O HOMEM IMÃ

– Isso deve ter sido um sonho – disse minha mãe.

– Não! – eu discordei. – Eu estava bem acordado e ouvindo até os roncos do meu pai.

Na mesa do café de domingo, pela manhã, eu comecei a contar, para os meus pais, um fato estranho, que eu havia presenciado de madrugada, quando levantei para ir ao banheiro. Antes de me levantar, olhei para a cama dos meus pais e não vi minha a mãe, depois percebi que ela estava de pé, ao lado da cama, usando um vestido marrom, com flores amarelas, e com os cabelos molhados como se tivesse saído do banho e estivesse arrumada para sair de casa. Olhei para o berço do meu irmão, Luiz, e vi que estava vazio, depois percebi que ele estava deitado, todo encolhido, nos pés da cama dos meus pais, vestido de branco.

– Mauro, meu filho, isso só pode ter sido sonho – repetiu minha mãe.

– Não, mãe – eu insisti –, eu tenho certeza – completei sem paciência.

– Eu nem tenho um vestido igual – criticou ela.

– Mas foi assim que eu vi – eu disse.

Para sair da minha cama, que era encostada na cama dos meus pais – já que a casa tinha só um quarto, onde todos dormiam –, eu tinha que ficar de pé e sair caminhando por cima da cama deles para alcançar o chão do quarto. O berço do meu irmão ficava na outra parede, atravessado na direção dos pés das outras duas camas, com um vão livre, que nos permitia descer das camas ou do berço por ali.

– Eu tive que pular por cima dele – continuei meu relato – pra poder pular pro chão, e, quando voltei do banheiro, minha mãe... – falei, voltado pro meu pai – já estava deitada e o irmão já tinha voltado pro berço, e não estava mais de branco.

Meu irmão já tinha cinco anos, mas ainda dormia em um berço por questão de espaço no quarto.

– Está vendo Gilmar Rodrigues? – ela só o chamava assim quando tinha alguma crítica a fazer a ele, pois, carinhosamente, o chamava apenas de “Gil”. – É nisso que dá, carregar gente morta nas costas – falou, balançando o dedo indicador na direção dele. – Você deve ter trazido um monte de espíritos atrás de você.

Meu pai fez cara feia, e apontou para nós (as crianças), sem que nós víssemos (ou pensando que eu não estava vendo).

– Isso não é assunto para se falar na hora do café. – reclamou.

Aquela crítica da minha mãe referia-se a um horrível desastre entre dois trens da rede ferroviária, que se chocaram na semana anterior, entre as estações de Nilópolis e Ricardo de Albuquerque, na zona norte do Rio de Janeiro, por volta das cinco horas da manhã. Um dos trens estava repleto de passageiros. No horário em que ocorreu o acidente, os trens com destino ao centro da cidade, estão sempre lotados, com muita gente indo para o trabalho.

O choque foi tão forte que os vagões saíram dos trilhos, e alguns foram jogados no meio da estrada, ao lado da ferrovia. Muitos passageiros caíram no rio Pavuna, que passa sob o trecho onde ocorreu a fatalidade. Era um período de muita chuva, o rio estava cheio e com muita correnteza, muitos acabaram sendo arrastados pelo rio e morrendo afogados. Porém, a maioria, ficou esmagada entre as ferragens retorcidas dos vagões. Foi o maior número de mortos por acidente entre trens, de acordo com relatório da empresa prestadora do transporte ferroviário. Em casa, nós despertamos com o estrondo provocado pelo choque dos trens, e dava para ouvir os gritos dos passageiros.

Meu pai, que era policial da Guarda Municipal, correu até o local para socorrer as pessoas. Ele era acostumado a prestar serviço à população e, apesar de não ser muito alto – tinha apenas um metro e setenta e cinco centímetros de altura – era bem forte, pois praticava pugilismo na academia de polícia, chegando a conquistar o título de campeão sul-americano de boxe, sob o pseudônimo de Jack Crespo.

Minha mãe se chamava Doralice, era doméstica, descendente de portugueses e muito geniosa. A única vez em que concordou em assistir a uma luta do marido – nunca queria ir, pois achava aquele esporte muito violento –, foi, justamente, quando ele levou a maior surra de sua vida. Supercílio aberto. Nariz quebrado. O rosto coberto de sangue. A luta fora comprada. O juiz permitia todas as faltas do outro lutador. Foi a primeira e a última luta do meu pai que ela concordou em assistir. E me levou junto. Sentada na primeira fila, junto ao ringue, a todo instante ela ficava de pé, impaciente, enquanto a platéia gritava para ela se sentar. Eu só conseguia me encolher na cadeira, assustado e com vontade de chorar. No final da luta, após a decisão dos jurados, ela não se conteve.

– Isso foi roubo! Juiz Ladrão! – gritava, descontrolada. Tirou o sapato de salto alto de um dos pés e subiu ao ringue para atacar o juiz e o pugilista adversário, segurando o sapato pelo bico, como se fosse um martelo, e teve que ser contida pelos organizadores do evento.

* * *

Aquele acidente entre os dois trens da Rede Ferroviária Federal, havia sido o pior já ocorrido até aquela data. Aconteceu por volta de em 1952, e não foi igualado até hoje.

Ajudando a carregar os corpos nos ombros, até às ambulâncias e carros de bombeiros, que já não davam conta, diante do imenso número de corpos, meu pai ia aos locais de difícil acesso, onde as macas não podiam ser levadas, para recolher os corpos. Quando chegou em casa, estava com as roupas cheias de sangue de diversas pessoas. Depois desse dia, começou a reclamar de dores nas costas e na perna direita, como se fosse algum problema na coluna vertebral, varizes ou articulação. Procurou o médico da corporação, mas nada foi detectado, passou então a controlar a dor com analgésicos.

Depois da história que eu contei, ocorrida no nosso quarto, minha mãe o convenceu a procurar uma mãe-desanto, em um centro de umbanda que funcionava no bairro de Oswaldo Cruz.

Os dois foram juntos. Minha mãe deixava a gente (eu e meu irmão) participar das todas as coisas que aconteciam com a família e, quando não estávamos por perto, ela contava pra nós depois.

A médium era uma mulata gorda, de aparência simpática e sotaque baiano, vestindo uma roupa colorida, com muito vermelho, preto, verde e amarelo.

– Não quero me falem nada antes, além de seus nomes – recomendou, durante as apresentações. – Eu recebo o espírito de um preto-velho, escravo, de origem africana, depois que ele disser tudo, vocês podem falar.

Depois de acender uma vela, ela baixou a cabeça e bateu duas vezes, reverencialmente, no pequeno altar fixado na parede, e começou a rezar para “chamar” seu guia espiritual.

Incorporado, o espírito começou a falar através da médium, sem perguntar nada, com um sotaque misto de dialeto africano e português. Disse que meu pai estava com uma mulher dependurada em suas costas, com os dois braços em volta de seu pescoço, e um menino agarrado em sua perna direita como se estivesse subindo em um coqueiro. E soltou uma risadinha, que balançou todo o seu corpo.

Os dois ficaram impressionados com a rapidez e objetividade do guia espiritual da mulher, pois ninguém havia falado nada sobre dor nas costas e na perna.

O “preto-velho” explicou, em outras palavras, que meu pai tinha uma forte mediunidade, o que fazia com que os espíritos vissem nele uma espécie de canal para se comunicarem, mesmo sem saberem direito o que estavam fazendo. E não seriam sempre bons espíritos ou espíritos inofensivos. Ele precisava ter cuidado quando passasse por uma encruzilhada. Tinha que fazer uma saudação e pedir licença, pois ali ficavam os mais perigosos espíritos das trevas. Demônios capazes de acabar com a vida de uma pessoa.

Pelo fato de meu pai ser um policial e, por exigência de sua atividade, ser obrigado a combater a violência e ter contato, eventualmente, com gente morta; e, em contrapartida, exercitar seu lado mais agressivo com o pugilismo, ele estava atuando como se fosse um imã, atraindo espíritos maus, ou aqueles que não sabiam que já haviam desencarnado. Esses espíritos o viam como uma alma com a qual se identificavam, tinham algum tipo de afinidade ou coisa assim.

Podendo agora falar o que quisessem, por autorização do preto-velho, a esposa contou a respeito do acidente ferroviário onde o marido retirou diversos corpos das ferragens, alguns completamente mutilados e que vieram a morrer antes mesmo de serem colocados nas ambulâncias. – Em alguns casos, quando a gente puxava a pessoa, vinha só metade do tronco, sem a parte inferior do corpo – contou meu pai.

Segundo a mãe-de-santo, aqueles que estavam agarrados nele, eram espíritos de pessoas mortas no acidente, e que ele devia acender uma vela no local e pedir a Deus que guardasse, em Sua luz, a alma daqueles desafortunados. Mas que ele se preparasse, pois aquilo continuaria acontecendo, enquanto ele não resolvesse freqüentar um centro espírita para desenvolver sua mediunidade.

Após cumprir as determinações do guia espiritual, as dores nas costas e na perna do meu pai desapareceram e ele não pensou mais no assunto, esquecendo-se da recomendação da tal sensitiva em relação a passar a freqüentar um centro espírita. No fundo, ele achava que aquilo era apenas uma forma de a médium atrair adeptos para o espiritismo.

* * *

Um mês depois, em um tiroteio, do qual participou durante uma “batida” em um morro, no centro da cidade, onde vários bandidos foram mortos e outros capturados, meu pai começou a andar muito curvado e a sentir uma dor muito maior no pescoço e nas costas. Na academia de polícia brincou com os colegas que já estava se acostumando a ser veículo de transporte de espíritos, e que desta vez parecia que o espírito pendurado em suas costas era bem maior e mais pesado do que o de uma mulher, ou então era mais de uma.

Uma noite, quando ele voltava para casa a pé, vestindo sua farda cinza com botões prateados da Guarda Municipal do Rio de Janeiro, na época, passou por uma senhora bem idosa e baixinha, que caminhava no sentido contrário. Ela parou e ficou olhando para ele, assustada. Ele a cumprimentou respeitosamente, mas a velhinha nem respondeu. Apenas o acompanhava com o movimento da cabeça, os olhos arregalados e a boca aberta.

Meu pai contou, depois, que pensou que a velha tinha algum problema mental e não deu importância. Quando ele acabou de passar, percebeu que a mulher olhou para trás, fez o sinal da cruz e exclamou: "Coitado, nem sabe a coisa horrível que está em seus ombros”.

Meu pai parou e voltou, mas a velhinha fez, com a mão, o sinal de “pare”.

– Fica aí mesmo. Não se aproxime – ordenou a velha. Parado a, mais ou menos, dois metros da mulher, meu pai perguntou:

– A senhora pode me falar alguma coisa a respeito do que está vendo?

– Tem uma entidade do mal “pousada” sobre seus ombros – começou ela a falar. – Está agachada. De cócoras atrás de sua cabeça. Com os dois pés, um em cada um dos ombros e as duas mãos segurando sua cabeça, na altura das orelhas. Um demônio de olhos esbugalhados e injetados de sangue. Tem apela suja como a de um mendigo, e grandes nódulos ao longo da coluna vertebral. Você só vai se livrar dele, procurando um centro espírita. Mas faça isso logo, pois ele quer matar você – concluiu a velha.

A expressão fisionômica do meu pai nessa época parecia influenciada pela energia maligna daquele espírito do mal. Seus olhos estavam mergulhados em profundas olheiras. Sua pele parecia esverdeada e sem vida. Os lábios ressecados, apresentavam diversas rachaduras. Quando cumprimentou a velhinha, sua intenção era a de um gesto gentil e cordial, mas soou soturno e assustador, por trás da expressão de seu rosto.

“Algumas pessoas têm o dom de ver espíritos; outras, só de ouvir ou sentir sua presença. São dons que quase ninguém gostaria de ter. Imagine-se, então, o que deve ser ter o dom de atrair espíritos malignos e, o que é pior, carregá-los nas costas”.

Meu pai agradeceu e se afastou A senhora idosa ficou parada, olhando até ele chegar à porta de casa, e viu quando ele subiu, com dificuldade, os três degraus da entrada, chegando a cambalear e perder o equilíbrio.

Um rapaz e uma moça, que caminhavam na calçada, olharam para ele, cochicharam alguma coisa e riram. – Parece que a farra foi boa – brincou o jovem, em voz alta, achando que meu pai estava chegando, em casa, bêbado.

A velhinha fez, mais uma vez o sinal da cruz e seguiu seu caminho.

* * *

Meu pai continuou passando por diversas situações semelhantes, que sempre diziam ser relacionadas a espíritos sem luz, mas insistiu em não querer desenvolver sua mediunidade, contrariando o que lhe aconselhou a médium. Ele dizia que isso era tudo mentira.

– Espíritos não existem. E, se existem, não podem fazer mal aos vivos. Deus é maior – dizia ele.

Até que, um dia, caiu na rua e morreu, vítima de um enfarto fulminante.

Quando eu fiz vinte e cinco anos, minha mãe comprou um vestido marrom com flores amarelas para comemorar o meu aniversário. Era o melhor vestido que ela tinha. Quando morreu, foi este o vestido que usaram para vesti-la para o sepultamento – no caixão, seus cabelos estavam úmidos, como se ela tivesse acabado de sair do banho.