plásticas e pinças, tudo o que achavam importante para uma análise. Colocavam cada coisa em sacos plásticos com lacre, próprios para aquele fim. Recolheram a lâmina de barbear, ensangüentada, algumas folhas de papel, principalmente aquelas que traziam algo escrito, o copo e a garrafa de vodka. Fiquei o tempo todo sentado no banheiro ao lado do corpo dela. Quando retiraram os óculos de seu rosto percebi que seus olhos estavam esbugalhados, saltando das órbitas, como se, na hora de morrer, ela tivesse visto alguma coisa horrível. Informei que os óculos eram meus. Também o levaram para análise.
Um dos policiais me fez algumas perguntas de rotina e quis saber se costumávamos usar lâminas de barbear, se minha mulher era alcoólatra, se havíamos brigado antes daquela atitude dela e se ela tinha algum desequilíbrio mental. Eu respondi não a tudo. Ele concluiu as anotações em um bloco de papel e notificou-me que eu não poderia sair do hotel até chegarem os resultados da perícia, e saíram.
Trinta dias depois, chegaram os resultados. Os peritos concluíram ter se tratado mesmo de suicídio. Em todas as provas recolhidas só encontraram as impressões digitais dela. Foi constatado que a saliva no gargalo da garrafa de bebida, era dela. O laudo me foi entregue juntamente com uma sacola contendo tudo o que fora levado para análise. Joguei tudo na lixeira do apartamento: a lâmina de barbear, os papéis, o copo e a garrafa. Porém preferi deixar os óculos sobre a cômoda, para ser encontrado pela arrumadeira e darem a eles o fim que desejassem. Estava com medo de jogá-los no lixo e me acontecer alguma coisa ruim. Acabei ficando supersticioso depois de tantas surpresas ruins. Peguei a mala com as nossas coisas e saí.
* * *
Na estrada, já a caminho do Rio de Janeiro, instintivamente, pisei fundo no freio, fazendo os pneus cantarem, largando fumaça e deixando marcas no asfalto, no mesmo ponto da estrada, onde havíamos encontrado o par de óculos. Sobre a faixa branca, divisora das pistas, estava outro par de óculos escuros. Senti meu corpo gelar e os pelos se arrepiarem. Conduzi o carro para o acostamento e fiquei olhando de longe, sem coragem de passar por ali. Não sabia o que podia acontecer. Seria outro par de óculos ou o mesmo? Se aquilo era mesmo coisa do demônio, tudo seria possível. Comecei a me sentir quente, como se estivesse com febre. Acho que era o meu cérebro fervendo, tentando encontrar lógica em tudo aquilo.
Não demorou muito e vi um automóvel vindo na direção contrária. Completou a curva que agora ficava à minha esquerda, parou ao meu lado, e foi voltando de ré. O carro tinha um bagageiro no teto e levava uma barraca de camping dividida em dois sacos: um com a lona; e outro, com as ferragens. Vi que estava ocupado por quatro jovens – duas moças e dois rapazes. Deviam ter visto o par de óculos e recuaram para apanhá-lo. Estavam fazendo a mesma coisa que nós, eu e minha mulher, fizemos antes.
Do ponto em que eu estava, tinha uma visão melhor do que a deles em relação aos veículos que vinham naquela direção, e percebi um enorme caminhão vindo em grande velocidade. Saí do carro e balancei os braços, apontando para alertá-los. Eles perceberam e desviaram o carro para o acostamento e o caminhão passou buzinando, em alta velocidade. O jovem motorista do carro de passeio abriu a porta e foi até o meio da pista pegar os óculos. Pôs em seu rosto e voltou para o veículo. Deu partida, mas parou novamente ao meu lado. Tirou os óculos e acenou, agradecendo. Fiz, com o polegar, o sinal de “positivo”, apenas pela atenção dele em parar para agradecer, e não por estar aprovando aquela situação ou lhe desejando boa sorte, porque “boa sorte” era o que ele, provavelmente, não teria, dali em diante. Senti depois certo peso na consciência por não tê-lo alertado ou impedido que ele pegasse aquele par de óculos, contando para ele a minha história. Não sei se acreditaria. Era muito jovem e talvez não me levasse a sério. Eram óculos bonitos e qualquer jovem gostaria de ficar com eles, até mesmo um homem maduro como eu, se é que isso poderia servir de exemplo.
Fiquei ali uns cinco minutos conversando comigo mesmo, vendo outros carros passarem e imaginando o que poderia acontecer com aqueles dois casais de jovens.
Depois de respirar bem fundo algumas vezes para tentar relaxar e voltar para a estrada, liguei o carro e retomei meu caminho de volta para casa.
Três dias depois, eu caminhava por uma rua de Copacabana, no Rio de Janeiro, quando a manchete de um jornal, exposto em uma banca, chamou minha atenção.
Crime na Região dos Lagos
Aproximei-me e vi que a fotografia do criminoso me parecia familiar. Lembrei do rosto do rapaz que parou seu carro ao lado do meu na estrada, para agradecer por eu tê-lo alertado sobre a vinda daquele caminhão em situação perigosa. Era ele mesmo. Comprei o jornal e li a chamada para a matéria.
“Rapaz mata, com golpes de facão, a namorada e um casal de amigos, durante acampamento em uma praia, na cidade de Cabo Frio. Uma das vítimas foi encontrada com um par de óculos escuros na boca, enfiado até à garganta”.